11 Agosto 2010
O relatório “Tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura”, lançado no início do mês pela Pastoral Carcerária, revelou que policiais e agentes públicos ainda resistem em combater a tortura nas prisões brasileiras. No topo da lista estão os estados de São Paulo e Maranhão, mas o assessor jurídico, José Jesus Filho, diz que a lista teria uma configuração diferente se todas as pastorais atuassem com mais força nesse sentido e enviassem informações sobre os casos de torturas em seus estados. Ele destaca, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, que o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo vivem situações muito problemáticas no que diz respeito à tortura nas prisões.
“Tenho certeza de que há uma mentalidade ditatorial e nós podemos verificar isso em variados fatores. Em primeiro lugar é o poder da polícia militar, que invade todos os espaços, casas, prisões, delegacias, supermercados. Ela tem um poder que é difícil de ser contida”, critica ele.
José Jesus Filho é assessor jurídico da Pastoral Carcerária, membro da Congregação Oblatos de Maria Imaculada, graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista e especialista em Criminologia pela Universidade Federal de Goiás.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as principais conclusões do relatório “Tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura”?
José Jesus Filho – A primeira e mais importante é a de que a tortura ainda existe nas prisões do país. Outra conclusão é a de que falta um mecanismo de controle dos agentes públicos responsáveis pela prevenção e repressão ao crime. Eu creio que estas duas são as conclusões mais importantes.
IHU On-Line – Nesse momento, qual a posição do governo quanto à implementação do mecanismo nacional de combate à tortura, previsto na Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU)?
José Jesus Filho – Os mecanismos de combate à tortura já existem. O Ministério Público e a Polícia Civil são os organismos do Estado com aparelhagens e com a função de reprimir a tortura. Embora sejam disfuncionais em alguns aspectos, os mecanismos já existem, porém precisam ser aperfeiçoados. Outra constatação no relatório é que o corporativismo ainda é a grande arma dos torturadores. Eles contam com essa ferramenta e com a resistência do aparelho repressivo do Estado em apurar os crimes. É importante ter clareza sobre isso.
O mecanismo preventivo, que é o mecanismo de monitoramento, não tem a finalidade direta de combater o crime, mas sim de prevenção, ou seja, ele procura monitorar os locais mais violentos e constatar os fatores que levam à tortura para poder ajustar esses erros. O Brasil ratificou o protocolo facultativo na Convenção da ONU contra a tortura que prevê a criação de um subcomitê para prevenção da tortura – um mecanismo internacional de visita aos locais de contensão no mundo inteiro. O documento também prevê a criação de mecanismos preventivos nacionais. O Brasil ratificou isso em janeiro de 2007, ou seja, já se passaram mais de três anos e ainda não implementamos o mecanismo. Desta forma, o Brasil, até o momento, está descumprindo um compromisso internacional assumido.
IHU On-Line – Por que muitos juízes e promotores ainda resistem a combater a tortura nas prisões brasileira?
José Jesus Filho – A resistência existe por várias razões. Uma delas se deve ao fato de que as autoridades têm dificuldade em aceitar que existe tortura nas prisões brasileiras. Além disso, os agentes públicos resistem em reprimir a ilegalidade de seus colegas. Outro fator é de que uma autoridade pública depende da outra, gerando uma resistência tanto de um lado quanto de outro. Então, por exemplo, se a tortura é realizada por um policial civil, o promotor tem receio de reprimir e apurar esta tortura praticada porque, com isso, a instituição deixaria de cooperar com o Ministério Público em uma série de outros crimes.
Há também uma razão mais antropológica – a de que o torturado, em geral, provém de camadas sociais mais baixas. Ou seja, existe uma estratificação social baseada não somente em fatores econômicos e raciais. Isso tudo leva a certa legitimação da tortura contra os mais pobres. Assim como o escravo sofria por sua indisciplina, a sociedade entende que o preso também, diante da insubordinação, pode ser torturado.
IHU On-Line – Quais as peculiaridades das penitenciárias de São Paulo e do Maranhão têm para estarem no topo da lista de tortura dos presos?
José Jesus Filho – Na verdade, esses estados não são nem de longe os mais torturadores. O que determinou colocar esses estados no topo foi a atuação da Pastoral Carcerária. A atuação nestes estados se voltou durante um período, principalmente de 2006 a 2009, à prevenção e combate a tortura. Já a Pastoral do Rio Grande do Sul não cooperou. Essa é a dificuldade, na verdade; nós sabemos que há tortura no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, no entanto as pastorais desses estados não informaram isso.
Então, na verdade, estes estados que apresentam níveis altos de tortura mostram que a Pastoral atuou mais, esteve mais presente nas prisões e no combate a tortura. É verdade que SP e MA também convivem com a tortura no seu cotidiano cotidiana. O Maranhão é um estado que tem um problema de tortura muito sério, assim como o Espírito Santo.
IHU On-Line – Podemos dizer que há uma mentalidade ditatorial ainda nas prisões onde se cometem tortura?
José Jesus Filho – É claro. Tenho certeza de que há uma mentalidade ditatorial e nós podemos verificar isso em variados fatores. Em primeiro lugar é o poder da polícia militar, que invade todos os espaços, casas, prisões, delegacias, supermercados. Ela tem um poder que é difícil de ser contido. Outro fator: monitorar uma delegacia ou uma prisão é um trabalho muito difícil, há uma série de barreiras quase sempre com resquícios próprios do período ditatorial. Por exemplo, quando a Pastoral Carcerária quer entrar para visitar uma unidade prisional, o discurso é sempre aquele de que existem indícios de rebelião, de que se precisa manter a ordem, “não vamos permitir que ingressem na unidade porque existem riscos”.
Os discursos do período ditatorial, quando se queria subtrair direitos, eram os mesmos. É sempre para o bem da sociedade, “para o bem da população que nós restringimos direitos e reprimimos os resignados.” O que acontece é isto mesmo: um misto de ilegalidade com ares de superioridade, típico do período ditatorial brasileiro que nós convivemos até hoje.
IHU On-Line – Há casos de tortura contra os presos em todas as penitenciárias brasileiras?
José Jesus Filho – Não. Embora a tortura ocorra em grande quantidade, ela não conta com a anuência de todos os agentes públicos. Há muitas unidades prisionais em que os presos são tratados com respeito, com a sua integridade física e mental preservada. Ao observar as possibilidades dos agentes públicos, eu diria até que há uma tensão entre aqueles que querem a tortura e os que se recusam a aceitar essa prática criminosa. Boa parte dos casos que chegam ao conhecimento da Pastoral foi denunciada por agentes públicos e policiais que, ao fazerem isso, muitas vezes, arriscam suas próprias vidas.
IHU On-Line – É possível traçar um perfil das penitenciárias brasileiras?
José Jesus Filho – Em geral não, porque cada região tem características próprias. Eu não saberia, por exemplo, falar sobre o a região sul porque as informações aqui são escassas. Já a região sudeste tem uma sociedade bastante estratificada, com uma elite privilegiada que se beneficia dos bens da sociedade e com uma massa empobrecida que é selecionada pelo poder punitivo para ser torturada. Esse é o grupo torturável.
O Nordeste é uma região em que a administração prisional é controlada pelas oligarquias, onde o coronelismo ainda é muito forte. Já na região Centro-Oeste há uma supremacia da polícia militar, que tortura abertamente e o poder judiciário e Ministério Público não têm força para enfrentá-la.
IHU On-Line – O que o relatório fala da questão dos suicídios nas prisões brasileiras?
José Jesus Filho – Nós deixamos o suicídio de lado, porque ele é tema de outro debate. Sabemos que o suicídio tem aumentado naquelas unidades onde há isolamento por até 23 horas diárias. Então, nas penitenciárias federais há tentativa de suicídio quando está presente o regime disciplinar diferenciado com confinamento total. Agora, também existem os falsos suicídios, ou seja, homicídios mascarados de suicídio.
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Prisões brasileiras sob uma mentalidade ditatorial. Entrevista especial com José Jesus Filho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU