27 Janeiro 2016
“O ideal seria estarmos construindo espaços na rede que permitam o debate, que servem ao pensamento e à formação autônoma, com informações que nos permitam, sem passar panos quentes, distinguirmos quais são os campos opostos e onde cada um está”, afirma o pesquisador.
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As diversas camadas que formam o que habitualmente “chamamos de internet”, são composta por diferentes desafios políticos, os quais, de modo geral, estão divididos em dois grupos: o daqueles “que pensam a internet em seus princípios originais, como uma grande rede de comunicação e de compartilhamento de conhecimento, e aqueles atores que querem a internet voltada fundamentalmente para o comércio, de coisas materiais, de produtos culturais e de dados pessoais”, descreve Rafael Evangelista na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, por e-mail.
O “embate” entre esses dois modelos pelo que deve constituir a internet, explica o pesquisador, ocorre tanto na camada “física”, onde há uma “briga mais árida e técnica” que envolvem questões como a neutralidade de rede e o uso do espectro, quanto na camada da “web propriamente dita”, com a qual temos mais contato via os navegadores, especialmente nas redes sociais. Entre as redes que concentram a maior parte da atenção das pessoas, Evangelista comenta o uso do Facebook, que “virou uma web por cima da web”, apesar de ser uma “rede privada, uma empresa que tem dono, funciona a partir das regras e da geopolítica de um país e que não preza pela abertura, igualdade e interoperabilidade como os padrões estabelecidos da internet”.
Outro ponto de disputa na internet é a questão da segurança e a venda de informações dos usuários para empresas. “O ‘produto’ que essas empresas vendem ao mercado publicitário são as informações que todos nós, usuários da web, produzimos em nossos perfis nas redes sociais. Por mais que elas nos pareçam, e sejam, triviais, essas informações são aquilo com que bilhões de pessoas passam o dia se entretendo. E, organizadas e classificadas, orientam e dão origem a negócios milionários”, afirma.
Na entrevista a seguir, Rafael Evangelista também analisa o comportamento de usuários nas redes tendo em vista a velocidade com que conteúdos são compartilhados. “Meu ponto é que essa atitude mental que a velocidade produz, a do estabelecimento de certezas muito rápidas e julgamentos apressados, não favorece o bom debate, o construtivo, que vá dar origem a estratégias mais a longo prazo e que miram não a perseguição de indivíduos, mas o diagnóstico sobre as forças que fazem esses indivíduos agirem ou pensarem de certa forma”, conclui.
Rafael Evangelista é mestre em Linguística e doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Professor do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural da Unicamp, também é membro do grupo de pesquisa Informação, Comunicação, Tecnologia e Sociedade (icts) e da Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (lavits.org).
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – De uma maneira geral, de que modo você avalia o ambiente da internet hoje?
Rafael Evangelista - É preciso distinguir as diversas camadas do que chamamos internet. Cada uma delas comporta diferentes desafios políticos. Mas, se formos traçar um quadro geral, dá para dizer que o embate é entre aqueles que pensam a internet em seus princípios originais, como uma grande rede de comunicação e de compartilhamento de conhecimento, e aqueles atores que querem a internet voltada fundamentalmente para o comércio, de coisas materiais, de produtos culturais e de dados pessoais.
Uma dessas camadas é a física, dos cabos, e dos padrões de funcionamento. Nessa briga, mais árida e técnica, estão questões como a neutralidade de rede que, se quebrada, permite que aqueles que têm mais poder e dinheiro circulem seus conteúdos com prioridade, “matando” os pequenos que querem competir com os grandes e dificultando muito o trabalho daqueles que nem querem competir e não estão nessa como um negócio, só querem produzir comunicação alternativa. Nessa briga aí também entra a questão do uso do espectro, ou seja, a tentativa dessas mesmas grandes empresas de tomarem para si o direito exclusivo de uso de uma faixa de frequência eletromagnética. Direito que deveria ser administrado como um bem coletivo, de todos.
A web por cima da web
Outra camada é a web propriamente dita, aquilo com que temos contato mais direto via nossos navegadores. Essa foi colonizada pelas redes sociais. Quando falo no plural parece que são várias, mas estou falando de algumas poucas, que se contam nos dedos de uma mão. A principal delas, o Facebook, virou quase como um segundo sistema operacional para as pessoas. Ela concentra email, blog, comunicador instantâneo, repositório de fotos, fórum de discussão, telefone etc. Com isso, amealhou um poder político imenso. Mesmo os jornais estão abdicando de darem atenção aos sites próprios para priorizarem o Facebook, que concentra grande parte da atenção e navegação das pessoas. Virou uma web por cima da web. Mas é uma rede privada, uma empresa que tem dono, funciona a partir das regras e da geopolítica de um país e que não preza pela abertura, igualdade e interoperabilidade como os padrões estabelecidos da internet.
Atravessando essas camadas há ainda a questão da vigilância, operada em parceria entre governos e empresas dos países centrais. Ela está nos cabos e nos servidores, na infraestrutura física, nas máquinas. Mas está também na web, é o princípio que viabiliza a extração de valor operada pelas empresas que administram as empresas mais lucrativas da rede. O "produto" que essas empresas vendem ao mercado publicitário são as informações que todos nós, usuários da web, produzimos em nossos perfis nas redes sociais. Por mais que elas nos pareçam, e sejam, triviais, essas informações são aquilo com que bilhões de pessoas passam o dia se entretendo. E, organizadas e classificadas, orientam e dão origem a negócios milionários.
IHU On-Line - Como entender e equalizar a dualidade da internet que por um lado propícia o acesso a uma gama de informações, mas por outro impõe o desafio de compreender, selecionar e gerenciar a vasta quantidade de material disponível?
Rafael Evangelista - Veja bem, não se trata de diminuir o valor da internet, é justamente o contrário, o caso é valorizar seu imenso potencial como rede de comunicação e de compartilhamento do conhecimento. Há iniciativas belíssimas nesse sentido, que já renderam imensos frutos em termos de criação coletiva, invenção, acesso ao conhecimento. O software livre, tanto como movimento político como em termos de criação técnica coletiva, compartilhada e livre, é algo sensacional. A Wikipedia pode não ser perfeita, mas é, hoje, um patrimônio inestimável em termos de acesso a informações. O mesmo com outros projetos de criação coletiva e colaborativa.
Eu acho que faz mais sentido ver as coisas como processos e batalhas coletivas do que escolhas individuais e descoladas do cotidiano. Sim, quanto mais esperto e educado o sujeito, melhor ele vai conseguir selecionar as informações de qualidade e o conhecimento razoável e equilibrado. Continua sendo possível fazer isso hoje. Mas é cada vez mais difícil, por um lado porque o estímulo à produção de mais profundidade vai se esvaindo, em favor dos conteúdos mais virais, superficiais e imediatos. Quantos profissionais da comunicação estão ocupados, hoje, inclusive sendo pagos por grandes e tradicionais empresas jornalísticas, para produzir algo que vá gerar cliques e visualização de publicidade? Nada contra o humor e o entretenimento, mas no sistema atual dá mais lucro contratar um colunista polêmico do que manter bons jornalistas investigativos. E, quando vão para rua, viram independentes, os jornalistas vivem um eterno desvio de função, obrigados a se tornarem empresários empreendedores se quiserem se manter fazendo algo socialmente importante.
Mas, como estava dizendo, além da questão da produção há o problema do recebimento, da avalanche de coisas. Viciados e dependentes da timeline do Facebook (ou do Twitter), presos a ela, o que nos chega é o mais compartilhado, o mais imediato, o mais popular, seja globalmente ou dentro do nosso nicho de amigos e opinião. Um amigo que não lê links das postagens que compartilha, só o clique, é capaz de transmitir muito mais do que outro que se dá ao trabalho de ler algo com profundidade.
“Trocamos mensagens nas redes sociais, mas vivemos assombrados pelo medo da interceptação, da manipulação, da violação da privacidade” |
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O conselho ao internauta preocupado seria o básico, o cuidado com o que compartilha. Mas isso envolve um esforço individual, cujo efeito será marginal, precisamos pensar no que as estruturas produzem, ainda que não deterministicamente.
IHU On-Line - As redes sociais, da maneira como estão organizadas, podem favorecer o reforço e manutenção de estereótipos? Por quê? De que modo?
Rafael Evangelista - Porque, como empreendimentos comerciais, sua lógica é a de venda de produtos. De todos os tipos, não só objetos de consumo. E, para melhor vender produtos, interessa construir nichos mensuráveis e com acesso exclusivo. Esses nichos tendem a se auto-validarem e construírem suas certezas paralelas. Há um tempo se fala em economia da cauda longa: em vez de se vender poucas variedades de coisas para milhões de pessoas (um astro pop, por exemplo), a venda de muitas coisas variadas a públicos específicos distintos (o pop continua existindo, mas é um dos nichos). É um mercado de controle mais difícil e, também por isso, mais algoritmizado.
É um desenvolvimento que não é planejado, os atores econômicos vão se aproveitando de oportunidades e constroem suas estruturas de venda.
Não quero demonizar a internet comercial; a ideia não é essa. O problema está, entre outros, nos fechamentos que vão surgindo na tentativa de viabilização e crescimento comercial infinito. Um caso interessante é o do Twitter. Quando surgiu, embora não tivesse código livre nem nenhuma ideologia desse tipo, sua estrutura de funcionamento era bastante interoperável. Dava para fazer muita coisa com texto e tudo era exportável via RSS, um padrão de comunicação com outras plataformas de leitura. Isso foi se fechando em favor do controle por parte da empresa e da exploração de publicidade. Ainda é melhor que o Facebook, mas os usuários e sua produção são mais controlados como um patrimônio do Twitter.
IHU On-Line – Em um de seus trabalhos você menciona que é necessária outra atitude mental e de atenção no contato com os conteúdos da internet, especialmente os das redes sociais. Por quê? Que tipo de atitude seria essa?
Rafael Evangelista - Não se trata de uma certa atitude que deveríamos desenvolver, mas de uma certa subjetivação que a profusão de informações e as estruturas em favor da velocidade dos compartilhamentos vão produzindo. É algo que dá para se perceber nas pessoas, uma dificuldade crescente em manter a atenção, seja quando estão na web ou no mundo real. Também é uma queixa comum dos professores, como as pessoas estão imperativas e precisam de estímulos constantes. Meu ponto é que essa atitude mental que a velocidade produz, a do estabelecimento de certezas muito rápidas e julgamentos apressados, não favorece o bom debate, o construtivo, que vá dar origem a estratégias mais a longo prazo e que miram não a perseguição de indivíduos, mas o diagnóstico sobre as forças que fazem esses indivíduos agirem ou pensarem de certa forma. O ideal seria estarmos construindo espaços na rede que permitam o debate, que servem ao pensamento e à formação autônoma, com informações que nos permitam, sem passar panos quentes, distinguirmos quais são os campos opostos e onde cada um está. Mas, como digo no texto, o bom debate não gera tantos cliques como o ataque zumbi.
IHU On-Line – A lógica do lucro pode ter capturado a potência comunicativa e política das redes? Por quê? De que modo?
Rafael Evangelista - É difícil afirmar algo definitivo, não podemos ignorar a capacidade política e de resistência das pessoas. Rebeldia e invenção contra o controle que já se mostrou presente na história. Mas, hoje, há sim um alto grau de captura dessa força, minada por uma infraestrutura privada e completamente não transparente de comunicação. Trocamos mensagens nas redes sociais, mas vivemos assombrados pelo medo da interceptação, da manipulação, da violação da privacidade. Enviamos a mensagem, mas não sabemos a quantos chegou e se chegou. Frequentemente algum conteúdo some, talvez por falha técnica, e as pessoas passam a acusar a rede social. Aí, mais do que prova de manipulação, porque falhas técnicas também existem, o caso ilustra como sabemos não ter controle sobre o meio em que publicamos nossas ideias.
E, claro, há o medo da vigilância dos Estados, nacionais ou estrangeiros, além das forças policiais que comprometem o direito de manifestação nas ruas e o fazem isso também vigiando as redes.
Mas tudo isso se dá também enquanto foi se desenvolvendo um ambiente econômico de fragilidade das garantias de condições de vida que compromete a liberdade de manifestação e opinião. Fala-se hoje em empregabilidade, a capacidade dos indivíduos em conseguirem trabalho remunerado, que muitas vezes é eventual e precário. E é via redes sociais que muitas pessoas conseguem esse tipo de trabalho, mostram a si mesmas e constroem relações que levam à sobrevivência profissional. Trabalham construindo uma imagem de si mesmas e de suas habilidades criativas, para conseguirem trabalho remunerado em um momento seguinte.
Não se espera que as redes resolvam esse problema de liberdade, que vai além delas, mas é difícil equacionar o mundo da livre expressão e do exercício da política com o da vida de profissional precário.
“O mercado do entretenimento, em particular, se apropria cada vez mais desse caldeirão de vidas expostas em rede como matéria-prima de suas produções” |
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IHU On-Line – Que implicações podem trazer a exacerbação da lógica comercial da internet que, conforme você cita, “transforma o fluxo de informações em ativo financeiro”? De que modo?
Rafael Evangelista - Eu falava sobre como o profissional, em especial da indústria criativa, trabalha para trabalhar, produz de graça, para um dia ser pago. Bem, esse trabalho de graça é apropriado por alguém. Nas redes sociais comerciais o que as empresas fazem é usar esse conteúdo comunicacional, que pode ser desde um vídeo engraçado a um intenso debate político, para atrair um público, o qual devota atenção a esses conteúdos, é submetido aos anúncios publicitários direcionados vendidos pela empresa e oferece ao site seus dados pessoais, árvore de relações, gostos e produções para serem apropriados economicamente. Sim, essa empresa presta um serviço hospedando aqueles conteúdos e os perfis das pessoas, e estas são, em tese, livres para não usarem as redes. Mas essa liberdade é altamente relativa, dada a centralidade dessas redes na vida social e profissional.
O mercado do entretenimento, em particular, se apropria cada vez mais desse caldeirão de vidas expostas em rede como matéria-prima de suas produções. Às vezes os sites de entretenimento chegam a explorar por dias o inusitado ou o humor involuntário contido num vídeo que "vaza" ou é encontrado em algum canto da internet. Em geral, é o vídeo de alguém pobre ou em desvantagem social. Mas, mesmo que o humor não desrespeite quem está no vídeo, esse material circula recebendo novos olhares, novas adições -- "ei, veja como ele mexe a cabeça de um jeito engraçado", "veja como ali no fundo alguém tropeça" -- e vira peça de entretenimento a ser explorada comercialmente múltiplas vezes. Por vários atores econômicos, do site que descobre o vídeo ao outro que o reinterpreta, da rede por onde ele circula ao provedor que dá acesso a quem quer estar por dentro do último “meme”.
O entendimento dessa lógica completa está só no começo. A questão é que as redes sociais comerciais, e os sites da web indiretamente, vão se desenvolvendo em torno da exploração dessas circulações, que pode ser do vídeo de humor ou da polêmica política. Para o Facebook, até um certo limite que não leve à repulsa de seus usuários, tanto faz. Há relatos de que desenvolvedores de aplicativos para celulares têm procurado sociólogos e psicólogos que estudam jogos de azar interessados no famoso "pain point", aquele momento em que, depois de muito perder, o jogador resolve deixar a mesa e ir pra casa. Evitar o "pain point" é o objetivo dos cassinos, assim como essa é a busca dos que fazem aplicativos que pretendem prender nossa atenção.
(Por Leslie Chaves e Patricia Fachin)
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A internet em disputa: tensões e desafios políticos. Entrevista especial com Rafael Evangelista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU