20 Dezembro 2013
“É possível ser irresponsável sem ser criminoso. Burkina Faso aparentemente cometeu o 'crime', mas o governo brasileiro, que autorizou a venda original, foi responsável?”, questiona o coordenador de Políticas da Área de Controle de Armas do Instituto Sou da Paz.
Foto: http://bit.ly/1cRfc9j |
“A existência de linha de tráfico entre Burkina Faso e Costa do Marfim é notória. Se não era possível prever o desvio com certeza, era também impossível estar certo se a venda era segura e, na dúvida, deve prevalecer a cautela do governo frente ao ímpeto comercial da indústria de armas”, critica Daniel Mack ao comentar a venda de armamentos brasileiros a Burkina Faso, país africano que faz divisa com Mali, Gana e Costa do Marfim, onde as armas foram encontradas, violando o embargo imposto pelo Conselho de Segurança da ONU a este último.
Na avaliação de Daniel Mack, “todo o potencial de exportação de armas, sejam convencionais, sejam menos letais, deve ser regido por análise de risco criteriosa em termos da possibilidade de mau uso ou desvio”. Ele salienta que o Brasil assinou este ano, na ONU, o Tratado de Comércio de Armas (Arms Trade Treaty) “no qual esta análise de risco — considerando os riscos aos direitos humanos, ao direito humanitário internacional, a possibilidade de cair nas mãos de terroristas e do crime organizado, assim como de desvio — se tornará lei internacional para a venda de armas convencionais”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Mack esclarece ainda que a política brasileira de exportação de armamento é “leniente, com tendência a vender mesmo em situações de risco”. E dispara: “Que esta seja a vontade da empresa Condor é compreensível, mas para o governo brasileiro — com armas ‘made in Brazil’ em países sob embargo, ou conflito deflagrado ou iminente como ocorreu outras vezes — o custo político vale a pena?”
Daniel Mack é coordenador de Políticas da Área de Controle de Armas do Instituto Sou da Paz.
Foto: http://bit.ly/19cRVQC |
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você vê a explicação do governo brasileiro referente ao embargo imposto pelo Conselho de Segurança à Costa do Marfim, ao dizer que as armas foram vendidas a Burkina Faso, e não à Costa do Marfim?
Daniel Mack - Sobre as armas (menos letais) brasileiras da Condor (feitas em Nova Iguaçu-RJ), encontradas em violação ao embargo de armas da ONU para a Costa do Marfim: foram lançadores de granadas, munições de gás lacrimogênio, etc., exportados originalmente para Burkina Faso, que estava vedado de reexportar sem consultar o Brasil.
É do tipo de exportação "arriscada" que, no caso de armas convencionais, deve se tornar rara e eventualmente ilegal quando entrar em vigor o Arms Trade Treaty (Tratado do Comércio de Armas), assinado pelo Brasil alguns meses atrás.
Em termos de responsabilidade, a investigação do Conselho de Segurança está em andamento, portanto os culpados ainda serão devidamente indicados. Não surpreende que o Brasil aponte o dedo para Burkina Faso, mas cabe questionar a análise de risco usada para exportar o material legalmente, considerando que o próprio informe do Conselho de Segurança menciona notória linha de tráfico de recursos minerais e outros entre os países.
IHU On-Line - Ao comentar este caso do embargo e as armas vendidas pelo Brasil, o senhor declarou que a rota de tráfico entre Burkina Faso e a Costa do Marfim é notória. Pode nos explicar como funciona essa rota de tráfico e quais países têm fornecido armamento para a Costa do Marfim?
Daniel Mack - O comércio internacional de armas não opera em termos de "tem embargo, é proibido" e "não tem embargo, podemos vender de olhos fechados". Nos casos onde, em teoria, pode-se exportar, é necessário determinar se deve-se exportar.
É possível ser irresponsável sem ser criminoso. Burkina Faso aparentemente cometeu o 'crime', mas o governo brasileiro, que autorizou a venda original, foi responsável? Deve-se analisar a situação do país em questão: tem estabilidade política, respeita os direitos humanos, tem controle eficaz sobre estoques de armas, tem precedentes de desvios e corrupção? A sub-região é estável? (Vale lembrar que o Mali fica também na "vizinhança".)
A existência de linha de tráfico entre Burkina Faso e Costa do Marfim é notória. Se não era possível prever o desvio com certeza, era também impossível estar certo se a venda era segura e, na dúvida, deve prevalecer a cautela do governo frente ao ímpeto comercial da indústria de armas.
IHU On-Line - Este ano o Brasil esteve classificado como o 21º país que mais exporta armamento no mundo. Como avalia esse dado considerando a conjuntura internacional de exportação de armamento?
Daniel Mack – Todo o potencial de exportação de armas, sejam convencionais, sejam menos letais, deve ser regido por análise de risco criteriosa em termos da possibilidade de mau uso ou desvio. O Brasil assinou este ano, na ONU, o Tratado de Comércio de Armas (Arms Trade Treaty, que deve logo ser enviado para ratificação no Congresso Nacional), no qual esta análise de risco — considerando os riscos aos direitos humanos, ao direito humanitário internacional, a possibilidade de cair nas mãos de terroristas e do crime organizado, assim como de desvio — se tornará lei internacional para a venda de armas convencionais.
Seria importante fazer a mesma análise para armas "menos letais". Até hoje, a política brasileira de exportação deste tipo de armamento é leniente, com tendência a vender mesmo em situações de risco. Que esta seja a vontade da empresa Condor é compreensível, mas, para o governo brasileiro — com armas "made in Brazil" em países sob embargo, ou conflito deflagrado ou iminente como ocorreu outras vezes — o custo político vale a pena?
Outra linha de argumentação é o típico, "ah, mas é equipamento não letal". Essa diferenciação tem eximido a participação do Itamaraty nas decisões sobre exportação, permitindo que o cacoete de "vende, vende" do Ministério da Defesa — sob influência da indústria — seja a voz única no processo.
Não existe "armamento não letal"; as armas em questão são, na realidade, "menos letais" e, em mãos despreparadas ou irresponsáveis, podem causar ferimentos sérios e até a morte, como se viu diversas vezes, seja em casos de armas menos letais brasileiras vendidas recentemente a países do Oriente Médio (como Iêmen, ou vendas para a Turquia que acabaram usadas contra refugiados sírios e, depois, protestantes civis), ou mesmo nos protestos nas ruas do país em junho.
É, portanto, uma temeridade que as decisões de exportação deste tipo de armamento considerem somente aspectos comerciais, e não também os possíveis efeitos humanitários e de política externa.
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Política brasileira de exportação de armamento é leniente. Entrevista especial com Daniel Mack - Instituto Humanitas Unisinos - IHU