15 Fevereiro 2011
A Fiat está em crise na Itália. O ambiente de trabalho e a forma como os patrões vêm tratando os trabalhadores e trabalhadoras geraram uma disputa intensa, mas pouco divulgada no Brasil. A IHU On-Line entrevistou por email o sociólogo do trabalho italiano Gigi Roggero. “A empresa é global, a chantagem é local”, descreveu ele. Na entrevista, Roggero explica qual é o centro dessa crise e aponta os desafios que os trabalhadores da montadora de carros estão enfrentando. “Os patrões impõem aos operários uma chantagem: pegar ou largar. Ou aceitam trabalhar sem direitos, renunciando à possibilidade do conflito, ao sindicato ou a qualquer forma de organização que não seja aquela controlada pelo patrão, ou a Fiat desloca a produção para outro lugar e eles perdem seu trabalho”.
Gigi Roggero é formado em História Contemporânea pela Università degli Studi di Torino. É coautor de Futuro Anteriore. Dai "Quaderni Rossi" ai movimenti globali: ricchezze e limiti dell`operaismo italiano (Roma: DeriveApprodi, 2002). Trabalha no campo da pesquisa social. É doutorando no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Università della Calabria.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No Brasil, o caso Fiat-Mirafiori recebeu pequena cobertura midiática. Para nossos leitores brasileiros, poderia sumariar analiticamente, do seu ponto de vista, o que aconteceu em Mirafiori? Qual foi o desafio para os trabalhadores da Fiat?
Gigi Roggero – A situação pode ser resumida de modo simples: Os patrões impõem aos operários uma chantagem: pegar ou largar. Ou aceitam trabalhar sem direitos, renunciando à possibilidade do conflito, ao sindicato ou a qualquer forma de organização que não seja aquela controlada pelo patrão, ou a Fiat desloca a produção para outro lugar e eles perdem seu trabalho. A Fiat de Pomigliano e os termos do desafio são semelhantes: aumento dos ritmos e do horário de trabalho, completa discricionariedade da empresa na gestão dos turnos e na exigência dos extraordinários, redução das pausas, criminalização das doenças e do absenteísmo. Obviamente, tudo isso ante um salário que já está bloqueado há muitos anos. Os sindicatos que não subscrevem a "proposta" são automaticamente excluídos da fábrica, também no caso da Fiom (a categoria mais radical da CGIL, o sindicato confederado que provém da tradição comunista) e que é o maior sindicato operário. O preâmbulo do assim dito “acordo” de Mirafiori, que outra coisa não é senão um ‘Diktat’, é exemplificativo: de modo detalhado são indicadas as obrigações dos trabalhadores, com graves ameaças para qualquer possível transgressão; em troca, a empresa assume genéricos e nebulosos empenhos para o reinício da produção em Mirafiori, apresentando um plano industrial tão mísero e magro a ponto de ser duramente criticado até pelos think tank dos industrialistas italianos.
Para impor os termos de seu Diktat, Marchionne – o administrador delegado do Grupo Fiat – rompeu com o contrato nacional, até com os débeis, acomodatícios e contestados contratos nacionais firmados entre a Confindustria (a associação dos patrões) e os sindicatos confederados nos anos 1990 (não só a CISL e a UIL, provenientes respectivamente da tradição democrata-cristã e socialista, mas também a CGIL). Era esta a desastrosa estação da política reparadora que sancionou o desmantelamento dos direitos dos trabalhadores. Para desvincular-se dos empenhos do contrato nacional, Marchionne fundou uma new company, Fábrica Itália, saindo formalmente da Confindustria. Muitos críticos disseram: volta-se às condições do século dezenove. Não creio que seja exato: o modelo Marchionne é amaldiçoadamente contemporâneo por ao menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque no fundo Marchionne diz uma coisa muito simples, de modo descarado, brutal e sem mediações: eu vou para onde me convém mais, isto é, onde a força de trabalho custa menos e se submete mais.
A empresa é global, a chantagem é local. Por que os patrões deveriam preocupar-se pelas vidas dos operários se não são constrangidos a isso pela força? Em segundo lugar, Marchionne indica claramente o plano do desafio: os trabalhadores não são reconhecidos como sujeitos coletivos, mas somente como indivíduos. E cada indivíduo deve reconhecer pessoalmente os próprios vínculos de solidariedade com a própria empresa, ou, de outra forma, renunciar à própria fonte de sustento. Aqui está o paradoxo, ou melhor, o desafio: no momento em que a empresa escolhe qualquer vínculo ou pacto com os trabalhadores, tenta-se impor aos trabalhadores um critério de fidelidade em relação à empresa. Em suma, os traços semisservis e de nua brutalidade do trabalhão não são, de fato, contrários ao desenvolvimento do capitalismo, mas são, ao invés, uma de suas declinações. O capitalismo contemporâneo espalma ante nossos olhos o inteiro espectro das formas do trabalho e da exploração.
Mas também os desafios, afirma a doutrina Marchionne, podem e até devem ser legitimados democraticamente: é este o sentido do referendo imposto pela administração, primeiro em Pomigliano e depois em Mirafiori. Em ambos os casos, diretoria Fiat, governo, oposição e mídia auguravam e prognosticavam uma afirmação plebiscitária do acordo. A pistola apontada à cabeça de quem deve votar entre se vai renunciar ao próprio salário ou aos próprios direitos desvela a verdade da democracia real. A partir do seu ponto externo pode-se ver com clareza o todo. Não obstante isso, em Pomigliano os votos contrários ao acordo – isto é, de quem decidiu não dobrar-se ao custo de perder o próprio salário – foram de quase 40%. Em Mirafiori, eles chegaram aos 46%, e realmente venceram entre os operários: o referendum, de fato, só passou graças ao voto dos chefetes e dos empregados (que não devem sofrer o terrível endurecimento das condições de trabalho, mas que no breve meio-período se dedicam inteiramente à volatilidade chantagista da empresa).
IHU On-Line – Em sua opinião, por que os trabalhadores se renderam? Foi realmente o medo de fechar a planta? E por que a sociedade civil silenciou ante a ameaça aos direitos dos trabalhadores?
Gigi Roggero – Não direi propriamente que os trabalhadores cederam. Pelo contrário, os resultados dos referendos de Pomigliano e de Mirafiori constituem uma extraordinária expressão da dignidade operária. Tenha-se também em conta a particular composição de Mirafiori: permanecem 5.600 operários (menos de um décimo em relação aos anos 1960 e 1970), com idade média antes alta (em torno dos 48 anos), passados através de trinta anos de desnatações e represálias patronais após a derrota de 1980. A composição operária e os quadros sindicais mais combativos não estão por certo em Mirafiori, e isto o patrão sabe muito bem: não é por acaso que ele procure golpear precisamente ali. A estes poucos milhares de operários exaustos e derrotados é apontada uma pistola na cabeça, ameaçando-os de “escolher” ente a perda do próprio mísero salário, com a impossibilidade de recolocar-se no mercado de trabalho, ou então trabalhar em condições semisservis. Tudo isso torna o resultado do referendum ainda mais importante. Tenha-se presente que o único sindicato a dizer não ao acordo é a FIOM, enquanto FIM e UILM (os sindicatos metal-mecânicos respectivamente da CISL e UIL) imediatamente subscreveram, além da UGL (um sindicato de direita) e FISMIC (um sindicato amarelo, isto é, patronal).
Não só: eu penso que essa partida não se fecha com o referendo. Ao contrário, penso que esteja começando agora. Nas semanas precedentes, o voto de vários dirigentes da FIOM, em confrontos televisivos com dirigentes da Fiat e da Confindustria, disseram algo de extremo interesse: vocês se iludem se pensam que somos nós que organizamos as greves e as lutas dentro das fábricas; o conflito fazem-no os operários organizando-se por conta própria; são eles que bloqueiam a esteira e param a produção, nós não controlamos realmente nada. Consequentemente, dizem os dirigentes do sindicato aos patrões que um acordo deste tipo torna a fábrica ingovernável para a administração fazendária e também para os sindicatos. Penso, pois, que nos próximos meses crescerão as formas de resistência operária que se expressam de modo pouco visível, mas com grande eficácia, sobretudo na sabotagem da produção. É aqui, e não no resultado do referendum-desafio, que se mensura o conflito entre Marchionne e os operários da Fiat. Mensura-se, porém, não no terreno imposto por Marchionne, mas naquele escolhido pelos operários. É a passagem da guerra à guerrilha.
Voltemos à segunda parte da pergunta. É verdade, o governo está com Marchionne, o Partido Democrático (nascido da fusão de uma parte da ex-Democracia Cristã e de uma parte do ex-Partido Comunista) está com Marchionne e, com poucas exceções a mídia – também aquela de esquerda e antiberlusconiana, como o cotidiano “Repubblica” –, está com Marchionne: os operários devem sacrificar-se por um presumido interesse geral e, portanto, não lhes é reconhecida nenhuma legitimidade à resistência. Mas, aqui é preciso entender-se: a sociedade civil enquanto tal está sempre do lado dos patrões, porque são a figura política da sociedade burguesa. O problema é romper a unidade abstrata da sociedade civil para fazer emergir o conflito. Não o povo, mas o conflito de classe. Isso ocorreu na Itália nos últimos meses.
O extraordinário movimento dos estudantes secundaristas e universitários contra os cortes e projetos de reforma do ministro da instrução Gelmini, individuou imediatamente a unificação com as lutas dos operários e dos outros setores do trabalho como terreno estratégico de desenvolvimento do conflito. Atenção, porém: não se trata da reproposição do velho lema “estudantes e operários unidos na luta”, nem de mera solidariedade. É, ao invés, um processo de subjetivação de classe e, portanto, multitudinário. Os estudantes, de fato, assumiram as reformas de Gelmini como um casus belli, não por certo como objetivo central: eles se percebem não mais como estudantes em sentido clássico, mas imediatamente como trabalhadores, e como trabalhadores precários. Não se trata da revolta geracional,como a mídia a quer fazer passar: trata-se de uma geração em termos materialistas e não meramente sociológicos, isto é, os trabalhadores que vêem o bloqueio definitivo da mobilidade social, a precariedade e a desclassificação como condições permanentes e, por isso, assumem um caráter paradigmático.
A questão não é a defesa da universidade pública, mas a construção de uma nova universidade e a reapropriação da riqueza social. O conflito se constrói desde 2008 em torno a quem deve pagar a crise. Está aqui a grande potência de generalização que as lutas estudantis assumem. Neste quadro, o ‘não’ operário em Pomigliano teve grande importância – pelo menos do ponto de vista simbólico – para o quente outono dos estudantes-trabalhadores precários. E, sem o movimento dos estudantes-trabalhadores precários provavelmente não teriam existido as condições de possibilidade para a recusa operária de Mirafiori. Em torno a esta questão intercategorial das lutas durante a crise estão se produzindo processos organizatórios e de recomposição. Recomposição é sempre ruptura da abstrata unidade do povo e da sociedade civil, é emergência de uma subjetividade e sua força respectiva. E hoje dizer recomposição significa, imediatamente, organização do comunitário.
IHU On-Line – A saída dos empregados da planta Fiat em Mirafiori, aceitando o desafio dos direitos e empreendimentos trabalhistas, aponta para um novo paradigma nas relações trabalhistas na Itália e mesmo na Europa?
Gigi Roggero – Marchionne tem a pretensão de impor um desafio: com ele, declarou, começa a era “depois de Cristo” e quem se lhe opõe vive na era “antes de Cristo”. É a louca pretensão dos patrões, um delírio de onipotência que é diretamente proporcional à crise sistêmica do capitalismo. Não se dão conta que a mobilidade e infidelidade da empresa outra coisa não é senão o espelho da mobilidade e da infidelidade do trabalho vivo. O desafio pode impor-se temporariamente em nível local, mas somente num breve período. Em suma, enquanto a crise já não se torna mais somente um elemento cíclico, mas condição permanente do capitalismo, o no future é hoje o lema dos capitalistas. “Depois de Cristo” significa, então, ausência de horizontes para o capitalismo e crescimento da violência dos capitalistas.
Seria tudo isso: o retorno ao neoliberalismo como nos tem sido apresentado pelos teóricos do assim dito “pensamento único". Tomemos precisamente o caso da Fiat: trata-se de uma empresa privada que historicamente foi subvencionada e sustentada pelo dinheiro público. Hoje, no momento em que a Fiat se torna Fiat-Chrysler, na qual o problema de Marchionne e sócios é deslocar para onde a força-trabalho custe e resista menos, o fetiche da italianidade da empresa serve como justificação da reprodução de seu papel parasitário: o público continua a verter nos caixas do privado os fundos que servem para fazer lucros, para deslocar, para comprar os 51% da Chrysler e cobrir os buracos da contínua falência dos planos industriais. Então, dizer modelo Marchionne significa dizer também, aqui como alhures, minguar a ideia do público como alternativa ou resistência ao privado.
De resto, o modelo Marchionne não diz respeito somente à Fiat ou ao trabalho de fábrica. Tome-se, como exemplo, a universidade na Itália: estamos ante aquela que podemos definir uma verdadeira e própria estratégia de cessação do sistema formativo e da pesquisa. Com que objetivo? Recolocar o papel da Itália dentro do mercado global, fazendo dela uma subárea com ambições redimensionadas e em condições de competir – ao custo de uma força de trabalho desqualificada ou paga como tal (como no caso dos migrantes) – intensificando a produção especializada em segmentos particulares do conjunto transnacional e reservando-se algumas pontas ou marcas da assim dita “excelência” (da slow food à Ferrari), com escasso investimento em inovação e pesquisa. Com uma cartada: corte dos fundos para formação e generalização do modelo Pomigliano-Mirafiori.
Tenha-se em conta que o modelo Pomigliano-Mirafiori não entrou em vigor após o referendum, mas é a condição dos precários há bastante tempo: ausência dos direitos conquistados pelo movimento operário, ausência do contrato nacional, ausência da possibilidade de uma greve e assim por diante. Trata-se, todavia, de um processo assinalado por forte ambivalência: a dos patrões (a precariedade) outra coisa não é que a resposta à autonomia e à flexibilidade de parte afirmada nas lutas e na recusa do trabalho a partir dos anos 1960. Não se trata, pois, de restabelecer as receitas do passado, mas de construir um novo welfare à altura da subjetividade e composição do trabalho vivo contemporâneo. Entretanto, ao ataque à Fiom não se pode responder reafirmando simplesmente o direito à representação sindical, porque precisamente as novas figuras do trabalho vivo são irrepresentáveis segundo os modelos tradicionais. É aqui que se situa o plano do desafio.
IHU On-Line – A Itália sempre foi conhecida por seu forte movimento trabalhista. O que significa a derrota do movimento laboral em Mirafiori?
Gigi Roggero – Esclareçamos: a derrota não ocorreu agora, a derrota do movimento operário em Mirafiori tem a data de 1980. Agora a Fiom está opondo uma importante resistência, mas encontra-se simultaneamente ante o problema de ir contra si mesma. É claro, e certamente não a partir de hoje, que a fábrica (entendida como simples lugar físico de concentração operária e produtiva) não é mais o espaço político central das lutas. A partir dos anos 1970, a fábrica se espalmou sobre o território circundante e se tornou social. E, acima de tudo, emergiram novas figuras de trabalho. Se considerarmos os conflitos operários dos últimos anos, veremos um protagonismo de sujeitos que não correspondem mais aos ciclos da luta operária do passado, tendo muito a ver com os comportamentos dos estudantes e dos precários. É exatamente aqui que se situa o plano do desafio político: consegue o sindicato abrir-se às novas figuras do trabalho, pondo à disposição as próprias estruturas, fazendo-se lugar de construção dos conflitos e da autonomia do trabalho vivo?
IHU On-Line – O movimento unitário é capaz de entender a essência da crise do capitalismo industrial e o tipo de trabalhador que emerge desta crise? Qual é seu papel no mundo atual?
Gigi Roggero – Com respeito ao desafio de Marchionne, frequentemente se ouve dizer: querem impor a americanização dos sindicatos italianos. Como em muitas ocasiões em que na esquerda se fala de americanização, tenho a impressão que não se perceba o ponto político e se prefira refugiar-se em discutíveis esquemas de tipo ideal e um tanto caricatural. No caso específico, dá-se do sindicato americano a imagem de uma estrutura nacionalista, corporativa, corrupta. Há nisso indubitáveis elementos de verdade, é óbvio, mas não se considera sua peculiar ambivalência. A partir dos anos 1980, os corruptos sindicatos americanos entenderam que, ante a crise estrutural (que é uma crise que não se refere somente a eles, mas se encaixa precisamente na forma-sindicato dentro das transformações produtivas e do trabalho em plano global), eles se encontraram ante a escolha: ou morrer, ou abrir à base as próprias estruturas. Mesmo entre mil contradições, incertezas, contraimpulsos e evidente oportunismo, escolheram a segunda opção. Opção que, seja dito, é interna à tradição sindical americana, menos forte e centralizada do que na Itália, e precisamente por isso mais permeável à utilização operária da local union. De outra forma, como teriam sido possíveis extraordinárias experiências de organização e protagonismo da força-trabalho migrante, como aquela de Justice for Janitors? Ou então se pense na utilização de sindicatos como o United Auto Workers, da parte dos coletivos autônomos dos graduate students em sua luta contra a corporate university.
O risco que, às vezes, se entrevê nas palavras de alguns dirigentes (somente alguns, seja dito) da Fiom, cuja resistência, repito, é realmente importante e a manter de todos os modos, é uma nostalgia. Não só a nostalgia pelas lutas operárias no capitalismo industrial, mas, talvez até mesmo a nostalgia pelos patrões do capitalismo industrial que reconheciam o sindicato e, tudo somado, eram mais unânimes. O risco é, pois, aquele de uma crítica puramente moral e, portanto, não materialista a Marchionne. Os patrões não são nem bons nem maus, são patrões. Tem sido a luta de classes que os civilizou. Tem sido o medo a impor-lhes limites. Têm sido as revoluções de outubro e os conflitos operários a impor o welfare. Os direitos não são irreversíveis, mas fruto de uma relação de forças.
Agora, para estar à altura deste desafio, o sindicato deve pôr-se à disposição da autonomia do trabalho vivo e dos seus processos de organização. Deve tornar-se um lugar político e um dos espaços no qual se produz recomposição intercategorial. Por exemplo: como se repensa a greve no momento em que sua forma clássica corre o risco de ser inadequada nas formas da produção contemporânea, em que tempos de trabalho e tempos de vida se confundem, em que os limites entre lugar de trabalho e lugares do “tempo livre” se tornam incertos, em que a metrópole se torna aquilo que uma vez era a fábrica?
As lutas dos últimos anos, na Itália como alhures, têm dado indicações importantes através dos blocos metropolitanos da comunicação, dos escambos, da circulação das mercadorias. Em suma, como se volta a fazer mal aos patrões, “bons” ou “maus” que sejam? Estas, e não uma genérica americanização, são as questões e os problemas ante aos quais o sindicato se encontra para subtrair-se ao desafio de Marchionne entre ser reduzido à marginalidade ou tornar-se sob todos os efeitos um sindicato amarelo. Talvez os movimentos dos estudantes, dos precários, dos operários deveriam começar a ocupar as câmeras do trabalho para fazer delas lugares comuns de organização dentro da metrópole produtiva.
IHU On-Line – A crise em Mirafiori também pode ser interpretada como crise do capitalismo industrial ou como transição ao um capitalismo pós-fordista? O que caracteriza este novo capitalismo e quais são suas implicações para o mundo do trabalho?
Gigi Roggero – Falar de capitalismo cognitivo não significa sustentar o exaurimento do trabalho manual, ou contrapor o trabalho assim dito imaterial ao material. Significa, ao invés, indagar a centralidade dos saberes no novo paradigma de acumulação e nas formas do trabalho. A cognitivização é, para usar as palavras de Marx, “uma iluminação geral na qual todas as outras cores são imersas e a que as modifica em sua particularidade [...] [a] atmosfera particular que determina o peso de tudo quanto ela envolve”. Não devemos interpretar o capitalismo cognitivo como um novo estágio, progressivo, do desenvolvimento histórico: realmente não; o capitalismo se nutre e compõe de diferentes formas do trabalho e da produção, “iluminadas” por paradigmas específicos de acumulação. É um modo de produção que traduz continuamente a heterogeneidade da unidade do valor.
Retornemos ao exemplo que eu fazia da universidade na Itália. O desinvestimento na assim dita “economia do conhecimento” estaria talvez em contratendência em relação à centralidade dos saberes no paradigma de acumulação? Quem a pensa assim tem evidentemente uma imagem linear e progressiva do capitalismo cognitivo, em nada correspondente à realidade. Dizer cognitivação significa, acima de tudo, dizer cognitivação do proveito e da medida, das hierarquias de classe e da divisão do trabalho.
O que há de objetivamente belo e progressivo nos saberes? Nada; eles são um campo de batalha que é hoje central nas relações de produção. Então, se aquilo que eu dizia antes a propósito do modelo Marchionne e a estratégia de cessação da universidade na Itália é verdade, nenhum reformismo ou new deal é possível. Em outros termos: são ilusórias as posições de quem (em campo neoliberal ou em alguns setores radicais) pensa que o problema seja o de investir em formação e pesquisa para sair da crise do capitalismo cognitivo. O que não se entende é que o capitalismo cognitivo é uma crise em cujo interior se redesenham continuamente hierarquias e diferenciações das formas de exploração. Para transformar a universidade, reapropriar-se da riqueza social ou organizar o município é preciso desafiar Marchionne. Esta deve ser a base de uma crítica objetiva, materialista, e não moral a Marchionne.
IHU On-Line – Por que as categorias interpretativas da sociedade industrial são insuficientes para entender a mutação do capital em curso, especialmente no caso Mirafiori?
Gigi Roggero – Pode-se imaginar, em Turim e Detroit, o que sucede na fábrica, a não ser conectando-o com a renda imobiliária e com o plano de desenvolvimento da metrópole pós-industrial? Pode-se compreender o modelo Marchionne sem o modelo de captura do capitalismo cognitivo? Evidentemente não. Assim como não se pode entender o modelo Marchionne se ele não for inserido dentro dos novos espaços e tempos globais da relação de classe, e se não for enquadrado dentro dos processos de financiarização. É nos mercados financeiros que a Fiat-Chrysler “mensura” os resultados do próprio projeto. Muitos observadores, também da parte burguesa, dizem de maneira dura: Marchionne não tem nenhum plano industrial. É absolutamente verdade, mas isso não é suficiente. A pergunta é: e se não fosse o plano industrial o objetivo principal de Marchionne? E, se para o manager do capitalismo no future o problema não fosse a organização da produção a longo prazo, mas embolsar o que é possível no imediato? A renda, e não o lucro?
Indagar estes aspectos não é questão de mera especulação teórica, mas tem imediatas implicações políticas. Por exemplo, o problema não é se os patrões, em lugar dos Suv (os veículos utilitários) produzem máquinas ecológicas. O problema são os patrões. Num encontro público do passado outono disse-o em termos eficazes um operário de uma indústria metal-mecânica emiliana: “O que muda para nós operários o fato de que nossas fábricas sejam reconvertidas na produção ecológica, se depois devemos trabalhar com os ritmos e os salários de hoje? Não é possível falar de ambiente, se antes não se fala de exploração”. Eis o ponto. O coletivo não é a autogestão das fábricas ou a participação nos planos dos patrões, mas a luta contra a exploração e a construção de uma nova relação social além da dialética entre público e privado. É a reapropriação da riqueza social da parte da multidão e uma decisão coletiva sobre a produção, e não sobre a ordem de importância das mercadorias na hierarquia capitalista.
IHU On-Line – Você afirmou que a financiarização é constitutiva dos novos processos de produção laboral. Poderia explicar um pouco mais esta ideia?
Gigi Roggero – Parece-me já o ter acenado, pelo menos esquematicamente, no que se refere ao lado da empresa. Mas, vejamos a questão do ponto de vista do trabalho. Nas entrevistas aos operários em integração de caixa ou submetidos à chantagem Marchionne, a primeira questão que vem à tona não é a defesa do posto de trabalho, mas o problema do aluguel ou da prestação a pagar pela casa ou para mandar os filhos à universidade, ou então o endividamento com os cartões de crédito ou o fundo de pensão a construir. Segundo dados recentes de uma pesquisa da Bankitalia, 5% das famílias italianas que fizeram um empréstimo não conseguem pagar as prestações e são insolventes; entre os desempregados chega-se aos 19%. E os especialistas, aterrorizados, preveem um crescimento da taxa de insolvência. Hoje, não é mais possível pensar nas lutas pelo salário como no passado, e este é outro desafio que se põe ao sindicato. Hoje luta pelo salário significa luta pela renda, pelos serviços, pela riqueza social. Aqui, a economia real e a economia financeira se entrelaçam e se confundem e a dialética não tem mais razão para existir. E aqui se encontra o terreno imediatamente generalizado do conflito e a necessidade da recomposição social. Não há mais espaço para as lutas de categoria: o corporativismo parte derrotado, a única possibilidade realista de vitória está na generalização.
Poderemos, pois, dizer que as lutas pelo salário explodem na fábrica e se recompõem no plano social. Este plano do conflito assume múltiplos níveis e declinações, também no plano jurídico. Enquanto o Estado salva os bancos e as empresas para permitir a reprodução de seu papel parasitário, manda à galera os insolventes. Assim, nos Estados Unidos começaram nos últimos anos a se afirmar e a vencer causas de trabalhadores individuais e precários que – insolventes nas prestações ou os cartões de crédito – reivindicam o próprio direito à bancarrota. No momento em que a vida é financiarizada, a afirmação do direito dos proletários a pegar o dinheiro e não refinanciar o débito é uma nova forma de luta pelo salário e pela renda.
IHU On-Line – O capitalismo do século XXI mostra mais e mais a centralidade do trabalho cognitivo/imaterial em sua produção. De que modo essa centralidade se emanifesta no processo produtivo?
Gigi Roggero – Para Marx, a classe operária não era uma figura sociológica, mas uma figura política. Era a figura política do trabalho produtivo. Não se é classe operária, mas se vem a ser classe operária. Não há classe operária sem luta operária. Agora que os limites entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo se confundem, emerge uma nova urgência política. Individuar as novas hierarquias, a nova “iluminação geral”, mais precisamente, é útil para entender os pontos de possível ruptura do sistema. Não porque – atenção – haja especularidade e simetria entre hierarquia produtiva e hierarquia das lutas, isto seria tolo e vil determinismo.
O problema é sair de uma imagem puramente sociológica do trabalho para captar sua composição. E são principalmente as lutas que determinam a composição de classe, a qual é o entrelaçamento e a tensão entre posição dentro da hierarquia produtiva e processos de subjetivação e conflito. Por conseguinte, a centralidade das novas figuras do trabalho emergiu nas lutas dentro da crise. Cito uma anedota: no outono de 2008, em Bolonha, durante uma assembleia do movimento universitário que havia tomado o nome de “Onda anômala”, a um estudante de Turim foi solicitado que contasse sobre as panfletagens dos universitários diante dos portões de Mirafiori, quase como se estivesse assistindo a uma reproposição da aliança entre estudantes e operários no cálido outono de 1968-1969. A resposta desnorteou a todos: “Vede que o elemento extraordinário é exatamente o contrário: são os operários que vêm em frente aos portões da universidade para procurar organizar-se como a Onda”.
determinam a composição de classe,
a qual é o entrelaçamento e a
tensão entre posição dentro da hierarquia produtiva
e processos de subjetivação e conflito"
De resto, como já sublinhei abundantemente, não podemos pensar na nova composição de classe como aliança entre setores do trabalho: os “tradicionais” e os “novos”, os “materiais” e os “imateriais”, os “manuais” e os “intelectuais”. O trabalho em fábrica mudou completamente em relação à organização taylorista. E não mudou no assim dito “Ocidente”, mas em plano global. A ideia de um “pós-fordismo” no centro e de um “fordismo” periférico está calcado sobre uma imagem da divisão internacional do trabalho que entrou em crise faz tempo. Para dizê-lo de um só golpe: a Itália desmantela a universidade, a China e a Índia investem em formação e pesquisa. Há alguns anos, Christian Marazzi mostrou de modo convincente como a diminuição dos postos de trabalho no setor manufatureiro no “Ocidente” não era atribuível ao deslocamento de massa para países como a China: é, ao contrário, buscada num aumento da produtividade do trabalho industrial.
Na China a força-trabalho empregada na manufatura é umas seis vezes superior à americana, mas produz não mais da metade do valor em dólares dos bens industriais dos Estados Unidos. De outra parte, desde o início dos anos 1990, também na China, em Singapura, na Coreia do Sul ou em Taiwan, a ocupação no setor industrial estava diminuindo. Neste quadro, que é um quadro global, muda a relação entre capital fixo e capital variável, entre trabalho vivo e trabalho morto, ou então, entre saber vivo ou saber morto. O processo de cristalização ou objetivação do saber no sistema das máquinas se articula de modo novo e peculiar: o trabalho/saber morto necessita ser vivificado em tempos extremamente rápidos, dos quais escapa continuamente um excedente de saber vivo e social. Marchionne pensa, então, já que administra a propriedade do capital fixo para seu grupo, poder dispor livremente de uma força/trabalho sob desafio. Aquilo de que em sua louca presunção não se dá conta é que aquela força/trabalho não só é decisiva, como sempre foi, em fazer funcionar as máquinas, e sua importância até cresce em medida diretamente proporcional à diminuição de sua quota; mas, a força/trabalho tende também a incorporar a própria máquina, as funções típicas do capital fixo enquanto sedimentação de saberes.
A questão política é a assunção do plano transnacional da luta: se o capital é global e a força/trabalho é local, o desafio se reproduz. O plano da organização e das lutas deve, pois, ser imediatamente transnacional. No ano passado, voltando da Suíça, coube-me assistir a um retalho de conversação entre um trabalhador do conhecimento que retornava da Alemanha a Milão e um operário calabrês que voltava de Zurique. “Como é a cidade?", perguntava o trabalhador do conhecimento, evidentemente imaginando os locais, os espaços urbanos e a vida social da capital suíça. “Pagam dia 27 de cada mês” foi a resposta que não admite réplicas. Esta anedota restitui com eficácia e melhor do que refinadas análises sociológicas as mudanças da produção da subjetividade dos trabalhadores. É possível refugiar-se na nostalgia romântica por aquilo que não mais existe, ou fugir para a idealização utopista do novo.
Em ambos os casos, no entanto, há um consignar-se à impotência política. A questão é que hoje não mais existe uma medida do valor e não mais existe sequer uma medida das lutas: Marchionne ganha mais de quatrocentas vezes o salário dos seus operários, sem contar as stock options e todo o resto. A perda dos pontos de referência pelos quais mensurar as relações de força (o dinheiro do envelope pago dia 27 do mês, precisamente) tem evidentemente um lado extremamente problemático e inquietante: os operários cognitivos tendem a não mais reconhecer no salário um terreno de conflito e de construção das relações de força, ou até mesmo extraviam completamente a identificação de uma contraparte, recusando a própria condição coletiva e de trabalhadores. Entre os pesquisadores da universidade, por exemplo, há com frequência uma implícita interiorização do desafio de Marchionne sem que isto seja publicamente formulado: não há necessidade de um referendum para aceitar a identificação entre trabalhadores e empresa, para aceitar tempos e condições de precariedade insuportáveis em troca de um status, o do “criativo”. E, no entanto, precisamente aquela explosão da forma/salário, o estar fora da medida das lutas promove a colocação em jogo. Hoje o plano do conflito se coloca num nível imediatamente constituinte: a reapropriação da riqueza social não pode ser pensada do lado de fora da produção e da organização da coletividade, de uma nova relação social fundada sobre a reinvenção da liberdade e da igualdade. E vice-versa.
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"A empresa é global, a chantagem é local". O caso Fiat. Entrevista especial com Gigi Roggero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU