22 Março 2014
“Vivemos tempos de desencanto. Cresceu o ceticismo, o egoísmo, a frustração dos ideais sociais e um salve-se quem puder. Estamos diante de grandes desafios sobre o que podemos e devemos fazer. Por outro lado, temos a oportunidade de construir sentidos novos para nossa existência”, acredita o psicanalista Abrão Slavutzky.
Segundo o psicanalista Abrão Slavutzky, a psicanálise não tem um conceito para o mal. No entanto, como algo inerente à condição humana, é possível compreender a maldade a partir das punções que ela gera sobre o indivíduo. “O mal não se faz só para o outro de forma sádica, mas a si mesmo de forma masoquista e melancólica”, esclarece. “Há em todo ser humano a ambivalência, conflitos de ambivalência, quando o amor e o ódio são dirigidos à mesma pessoa. Logo, tanto fazemos o bem ao outro como o mal”, afirma ele, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
O mal fazia parte da centralidade do pensamento de Hannah Arendt, autora, entre outros, de Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal (São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Eichmann era um burocrata responsável pelo transporte dos judeus para os campos de concentração, mas defendia firmemente que nunca havia matado um único judeu – afinal, o que lá acontecia uma vez transportados já não era de sua responsabilidade. A desumanização do homem em favor da técnica fez Arendt cunhar o conceito do mal “banal”, que se diferencia de um mal tradicional, diabólico.
A Shoah, como é conhecido o holocausto judeu, é um marco na historiografia mundial e elevou a novos níveis a crueldade do ser humano. Este é o tema de estudo de Slavutzky, que sonda os espaços do cruel no ser humano a partir do humor. “Creio que a crueldade deveria ser estudada ao lado do humor, em especial o humor negro. Quem sabe não é uma forma de diminuir o peso de certo inferno que é a crueldade?”.
No caso judeu, Slavutzky resgata que o humor estava presente mesmo durante os tempos terríveis do holocausto. Segundo ele, os prisioneiros eram obrigados a fazer suas necessidades um do lado do outro, em uma grande mesa com buracos. Tal situação degradante era acompanhada por um único soldado nazista, que por sua tarefa de vigília recebeu o apelido de Senhor da merda. “Ora, essa história se espalhou e divertiu a muitos que se sentiram superiores ao soldado de merda. Pode parecer pouco, mas para quem estava no inferno e podia dar um meio sorriso já era muito”.
Abrão Slavutzky é psicanalista e médico psiquiatra com formação em Buenos Aires. Graduou-se em medicina em 1971, na Fundação Católica de Medicina do Rio Grande do Sul. Desde 2001, é colaborador do jornal Zero Hora e de diversas revistas. Entre outros, é um dos autores e organizadores de Seria trágico... se não fosse cômico - humor e psicanálise (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), Quem pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos, 2009) e Psicanálise e cultura (Rio de Janeiro: Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou são O Dever da Memória - O Levante do Gueto de Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser – depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998).
No próximo dia 25, terça-feira, às 19h, Abrão Slavutzky lançará o livro Humor é coisa séria, na Livraria Cultura, em Porto Alegre, com a participação de Cíntia Moscovich e Mário Corso.
Foto: Vidráguas |
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é o mal para a psicanálise?
Abrão Slavutzky - A psicanálise não tem um conceito para o mal, palavra estudada desde a filosofia através da moral e da metafísica. Entretanto, para se pensar o mal desde a psicanálise, é indispensável saber que o mal não se faz só para o outro de forma sádica, mas a si mesmo de forma masoquista e melancólica. Além do mais, há em todo ser humano a ambivalência, conflitos de ambivalência, quando o amor e o ódio são dirigidos à mesma pessoa. Logo, tanto fazemos o bem ao outro como o mal. Por outro lado, Freud conceitualizou o mal-estar em uma obra-chave para o tema do mal, especialmente na modernidade. Em várias passagens dessa obra escrita em 1929, O mal-estar na cultura (Porto Alegre: L&PM, 2010), em sua maturidade de pensador, ele escreveu frases como: “a inclinação agressiva é uma disposição pulsional autônoma, originária do ser humano”.
Destaca que, sob circunstâncias propícias, quando estão ausentes as forças anímicas contrárias que inibem a agressão cruel, cai a máscara dos seres humanos como bestas selvagens. O próximo pode ser um objeto sexual, satisfazer nele sua agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, despojá-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo. Ressalta que tudo isso é possível graças à pulsão destrutiva, decorrente da pulsão da morte.
IHU On-Line - Qual é a relação entre a crueldade e a condição humana?
Abrão Slavutzky - Um dos capítulos de Quem pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009) foi “A crueldade é humana”, e pensei até se não era um título cruel. Ainda é difícil suportar que a crueldade constitui a condição humana, por isso, às vezes, se diz crueldade desumana. Antes de seguir, conto uma história sobre a crueldade humana do livro recém-citado O mal-estar na cultura. Freud se refere a um escrito de Heinrich Heine, a quem considerava um grande poeta, como realmente foi. Heine confessa: “Eu tenho as intenções pacíficas. Meus desejos são: uma modesta cabana com o teto de palha, mas com um bom leito, boa comida, leite e pão muito frescos; em frente à janela, flores, e algumas formosas árvores à minha porta; e se o bom Deus quer me fazer mesmo sortudo, que me dê a alegria de que destas árvores estejam dependurados seis ou sete de meus inimigos. De todo o coração lhes perdoarei, mortos, todas as maldades que me fizeram. Sim: se deve perdoar a seus inimigos, mas não antes que estejam enforcados”. Freud cita mais de uma vez essa passagem em que Heine, com uma fina ironia, brinca da nossa caridade através de uma gozação. Começa suave, alegre, até que pode expressar ao final sua fantasia agressiva, cruel, comum nos seres humanos. O humor é uma expressão tanto da sexualidade como da agressividade, e uma das expressões mais criativas e saudáveis.
Óbvio que nós não somos só cruéis sempre, mas na História sobra a crueldade quando está em jogo o poder. Crueldade e poder andam juntos tanto no mundo público como no privado.
Para exercer a crueldade é preciso poder sobre si, no caso da mortificação, ou sobre outro expressando um gozo agressivo. Esse é um tema central tanto nas relações interpessoais como na política e na História. Poder e crueldade estão associados à paranoia, uma dimensão essencial da condição humana e das rivalidades fraternas. Recordo que o primeiro crime da Bíblia é quando Caim mata Abel, por inveja, rivalidade diante do Todo-poderoso. Às vezes, penso que, se Ele tivesse aceitado a oferenda do “brabo” Caim, quem sabe a história da humanidade tivesse sido outra.
Muitos pensadores, como Jacques Derrida e Edgar Morin, escreveram, preocupados, sobre a crueldade nos últimos anos. Devemos, sim, nos ocupar daquela que pode ser a maior ferida narcisista da humanidade, quem sabe não é o problema dos problemas? A psicanálise esboçou várias respostas para se entender a crueldade através da pulsão de morte. Sua visão do ser humano foi marcada, certamente, pela Primeira Guerra Mundial (que está fazendo cem anos em 2014), pois em 1920 Freud escreveu Mais além do princípio do prazer, quando introduz o conceito de pulsão de morte. Pulsão da qual pode se desdobrar em novos conceitos como pulsão de destruição e compulsão a repetição. Lacan introduziu a expressão “vontade de destruição” como um gozo poderoso. De qualquer forma, a pulsão de morte e a pulsão de vida devem ser pensadas desde suas quatro características: Pressão, Alvo, Objeto e Fonte.
IHU On-Line - Em que sentido o mal se manifesta e se engendra em contextos sociopolíticos e culturais, sobretudo a partir do século XXI?
“Pode parecer pouco, mas para quem estava no inferno e podia dar um meio sorriso já era muito”
Abrão Slavutzky - Antes de entrar no século XXI, convém recuar ao tempo em que a crueldade se incrementou de forma quase irreversível. Recuar aos tempos em que se iniciou a agricultura, há mais ou menos doze mil anos. O arqueólogo Richard Leakey, em O Povo do Lago – O homem, suas origens, natureza e futuro, pergunta se de caçador a agricultor houve um salto gigantesco positivo ou um passo fatal. A agricultura trouxe um incrível aumento da agressividade, da luta pelo poder, da criação de novas armas com a fixação do homem na terra. O paradoxo é que ao mesmo tempo ocorreu um salto de criatividade, um salto no conhecimento humano, acompanhado de um incremento da destrutividade na busca da vitória sobre o outro, a outra tribo, a outra civilização.
A guerra, como tudo, tem sua história, como tão bem escreveu, entre outros, John Keegan em seu livro Uma história da guerra (São Paulo: Companhia de Bolso, 2006). Na sua leitura fica claro que a guerra não é a continuação da política por outros meios, como escreveu Clausewitz em Da guerra (São Paulo: WMF Martins Fontes, 1996). A guerra precede o Estado, a diplomacia, em vários milênios. Ela é quase tão antiga como o homem, pois a guerra atinge o coração humano, sua alma, através do desejo de poder, do orgulho, da emoção suprema, da capacidade de matar. Para se entender os últimos cem anos, é necessário conhecer como a guerra evoluiu junto ao poder econômico na sociedade. Na verdade, as duas guerras mundiais foram guerras anunciadas, desejadas mesmo. A Primeira Guerra, gerada por disputas de terras, de mercado, despertou o entusiasmo de quase toda a população da Europa, que cantavam felizes indo à guerra. Já a Segunda Guerra foi quase uma continuação da primeira, ajudada muito pela crise capitalista de 1929, pela ascensão do nazismo liderado por Hitler diante da quase paralisia das potências como Inglaterra e França. Tudo se somou em termos de fatores históricos, sociais e econômicos para uma guerra que começou em 1914 e terminou em 1945, com um intervalo de uns vinte anos.
IHU On-Line - Qual é o lugar do mal na racionalidade moderna, e qual é a sua relação com a técnica e a impessoalidade?
Abrão Slavutzky - Há cem anos, mais ou menos, houve escritores como Franz Kafka que perceberam o poder da burocracia, da Justiça, do poder, da modernidade, esmagando o ser humano. Reler seus livros como A metamorfose (São Paulo: Companhia das Letras, 1985) e O processo (São Paulo: Companhia de Bolso, 2011) gera espanto pela sua clarividência do futuro. Seus estudiosos chegam a afirmar que ele pressentiu, em sua ficção, o terrível nazismo que estava por ocorrer. Nosso mundo ainda hoje pode se definir como kafkiano.
Esse adjetivo exprime, na visão de Milan Kundera, um mundo que não passa de uma única e imensa instituição labiríntica, da qual os indivíduos não podem escapar e a qual não podem compreender. A existência física do homem não passaria de uma sombra e uma máquina de autoculpa. O que escapa a muitos estudiosos do autor de Cartas a meu pai (Porto Alegre: L&PM, 2004) é seu sentido de humor, e isso Walter Benjamin salienta em uma carta a Gershom Scholem: “Cada vez mais me parece que o elemento essencial em Kafka era o humor”. Creio que a crueldade deveria ser estudada ao lado do humor, em especial o humor negro. Quem sabe não é uma forma de diminuir o peso de certo inferno que é a crueldade?
IHU On-Line - Em que aspectos a Shoah é um dos eventos mais emblemáticos para analisarmos o mal que espreita dentro de cada um?
Abrão Slavutzky - Em boa medida, a Shoah, o genocídio que sofreu o povo judeu, foi uma surpresa para todos. Há fortes indícios de que a Solução Final, como o nazismo chamou os campos de extermínio com suas câmaras de gás, ocorre quando surge a possibilidade de a Alemanha perder a guerra. Foi quando começou o fracasso diante da União Soviética, na batalha de Stalingrado, entre outras.
Creio que a Shoah não desaparecerá, ela permanecerá como um desafio para se pensar a loucura que faz parte da condição humana. Não temos o direito de seguir sendo ingênuos sobre quem somos ou sobre quem podemos chegar a ser em certas circunstâncias. Há em todo ser humano um par complexo que se chama masoquismo/sadismo. Ou seja: desfrutamos do mal, seja o que ocorre conosco, seja o que somos capazes de fazer ao outro. Em outras palavras: somos masoquistas e sádicos em proporções diferentes, que se manifestam em situações propícias.
Voltando à Shoah: o povo judeu viveu dois mil anos sendo expulso de quase todos os lugares, e aprendeu a viver na incerteza. Já diante do nazismo esteve completamente desamparado, não imaginou a que nível poderia chegar a crueldade humana. Crueldade que se viu na própria polícia judaica dentro dos guetos e campos de concentração.
IHU On-Line - Quais são os impactos do mal na organização da sociedade desde o século passado?
Abrão Slavutzky - Há muitos impactos, como a loucura pelo lucro a qualquer custo e o desprezo pelo ser humano. Um empobrecimento espiritual expresso pelo esvaziamento da fraternidade e da igualdade. Há um crescimento do sentimento de desamparo diante da violência, do vazio de sentido, do aumento do consumo das drogas. Vivemos tempos de desencanto. Cresceu o ceticismo, o egoísmo, a frustração dos ideais sociais e um salve-se quem puder. Ou seja: salvem-se os mais fortes e poderosos e que se esqueçam os sem teto, sem comida, sem terra, sem saúde. Estamos diante de grandes desafios sobre o que podemos e devemos fazer. Por outro lado, temos a oportunidade de construir sentidos novos para nossa existência.
IHU On-Line - Qual foi a repercussão da publicação de Eichmann em Jerusalém (São Paulo: Companhia das Letras, 1999) junto à comunidade judaica? Quais foram as principais ideias de Hannah Arendt que foram contestadas pelos judeus?
Abrão Slavutzky - Não há uma só comunidade judaica, ao contrário, há muitas. Uma primeira divisão seria a comunidade religiosa e a profana; uma segunda seriam as grandes diferenças entre o judaísmo ortodoxo e o que não é; o mesmo entre os não religiosos, pois há os que podem questionar tanto o povo judeu como Israel e os que só podem elogiar. Do pouco que sei da pergunta, Hannah Arendt foi criticada por intelectuais, pela forma como tratou os judeus no seu livro. Fria, distante, em mais de trezentas páginas de livro não se percebe sua compaixão.
Crítica feroz aos líderes judeus, às vezes com razão, desprezando o governo israeli, e uma tolerância com Adolf Eichmann surpreendente. No final do livro, página 310, no pós-escrito, afirma que Eichmann simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. Assegura que ele não sabia pensar, e portanto seu mal era banal, Eichmann era superficial. Sei que é uma ousadia escrever que a grande Hannah foi banal na sua reflexão, mas é o que penso, pois Eichmann esteve junto a onze grandes líderes do nazismo na reunião de janeiro de 1942, em que foi decidida a Solução Final, e era o responsável por todo o transporte dos condenados à morte.
IHU On-Line - Em que medida o conceito de banalidade do mal arendtiano ajuda na reflexão do mal como constitutivo da natureza humana?
“Quem sabe não é uma forma de diminuir o peso de certo inferno que é a crueldade?”
Abrão Slavutzky - Conceito de banalidade do mal? Hannah Arendt nunca conceitualizou banalidade do mal, pelo que se sabe. O subtítulo de seu livro Eichmann em Jerusalém é: “Um relato sobre a banalidade do mal”. Foi esse subtítulo que deu ao livro um espaço na mídia e nos debates por ser Hannah Arendt uma pensadora de primeira linha. Sou fã dessa mulher pelo seu livro Origens do Totalitarismo, uma análise consistente do antissemitismo, do imperialismo e do totalitarismo.
Gosto mais desse livro do que de A Condição Humana, que também é bom, e de Homens em Tempos Sombrios. Agora, em seu livro sobre Eichmann ela não foi a fundo sobre o nazismo, como foi Saul Friedlander. Em seu premiado livro de história Alemanha Nazista e os Judeus, escreveu sobre Arendt: “Hannah Arendt coloca parte da responsabilidade pelo extermínio dos judeus da Europa diretamente sobre os ombros de vários grupos de liderança judaica: os Conselhos Judaicos, os Judenräte. Essa tese, em grande parte não comprovada, faz dos judeus colaboradores em sua própria destruição. Na verdade, toda a influência que as vítimas poderiam ter sobre o curso de sua própria vitimização era marginal, mas em algumas intervenções, sem dúvida, ocorreram (para o bem e para o mal)”.
Ela julgou Eichmann apenas vendo seu comportamento no julgamento, o que me pareceu superficial. Eichmann representou ser um simples funcionário, só um executor de ordens. Argumento que todos os nazistas e os que trabalharam para as ditaduras na repressão também dizem. Por que Hannah não seguiu a sugestão de seu grande amigo Karl Jaspers e conceitualizou a banalidade do mal?
Mistério, como mistério sua relação de proteção ao seu velho professor Heidegger, cuja fotografia estava em cima de sua mesa de trabalho até sua morte. Lembro que o autor de Ser e Tempo foi reitor na universidade durante o início do governo nazista, expulsando e perseguindo professores judeus. E, de forma arrogante, se manteve em silêncio, pelo que se sabe, sobre esse período negro da Alemanha.
IHU On-Line - Arendt insistiu, no epílogo do livro, em que seu relato sobre o julgamento de Eichmann não tratava de uma teoria sobre a natureza do mal. Em todo caso, como podemos compreender esse conceito dentro do contexto da Shoah?
Abrão Slavutzky - Se quem propõe que o mal pode ser banal não explica, não justifica sua expressão banalidade do mal, como vamos inventar agora uma justificativa? Hannah Arendt, em minha opinião, entendeu pouco do que ocorreu mesmo no nazismo. Muitas vezes, os líderes nazistas afirmaram que ou a humanidade será nazista ou judaica. Acreditavam que os judeus estavam por trás do comunismo e do capitalismo. Portanto, havia um só inimigo principal que eram os judeus. Na sua carta de despedida, Hitler repetiu seu ódio aos judeus.
Friedlander, na obra recém-citada, escreveu um capítulo sobre o Antissemitismo Redentor, diferente sobre tudo que era o antissemitismo antes do nazismo. Por fim: a Shoah é mais complexa e difícil de entender do que se imagina. Há um documentário feito por Alfred Hitchcock em 1945 – Memórias dos Campos –, feito na libertação dos judeus de Auschwitz, Bergen-Belsen, Buchenwald e Dachau. São cenas filmadas por soldados britânicos e soviéticos na hora mesma da libertação, e hoje já está na internet.
Entretanto, a Inglaterra decidiu não fazer público o documentário, ele está no Museu Imperial da Guerra, e só em 2015 será restaurado, para os 70 anos da libertação da Europa. As cenas são assustadoras, e dizem que Hitchcock esteve por semanas muito mal, sem poder trabalhar. Vi um documentário feito no gueto de Varsóvia pelos nazistas e fiquei angustiado, não foi fácil vê-lo todo. Vi para escrever no livro O dever da memória – O levante do gueto de Varsóvia (Porto Alegre: Editora Age, 2003).
IHU On-Line - Em que medida a Shoah e a peculiaridade que o mal assumiu nesse episódio são emblemáticos para compreendermos a política do nosso tempo?
Abrão Slavutzky - Não sou um estudioso da política, no máximo tento entender como nós, seres humanos, nos situamos diante do que ocorre à nossa volta. Se fosse escolher uma palavra para conversar sobre os dias atuais, quanto à política, proporia o desamparo como o verdadeiro mal-estar na cultura, hoje. Além do que sejamos sinceros: quem está mais ou menos orientado hoje em termos políticos? Estamos desenvolvendo a sabedoria da incerteza e a pensar labirinto.
IHU On-Line - Como podemos compreender o paradoxo de o povo judeu ter sofrido as piores atrocidades de que a humanidade tem notícia, de modo sistemático, e a postura beligerante assumida pelo Estado de Israel?
Abrão Slavutzky - Havia em Israel um grande movimento pela paz, o Shalom Achshav – Paz Agora –, que foi sendo esvaziado pelos atentados terroristas. Foram realizadas em Tel Aviv manifestações de cem mil pessoas ou mais a favor da paz. E foi numa delas que um fanático ortodoxo israeli assassinou o primeiro-ministro da época, Ytzhak Rabin. Sempre houve inimigos da paz tanto entre os israelis como entre os palestinos e árabes.
Quanto ao paradoxo que propõe a pergunta, talvez exista mesmo, pois depois de os judeus terem vivido tantas atrocidades, os israelis tendem a confiar mais em suas forças. Pelo outro lado, os palestinos, suas lideranças demoraram para construir um estado e hoje estão bem divididas. De qualquer forma, israelis e palestinos têm suas razões, ambos estão certos, ambos lutam pelos seus direitos, ambos se consideram os verdadeiros donos da terra. São vizinhos em clima de guerra constante, mas a situação já foi pior. J. B. Pontalis tem uma tese interessante sobre o fratricídio que ocorre nessa região, como na maioria das guerras. O tema da luta entre os irmãos ocupou uma boa parte de sua atenção ao final da vida desse destacado psicanalista e escritor, que morreu há um ano.
IHU On-Line - Qual é o nexo entre humor e crueldade no século XX?
Abrão Slavutzky - Obrigado pela pergunta, pois recém concluí o livro Humor é coisa séria, que trata do humor, seja no sentido de humor na psicanálise como do humor na cultura, na História.
Enfim o humor não só como estado de espírito, mas como visão de mundo numa célebre frase de Wittgenstein em Cultura e Valor (Coimbra: Edições 70, 2000). O século XX foi o auge da crueldade e do humor, a começar por Charles Chaplin, que transformou o cinema em arte das multidões. O humor é um antídoto à crueldade, permite expressar nossa agressividade com graça, o humor não atira para matar, mas para sorrir e nos divertir.
Voltando à Shoah, escrevi um capítulo sobre o humor, pois os judeus criaram nos guetos e campos um humor diante da crueldade.
Esse tema vem sendo mais estudado nos últimos anos, e dou um exemplo do humor diante da crueldade: em Auschwitz, havia um pavilhão com uma longa mesa estreita onde havia dezenas de buracos. Neles se sentavam os judeus, de costas um para o outro, um em cada buraco, que tinham minutos para fazer suas necessidades fisiológicas. Cena deprimente que era controlada por um só soldado com metralhadora. Um judeu inventou que ele era o Senhor Dreck, o senhor da merda, pois ali estava só para cuidar da merda deles. Ora, essa história se espalhou e divertiu muitos que se sentiram superiores ao soldado de merda.
Pode parecer pouco, mas para quem estava no inferno e podia dar um meio sorriso já era muito.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
Abrão Slavutzky - Concluo com uma metáfora usada pelo escritor Italo Calvino no final de seu livro Cidades invisíveis (São Paulo: Companhia das Letras, 1990): Se o inferno existe, ele é aqui. E existem duas formas de enfrentá-lo: uma é se adaptando a ele e não se diferenciando mais. A outra é mais difícil, pois se precisa buscar no inferno o que não é inferno e ampliar um pouco aqui e um pouco ali. O humor faz parte do não inferno, ele é mais frágil que a crueldade quanto ao poder de destruição, mas é mais espirituoso, enriquece nossa dignidade e nos fortalece na resistência à crueldade. Nosso desafio talvez seja o de criar, na atualidade, espaços de não inferno e ampliá-los aqui e ali sem perder o humor. Gosto do humor porque além de mostrar, como a psicanálise, o outro lado de tudo, ele questiona, põe em dúvidas, obriga a pensar, a ousar pensar, diria o velho e bom Kant.
Por Andriolli Costa e Márcia Junges
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Humor como fuga da crueldade no século XX. Entrevista Especial com Abrão Slavutzky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU