05 Janeiro 2012
A COP-17, que aconteceu no final do ano passado, em Durban, foi o cenário de inspiração para a formação de jovens líderes religiosos que integram divesas confissões religiosas. Reunidos no continente Africano, 30 jovens de 21 países trocaram experiências, refletiram sobre as consequências das mudanças climáticas, sobre o conceito de justiça ambiental e participaram das manifestações da sociedade civil em defesa de um mundo melhor.
Raquel Helene Kleber, membro da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foi uma das integrantes do treinamento organizado pelo Conselho Mundial de Igrejas – CMI e pela Federação Luterana Mundial – FLM, e destaca que “a essência do encontro Youth for Eco-Justice foi perceber a presença de Deus em toda a criação e o nosso desafio, como cristãos, de a cuidarmos, no sentido de que somos interconectados com ela, e não uma parte independente. Foi relevante também perceber a importância da igreja em abordar as questões de justiça socioambiental, empoderando as pessoas para que reflitam sobre as causas dos problemas, relacionando as ações com a fé”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a estudante de Relações Internacionais relata as diversas manifestações sociais que aconteceram durante a conferência do clima e enfatiza o papel das igrejas na busca de soluções para pensar um modelo político e econômico mais justo. “As mudanças climáticas são uma das manifestações da injustiça socioambiental, na qual os seres humanos falharam em encontrar o equilíbrio. A busca pela justiça e o cuidado com a criação está no centro da palavra de Deus, e a igreja tem um papel crucial a desempenhar na sociedade, proporcionando uma perspectiva ética sobre a mudança climática e promovendo a justiça social e ambiental”.
Raquel Helene Kleber é estudante de Relações Internacionais da ESPM-Sul.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Você participou do treinamento global para jovens líderes intitulado Youth for Eco-Justice, representando o Conselho Mundial de Igrejas e a Federação Luterana Mundial em Durban, África do Sul, durante a COP17. Como foi esse treinamento e qual era o seu objetivo?
Raquel Helene Kleber – Youth for Eco-Justice foi um treinamento global transformador sobre ecojustiça para jovens líderes. O grupo do qual fiz parte reuniu-se em Durban, África do Sul, durante a 17ª Conferência das Partes (COP-17) da Convenção-Quadro das Nações Unidas para a Mudança do Clima (UNFCCC). O programa contou com a participação de 30 jovens de 21 países, de confissões luterana, anglicana, metodista, ortodoxa grega, presbiteriana e católica romana, sob a organização conjunta do Conselho Mundial de Igrejas – CMI e da Federação Luterana Mundial – FLM. A formação em ecojustiça é contínua, uma vez que se estenderá através da sólida rede formada entre os participantes e através dos projetos que serão implementados pelos jovem em seus respectivos países e igrejas, conectando dessa forma os diálogos e ações locais, nacionais e internacionais.
O encontro oportunizou o compartilhamento de ideias e experiências acerca dos contextos locais de cada participante e incentivou a planificação de projetos a serem posteriormente implementados nos respectivos países.
A questão das mudanças climáticas está intimamente ligada às injustiças socio ambientais que vemos em nosso mundo, uma vez que as comunidades mais pobres e vulneráveis são aquelas que mais sofrem as consequências. Foi relacionado a esse conceito de justiça que tivemos muitas de nossas reflexões e diálogos durante o treinamento, sempre tendo como base a palavra de Deus.
Para mim, a essência do encontro Youth for Eco-Justice foi perceber a presença de Deus em toda a criação, e o nosso desafio, como cristãos, de a cuidarmos, no sentido de que somos interconectados com ela, e não uma parte independente. Foi relevante também perceber a importância da igreja em abordar as questões de justiça socioambiental, empoderando as pessoas para que reflitam sobre as causas dos problemas, relacionando as ações com a fé. Volto deste treinamento com a certeza de que existe um chamado para toda a sociedade se engajar na construção de justiça e sustentabilidade, e os jovens têm, neste contexto, um papel oportuno de liderança.
IHU On-Line – Quais foram os principais temas discutidos no encontro? Como elas podem ser aplicadas ao contexto brasileiro?
Raquel Helene Kleber – Enquanto aprendíamos sobre o significado de ecojustiça, termo que conecta justiça climática, ambiental, social e econômica, aprendemos também sobre a sua teologia, que apresenta a busca pela justiça como centro do ser cristão, chamando atenção da igreja para atuar em defesa daqueles que mais precisam, dos excluídos e oprimidos. A ligação com o ambiental encontra-se em versículos como Romanos 8:18-23, que revelam a criação que geme, ou seja, que sofre os impactos de seu uso irresponsável por parte dos seres humanos. E é ainda através das palavras da Bíblia que somos chamados para nos tornar “cuidadores” da criação de Deus.
O treinamento visou capacitar jovens cristãos para serem multiplicadores da ecojustiça, estudando e compreendendo as complexas relações entre as questões ambientais e os processos das estruturas socioeconômicas. Os participantes receberam treinamentos e participaram das atividades da sociedade civil da COP-17.
O programa incluiu estudos teológicos e bíblicos, oficinas e reuniões com especialistas, formação em comunicação, campanha, projeto e gestão, arrecadação de fundos, ecumenismo, celebração da comunhão, promoção da ecojustiça nacional e internacional e atividades artísticas e culturais.
Ao final da segunda semana cada jovem foi desafiado a pensar um projeto que será implantado a partir de agora em seus respectivos países, tendo como ponto de partida a realidade e o contexto de cada lugar e de cada igreja. Cada projeto foi pensado em conjunto com os coordenadores do programa e recebeu, ao final, uma avaliação dos próprios colegas, que, após uma apresentação para o grande grupo, fizeram críticas e sugestões. Os projetos poderão receber um pequeno subsídio da FLM e do CMI, mediante a apresentação de relatórios de planejamento e implementação, mas deverão contar com apoio financeiro local. Segundo Roger Schmidt, “são essas iniciativas, de trabalho de base, que são essenciais para transformar a injustiça que as pessoas enfrentam diariamente”. Segundo ele, “estes projetos permitem que as igrejas contribuam para construir o consenso global da obrigação ética de tomar atitudes concretas face os desafios ecológicos”.
IHU On-Line – Que eventos aconteceram paralemamente à COP-17? Que avaliação faz desses encontros?
Raquel Helene Kleber – Enquanto os 194 países negociavam na COP-17 a respeito da redução das emissões de gases de efeito estufa, principais causadores das mudanças climáticas, o grupo Youth for Eco-Justice, do qual fiz parte, engajou-se ativamente em mobilizações da sociedade civil que clamavam aos governos por uma ação rápida e efetiva de combate às mudanças do clima. O Global day of action é um exemplo disso e que contou com mais de 30 mil pessoas (mais informações: http://lwfyouth.org/2011/12/04/y4ej-youth-participate-in-global-day-of-action-demonstration/).
O primeiro momento marcante que vivenciei foi a participação no Encontro Interconfessional de Justiça Climática, que ocorreu no estádio de Rugby ABSA Kingspark, em Durban, no dia prévio ao início das negociações. Os jovens do treinamento de ecojustiça tiveram participação de destaque, ao carregar um banner que continha o nome do próprio grupo, chamando a atenção da mídia internacional. No encontro estiveram presentes, além de delegados ecumênicos de diversos países, o bispo emérito anglicano Desmond Tutu. Em seu discurso ele afirmou o compromisso da comunidade de fé com a busca pela justiça climática e disse que “Deus quer que vivamos em um jardim, e não em um deserto”.
Outro destaque coube à campanha We have faith, act now for climate justice, que consistiu em um movimento panafricano que disseminou a visão da luta pela justiça climática na África, trazendo para Durban as expectativas e o clamor para a adoção de um acordo ousado e vinculante para reduzir as mudanças climáticas. Foram realizados durante esta campanha diversos eventos de sensibilização, sendo que o principal deles a caravana de jovens pela justiça climática, que partiu de Nairóbi, no Kenya, até Durban, tendo coletado, ao final, 200 mil petições. Ao final, elas foram entregues a Desmond Tutu, em um ato simbólico, estando contidas em uma reprodução da Arca de Noé. Em seguida elas foram apresentadas à presidente da COP-17, Christina Figueres e à ministra de Relações Internacionais da África do Sul, Maite Nkoana-Mashabane.
Um momento marcante foi a participação na marcha Global day of action, em português, Dia Global de Ação. A marcha já se tornou tradição nas Conferências das Partes da UNFCCC e mobilizou este ano cerca de 20 mil pessoas, tendo como objetivo chamar a atenção dos governos para a urgência de tomar uma atitude com relação às mudanças do clima. Jovens e a comunidade ecumênica, que teve como ponto de encontro o Centro de Diaconia, levaram um banner dizendo Polluters Pay (poluidores pagam), exigindo que os países que mais emitem gases de efeito estufa assumam a responsabilidade do débito ambiental. Durante a marcha, foram entoados gritos de incentivos como “nós viemos de toda a África, e não iremos embora enquanto não formos ouvidos”. Os participantes estavam determinados a chamar a atenção e ser ouvidos.
IHU On-Line – Como as igrejas têm se manifestado diante dos debates socioambientais e das mudanças climáticas?
Raquel Helene Kleber – As comunidades cristãs estão cada vez mais preocupadas com a crise ecológica e a maneira como a humanidade tem tratado a criação de Deus. O planeta Terra está em perigo e a criação está sofrendo. Ao mesmo tempo, estamos vendo cada vez mais claramente as ligações entre a crise ecológica e a justiça socioeconômica.
O prefixo “eco” vem da palavra grega oikos para “casa” e faz parte das raízes etimológicas da palavra economia e ecologia, mas também de ecumenismo. Na ligação entre as questões de justiça ambiental e social, a “ecojustiça”, em suma, reflete os desafios da destruição da terra pela humanidade e do seu abuso de poder econômico e político, que resultou na pobreza.
“It always seems impossible, until it is done” (Sempre parece impossível, até que seja feito). Esta frase, de Nelson Mandela, utilizada no contexto do Apartheid, sistema político de segregação e discriminação racial que foi vigente na África do Sul, demonstra a fé e a esperança em um mundo mais justo e pacífico. Assim como naquela época e contexto a igreja passou por uma transformação interna para, então, ser a base para a luta contra o sistema vigente e a transformação para uma sociedade mais justa, assim também este papel profético é transportado para hoje, na busca das comunidades de fé por um mundo mais sustentável, com justiça social e ambiental, no qual as minorias e os mais vulneráveis tenham voz e tenham direitos e oportunidades, e no qual as nações que mais poluíram ao longo dos anos assumam o seu débito ambiental.
Preocupação ambiental
O Conselho Mundial de Igrejas tem um longo histórico de participação nas Conferências das Partes da UNFCCC. Desde a primeira delas, a organização tem utilizado o espaço conquistado para proferir a palavra ao mais alto segmento da COP, falando em nome de diversas igrejas, comunidades de fé e movimentos ecumênicos pelo mundo. A visão do Conselho Mundial de Igrejas consiste na certeza de que “compartilham a declaração de fé das comunidades, exigindo justiça climática para todos”, de acordo com Elias Abramides.
Neste encontro, o Conselho Mundial de Igrejas proferiu um comunicado para os governantes que participaram da COP-17, ratificando a necessidade de um tratado justo, ambicioso e vinculativo, para enfrentar efetivamente as mudanças climáticas. Ao final da conferência, que foi a mais longa da história, as negociações da COP-17 tiveram como principais resultados:
O Pacto Global do Clima, que lança uma base para um futuro acordo contra o aquecimento global, envolvendo metas de redução juridicamente vinculantes para países desenvolvidos e para aqueles em desenvolvimento. Este novo pacto, cujas discussões deverão ser concluídas até 2015, está previsto para entrar em vigor a partir de 2020, inclui os países maiores emissores de gases de efeito estufa, hoje a China, Estados Unidos e Índia.
Foi decidido em Durban que em 2013 começa a vigorar o segundo período de compromissos do Protocolo de Kyoto, cuja vigência foi prorrogada até pelo menos 2017. O resultado desse processo culminará no já citado Pacto Global do Clima. Enquanto isso, países como Canadá, Japão e Rússia, que recentemente se desvincularam do Protocolo de Kyoto, somam-se aos Estados Unidos e China, maiores poluidores do mundo, os quais não fazem parte do acordo.
Foram feitas ainda negociações sobre o Fundo Verde, que havia sido proposto na COP-16, em Cancún. Ele promete cerca de 100 bilhões de dólares anuais a partir de 2020 para combater emissões e promover ações de adaptação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento. No entanto, não foram estabelecidas regulamentações, como de quem vem o dinheiro e quem irá administrá-lo.
Apesar de deliberar importantes e relevantes avanços políticos na luta contra as causas e os efeitos das mudanças climáticas, os países que mais contribuem com as emissões ainda ficam livres para poluir, uma vez que não tem nenhum compromisso legal, e coloca o mundo rumo a um aquecimento irreversível.
IHU On-Line – Por que o tema ambiental tem feito parte da formação de novos líderes religiosos?
Raquel Helene Kleber – Tendo chamado a atenção da mídia global, o trabalho dos jovens participantes no treinamento internacional reafirmou o papel crucial da igreja para atuar ativamente na sociedade em defesa da ecojustiça e o comprometimento dos jovens com esta causa, uma vez que somos nós, jovens, que temos a esperança e energia para alterar essas situações, somadas à nossa capacidade de trabalho em rede e tecnologia. Seremos nós os afetados pelas decisões de hoje. Temos em mãos a oportunidade única de apresentar e aplicar soluções para este mundo.
As mudanças climáticas são uma das manifestações da injustiça socioambiental, na qual os seres humanos falharam em encontrar o equilíbrio. A busca pela justiça e o cuidado com a criação está no centro da palavra de Deus e a igreja tem um papel crucial a desempenhar na sociedade, proporcionando uma perspectiva ética sobre a mudança climática e promovendo a justiça social e ambiental. Uma mudança no sistema econômico é, portanto, categórica, mas também uma mudança em nossas ações, a partir da posição de dominadores para mordomos da criação. É necessário reconhecer, nesta transformação, o status de seres interdependentes da criação, e não uma parte independente dela. No processo de criação de um mundo ecologicamente justo, a juventude tem um papel significativo a desempenhar.
IHU On-Line – Como foi participar deste encontro?
Raquel Helene Kleber – Fomos inspirados e encorajados, diariamente, através de um tempo de comunhão na celebração da manhã, tempo seguido pela leitura bíblica em pequenos grupos. As celebrações eram lideradas pelos próprios jovens que a conduziam de acordo com as suas culturas e tradições, compartilhando hinos e orações em suas próprias línguas. A possibilidade de trocar ideias e perspectivas sobre a palavra e os diferentes contextos oportunizou um aprendizado riquíssimo, revelando a presença de Deus em lugares e formas distintos. O testemunho de um jovem indiano, de meu grupo, revelou, por exemplo, a ainda existente discriminação em seu país, derivada do antigo sistema de castas. O jovem, que na comunidade indiana é um dálit, ou seja, intocado, é proibido de tocar a água e de andar de pés descalços, pois é considerado, o jovem, uma pessoa impura e indigna, simplesmente pelo fato de ter nascido em uma família de casta inferior. Ainda assim, nesses lugares de caos e de injustiças, tais jovens engajam-se no estudo da Bíblia e na busca pela justiça. Para eles, a fé oferece a força e o encorajamento para buscarem soluções e conquistarem direitos.
Algo de muito positivo que vivenciei foi a receptividade e empolgação das pessoas que conhecia, quando eu dizia que era brasileira. Exclamações como “O Brasil é demais” e “quero muito ir pra lá” foram recorrentes. Inúmeros foram também os elogios para o nosso futebol e a nossa natureza exuberante. E foi sempre com muita expectativa que me saudavam pela realização da Rio+20 neste ano.
* As fotos desta matéria foram enviadas pela entrevistada.
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Ecojustiça. Um desafio debatido pelos jovens, em Durban. Entrevista especial com Raquel Helene Kleber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU