03 Mai 2007
Há vinte anos, uma arquiteta e um antropólogo uniram suas pesquisas e investigaram os espaços sociais e a significação dos motéis cariocas e sua influência kitsch. Assim lançaram os livros “Arquitetura de motéis cariocas – espaço e organização social” (São Paulo, Paz e Terra, 1982) e “Arquitetura kitsch suburbana e real” (São Paulo, Paz e Terra, 1979), que agora foram relançados. Partindo de uma análise semiótica dos símbolos evidenciados em suas fachadas, os autores, Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti, observaram a existência de dois programas arquitetônicos nestes espaços. "A frente é das elites e a parte de trás destinada aos funcionários”, afirma Dinah na entrevista a seguir concedida especialmente à IHU On-Line, por e-mail.
Dinah Guimaraens é arquiteta com especialização realizada na New York University. Em seu mestrado, realizado na UFRJ, em Antropologia Social, focou nos modelos de arquitetura de castelos tropicais. No seu segundo mestrado, em História Antiga e Medieval, realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, pesquisou a arquitetura de castelos medievais. Os ícones Nacionais de Duas Américas foram estudados durante seu doutorado em antropologia social na UFRJ. Dinah concluiu o pós-doutorado em 1999, na University of New México, estudando antropologia nas áreas de etnologia indígena e teoria antropológica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Para a senhora, qual a importância da reedição de “Arquitetura kitsch suburbana e real” e de “Arquitetura de motéis cariocas – espaço e organização social” hoje?
Dinah Guimaraens - A importância da reedição destes livros, mais especificadamente o “Arquitetura de motéis”, é tornar possível uma reavaliação dos rumos tomados quanto ao comportamento sexual da sociedade patriarcal brasileira em cerca de 20 anos de sua primeira edição. Parece-me que existem, ainda hoje, poucos estudos aprofundados sobre a sexualidade em nosso país, o que torna este campo de estudo desafiante para o cientista social. A questão fundamental que norteou tal pesquisa conjunta - realizada em parceria com meu colega pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional-UFRJ Lauro Cavalcanti, tendo como ponto de partida o inspirador curso ministrado pelo Professor Gilberto Velho (1) sobre Antropologia Urbana - referiu-se à dupla moralidade que então parecia preponderar no casamento monogâmico dos grandes centros urbanos brasileiros: enquanto a esposa, como mãe e "santa", ocupava o lugar "sagrado" da casa, a amante, por sua vez, era a "rainha" do motel.
Se, de acordo com Roberto DaMatta (2), a sociedade no Brasil divide-se dicotomicamente entre a casa e a rua, o motel simboliza, portanto, o espaço da aventura, do perigo e da individualidade, enquanto cabe à casa desempenhar o papel de mantenedor das regras morais vigentes. A pergunta sobre a investigação dos motéis é, hoje: "Será que algo mudou, de fato, nesses vinte anos"? Ou será que não se trata somente de uma falsa aparência de liberalismo sexual, com sexo virtual e sites "pornô" pela Internet tendo divulgado para muitos apreciadores aquele universo que Michel Foucault denominou de "sexo-rei"?
Como afirma este filósofo francês, se é sempre sobre o sexo que estamos falando, mesmo quando procuramos escapar à sua tirania avassaladora, o motel é, de fato, um "locus" privilegiado para que se possa entender o funcionamento de uma sociedade de tradição jurídica greco-romana e latina como a nossa, na qual a mulher, a criança e os "escravos" (atuais trabalhadores braçais) não têm os mesmos direitos constituídos que o homem adulto, pertencente à elite ou às classes mais abastadas da população.
IHU On-Line - Qual a influência kitsch para esses espaços?
Dinah Guimaraens - A influência kitsch (3) nas fachadas e na decoração interna dos motéis destaca o aspecto grotesco, brutalista ou "cafona" de seus projetos arquitetônicos, marcando assim, através do "exótico", uma diferenciação espacial, visual e semiótica na cidade para esses "locais de pecado". Seria então possível indagar se é o Kitsch que, entre outros fatores estéticos, cria uma "marca registrada" para os motéis no centro urbano? É interessante lembrar, com o sociólogo Ezra Park (4), que desde a Idade Média existem "zonas de vício" nas metrópoles. Como a estética dos motéis caracteriza-se em contraposição a um aspecto "limpo" ou "simples" das moradias, o kitsch pode ser apontado como uma bricolagem de estilos espúrios e desconexos que resulta em uma arquitetura considerada de "mau gosto".
IHU On-Line - Qual a significação social deste tipo de estabelecimento em relação a seus aspectos espaciais?
Dinah Guimaraens - O significado social do espaço do motel nos remete a uma sociedade que pensa o corpo na saúde e na doença com a mesma forma arquitetônica. No livro, Cavalcanti e eu exploramos a inter-relação entre a planta do motel e do hospital, as duas apresentando características idênticas. Seria, então, possível afirmar que o motel, como expressão estrutural das fantasias sexuais do homem brasileiro, situa-se no lado do prazer e do encantamento, enquanto o hospital ou casa-de-saúde representa o pólo oposto, da dor e do sofrimento.
IHU On-Line - A senhora fez uma análise semiótica das fachadas. Que simbolismos fazem parte destas construções no imaginário do ser humano?
Dinah Guimaraens - A análise semiótica das fachadas de motéis revela aspectos surpreendentes. Quais são os nomes eleitos pelos seus donos e construtores? Geralmente, aqueles que remetem para lugares distantes, exóticos ou chiques como Lugano, Bariloche, Bagdá etc. O francês, como língua romântica por excelência, aparece em “Mon Amour”, “Le Chateau” etc. Já o inglês revela-se em nomes como "Playboy", "Mayflower" etc. E os nomes a serem evitados para denominar um motel? É claro que nomes de santos como Nossa Senhora de Fátima ou de figuras militares ou cívicas como Presidente Vargas ou Dom Pedro II.
IHU On-Line - E os símbolos preferidos?
Dinah Guimaraens – São aquelas referências ao corpo feminino a ser possuído, com animais selvagens (tigres, tubarões) atacando mulheres, ou então símbolos fálico-armamentistas, como canhões, torpedos, indicando o poderio masculino sobre a fêmea conquistada. É Lacan quem nos lembra que a sexualidade masculina reparte o corpo feminino em pedaços, eliminando muitas vezes a cabeça e destacando as partes posteriores como elementos sexualizáveis...
IHU On-Line - A senhora concluiu que há dois programas arquitetônicos diversos e antagônicos nos motéis cariocas. Que programas são esses?
Dinah Guimaraens - Os dois programas antagônicos destacam a parte da frente ou destinada ao hóspede, contrapondo-se ao "backstage", ou a parte de trás, destinada aos funcionários e proprietários do motel. Tal conceituação é feita pelo antropólogo Erwin Goffman (5) para explicar o funcionamento da própria sociedade ocidental, na qual, para a parte da frente composta pela elite e pelas classes médias funcionar, é necessária uma parte traseira composta por elementos de baixa renda. Daí que o papel do "paraíba" é fundamental para o funcionamento do motel, aquele ser de quem não nos lembramos pela invisibilidade ditada por sua classe social.
IHU On-Line - Alguns críticos avaliam que a senhora e Lauro Cavalcanti desmistificaram a postura rígida da tradição arquitetônica brasileira. Como isso foi possível?
Dinah Guimaraens - A desmistificação de uma arquitetura oficial foi possível, em nossas análises, ao enfatizarmos aqueles exemplos arquitetônicos vernaculares ou "populares" que nunca haviam sido considerados, até então, como legítima expressão cultural brasileira, mas que compõem o repertório de nossa realidade social urbana.
IHU On-Line - Quais os apelos que a senhora encontrou nessa pesquisa?
Dinah Guimaraens - O principal apelo da pesquisa é remeter para a investigação da cultura cotidiana enquanto legítima expressão da "alma" brasileira. Neste sentido, o motel revela o modo de ser e de viver do nosso povo, já que não há nada igual a esta instituição para "se fazer amor" fora do Brasil, somente havendo algo similar no Japão.
IHU On-Line - A arte kitsch, presente na arquitetura de alguns motéis pesquisados, também é muito encontrada nas fachas da algumas igrejas. É possível estabelecer algum tipo de relação, mesmo que simbólica, na fachada desses estabelecimentos tão antagônicos, mas que se utilizam da mesma arte?
Dinah Guimaraens - As fachadas de igrejas, principalmente aquelas referentes a um catolicismo popular ou aos cultos evangélicos, lançam mão de símbolos kitsch para expressar o sagrado, enquanto o motel revela valores profanos. Se pensarmos o mundo sob uma ótica bakhtiniana, o grotesco do kitsch religioso e profano aproxima-se na carnavalização da sociedade, da qual a expressão popular lança mão para estabelecer uma estética própria e extremamente criativa.
Notas:
(1) Gilberto Velho: Doutor em antropologia em Ciências Humanas. Antropólogo. Atualmente, é professor da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de Portugal. Também é Membro do Comitê de Ciência e Tecnologia da Prefeitura do Rio de Janeiro.
(2) Roberto DaMatta: É um importante antropólogo brasileiro. Realizou pesquisas etnológicas entre os índios Gaviões e Apinayé. Foi pioneiro nos estudos de rituais e festiivais em sociedades industriais, tendo investigado o Brasil como sociedade e sistema cultural por meio do carnaval, do futebol, da música, da comida, da cidadania, da mulher, da morte, do jogo do bicho e das categorias de tempo e espaço.
(3) Kitsch: É um termo de origem alemã que é usado para categorizar objetos de valor estético distorcidos e/ou exagerados, que são considerados inferiores à sua cópia existente. São freqüentemente associados à predileção do gosto mediano e pela pretensão de, fazendo uso de estereótipos e chavões que não são autênticos, tomar para si valores de uma tradição cultural privilegiada.
(4) Ezra Park: foi um sociólogo norte americano e um dos fundadores da Escola de Chicago. Park influenciou no desenvolvimento da teoria da assimilação que era pertinente aos imigrantes dos Estados Unidos.
(5) Erwin Goffman: foi um sociólogo e escritor canadense. Estudou a interacção social no dia-a-da, especialmente em lugares públicos, principalmente no seu livro "A representação do Eu na vida Cotidiana".
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Motel. Espaço da aventura, do perigo, da individualidade. Entrevista especial com Dinah Guimaraens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU