12 Janeiro 2008
O Pará é hoje considerado um dos estados brasileiros com maior índice de violência. Há um crescimento enorme da violência e da luta pela terra. Os defensores daqueles que foram expulsos de seu chão ou que são escravizados vivem sob constante proteção policial ou são mortos pelos grileiros e latifundiários, como foi o caso da irmã Dorothy Stang, em fevereiro de 2005. Mas há também o crescimento da violência urbana gerada, principalmente, pelo tráfico de drogas. Dom Flavio Giovenale, há dez anos, chegou à cidade de Abaetetuba, no oeste do estado. A violência já era grande, mas ele, desde lá, luta por melhores condições da educação e pela inclusão das inúmeras crianças e adolescentes que deixam de estudar cedo. “Isto é como abastecer a marginalidade de novos elementos, porque são mais de mil alunos que terminam a quarta série todo ano e não encontram vaga nas escolas estaduais”, relatou Dom Flavio, em entrevista exclusiva, realizada por telefone, à IHU On-Line.
Dom Flavio, ameaçado de morte, alou sobre a violência e sobre os elementos que aumentam tal situação na cidade. Ele fala ainda sobre o caso da menina L., que gerou um grande debate acerca do colapso da situação carcerária instaurado no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor pode contar um pouco da história de Abaetetuba e a relação com a forte presença da violência no Pará?
Dom Flavio Giovenale – Abaetetuba é uma cidade do Pará que já tem história desde 1700 e pouco, quando foi fundada aqui às margens do Rio Tocantins. Era um lugar bem tranqüilo, do ponto de vista da navegação, de maneira que as embarcações que estavam prosseguindo para Belém ou para o interior poderiam se refugiar neste lugar para fugir das várias tempestades. Nós temos aqui uma região bastante perto do oceano, perto da foz do Rio Tocantins. Foi por isso que começou a povoação, inicialmente com pessoas vindas de Portugal. Então, Abaetetuba, ao longo dos tempos, se tornou um centro comercial muito forte, chegou a ser a segunda economia do Pará, alicerçada sobre duas colunas: a das olarias e a dos engenhos da cachaça. Esta economia continuou até mais ou menos 1970, quando começou a ruir por causa da construção da Belém-Brasília, que permitiu a chegada da concorrência. O fato de ter já vários concorrentes que vinham de São Paulo e do Nordeste, trazendo uma cachaça de melhor qualidade e com preço mais barato, trouxe a falência da indústria de cachaça, se é que podemos chamá-la assim.
Começou a ser construído um complexo da Vale do Rio Doce (1) para a exploração do alumínio, que antes era exportado naturalmente, bruto. A partir desta inauguração, o alumínio passou a ser e continua sendo exportado, portanto, para o Brasil; foi um avanço muito forte. Isto, de um lado, ajudou a não ver a grande crise que estava se instalando, que era a crise das olarias que ficava nas ilhas, porque a população que saía das ilhas era logo envolvida na construção desse grande complexo. Depois, quando terminou a construção, no início da década de 1980, a crise se fortaleceu ali, onde já havia um certo contrabando, facilitado pela geografia da região. O contrabando ia tanto do Brasil para a Guiana Francesa quanto de lá para cá. Contrabandeava-se de tudo: perfumes, cigarros, drogas e até arroz e café. A droga nunca foi produzida em Abaetetuba. Era, sim, produzida em outros lugares e daqui era exportada. Nos anos 1990, a sua presença continuou muito forte. Além de aumentar o consumo, como aconteceu em todas as partes do mundo, aumentou também o comércio e a exportação da droga. Esse foi o panorama.
Em 1997, teve até um artigo da Folha de S. Paulo sobre a importância de Abaetetuba para o narcotráfico. Em 19 de novembro de 1998, houve a destruição do Fórum, da Câmara dos vereadores e da Prefeitura. Foi uma ação que está sob investigação até hoje. Tudo indica que foi uma ação dos traficantes de drogas. Era algo já planejado. O fórum precisou ser reconstruído completamente, mas os bandos deixaram intacta a parte que tratava da família, sobre casamentos, divórcios, adoções e tudo mais. E destruíram completamente a parte que tratava de crimes. Já antes disso a Igreja tinha uma atuação muito forte contra a droga, mas, a partir dali, ela se tornou mais clara. Começamos tanto a exigir mais repressão, com a polícia melhor equipada, quanto a fazer um trabalho preventivo nas escolas, para que todas as crianças da comunidade estivessem estudando, mas até agora não conseguimos alcançar este objetivo. O ensino, aqui em Abaetetuba, de primeira à quarta série, é municipalizado. Depois da quinta série, continua sob a responsabilidade do estado. Até agora, não se alcançou que o estado construísse escolas em número suficiente para abrigar todas as crianças e adolescentes da quinta série em diante.
Temos, então, uma legião de crianças que todo ano estão fora da escola. Isto é como abastecer a marginalidade de novos elementos, porque são mais de mil alunos que terminam a quarta série todo ano e não encontram vaga nas escolas estaduais. Ou seja, de mil crianças, 5% entram na marginalidade e 85% continua simplesmente na marginalidade. Teremos, com isso, um aumento de 150% na marginalidade infanto-juvenil por ano, o que, daqui a pouco, formará um exército. Então, tentamos sempre sensibilizar as autoridades, mas, por mais que os discursos fossem bonitos, na prática não aconteceu nada. Agora, o que aconteceu foi o aumentou progressivo da violência urbana, de gangues, especialmente na parte de periferia, onde se acumulam os pobres. Agora, este caso da menina L. é emblemático, seja pela violência que ela sofreu, seja até pelas reações da própria polícia, que agiu de maneira equivocada. Em vez de ela dizer “erramos, vamos consertar”, agiu com ameaças, com pressões, ou seja, tentou se defender com novos crimes, não agindo dentro da lei. O triste desse fato foi como ela reagiu. Se a população tinha medo da polícia civil, mas também confiança, essa desapareceu por completo.
IHU On-Line – O senhor pode falar do seu compromisso em favor dos pobres e dos maltratados?
Dom Flavio Giovenale – Estou há dez anos aqui. Antes, a Diocese tinha uma atuação muito forte, seja através das Comunidades Eclesiais de Base (CBE’s), seja através das organizações populares. Nos anos 1970 e 1980, a Igreja deu um incentivo muito forte a todo este trabalho. Quando eu cheguei, minha missão foi continuar este trabalho e não inventá-lo do zero. Houve, sim, uma preocupação com a juventude. Eu, de vocação, sou salesiano, portanto este atendimento à juventude está no sangue. Então, o cuidado com isto e com aqueles elementos que podem ajudar a cortar o aumento da violência, que é mesmo a educação escolar e profissionalizante, foram prioridades minhas. Quando eu cheguei, já encontrei uma estrutura educacional da Diocese muito bonita, sempre em parceria com os governos municipal e estadual, de maneira que existem escolas públicas e escolas da diocese em regime com o poder público.
Inclusive, nas estatísticas do Ministério da Educação estão muito bem colocadas, do ponto de vista da qualidade do ensino, o que é reconhecido também pelos pais, que fazem um esforço muito grande para conseguir vaga nessas nossas escolas. Graças às parcerias existentes, a contribuição dos pais é mais simbólica do que outra coisa. Em duas escolas, nós estamos pedindo R$ 1, por mês, e na escola maior e mais equipada se pede R$ 8, por mês. Então, é uma coisa mais simbólica do que mesmo real, mas é importante para algumas despesas. Atualmente, nós temos mais de cinco mil alunos. Quando eu cheguei eram 1 800. Sempre na tentativa de diminuir o impacto da marginalidade sobre a juventude. Depois, a Igreja sempre se esforçou muito nas organizações populares: sindicatos, movimento de mulheres, cooperativas. Isto prossegue, por mais que atualmente estejamos numa situação bem diferente dos anos 1970 e 1980, quando não tínhamos liberdade. Agora, essas organizações já são autônomas.
Nós participamos da organização, damos incentivos, procuramos orientar, mas não é mais um compromisso direto graças à implantação do estado democrático. Um sonho que a Diocese tinha e não conseguiu realizar, pois o bispo precedente Dom Ângelo (2) faleceu antes, foi a construção de uma escola profissional e, hoje, conseguimos essa façanha. Já são cinco anos de atividade, representando um marco na sociedade de Abaetetuba, na luta contra a violência e contra tudo aquilo que pode levar à marginalidade. De um lado, existe a luta explícita e, de outro, está se tentando aquilo que está dentro do compromisso das possibilidades da igreja para diminuir o impacto das drogas em cima da juventude. Temos também a Pastoral do Menor, que é muito ativa e que acompanha mais de 1 600 crianças só em Abaetetuba. Temos centros de acolhida, em que os alunos têm reforço escolar, profissionalização, acompanhamento dos pais, educação sexual, acompanhamento no caso de abusos. Uma série de atividades incluem atendimento às crianças e adolescentes em situação de risco. São estas as grandes atividades sociais existentes aqui na Diocese.
IHU On-Line – Há outros casos semelhantes ao da menina L. no Pará?
Dom Flavio Giovenale – Casos assim, depois que denunciamos este de Abaetetuba, apareceram. Às vezes, eram de meninas, mas a maioria era de mulheres adultas submetidas a tal situação. Exatamente porque se trata de um grande problema, é preciso ser dito, exposto. Não é só culpa dos profissionais da segurança, mas existe também uma falha estrutural do governo do estado e do governo nacional, que é a falência do sistema prisional brasileiro e, contemporaneamente, das delegacias. O Pará tem 143 municípios e só 132 tem delegacias. Portanto, há 11 municípios que nem delegacia tem. Das 132 delegacias presentes no Pará, só seis têm celas para as mulheres. Quer dizer, existe realmente uma deficiência estrutural. Se uma menina ou uma mulher é presa é porque, às vezes, cometeu um crime que não pode ser respondido em liberdade. Mas se, por exemplo, uma menina de 15 anos mata outra pessoa, onde vai ser recolhida se a delegacia não tem estrutura mínima, não tem nem um espaço reservado para acomodá-la? Ou mesmo se for uma mulher maior de idade?
Não é apenas vandalismo dos policiais. Existe também uma situação estrutural que às vezes foge, certamente, à alçada da polícia, que às vezes se acostuma a agir de maneira errada. Sei que normalmente colocavam as mulheres no corredor entre as celas, mas não se trata de um corredor largo, não tem banheiro. Assim, para fazer as necessidades, precisavam ir à cela dos homens. No caso da menina L., ao que tudo indica, vamos aguardar ainda o término das investigações, foi mesmo uma punição que os policiais quiseram dar, porque ela já tinha sido presa umas seis ou sete vezes nos últimos meses, sempre furtando coisinhas. O que se diz é que os policiais ficaram de saco cheio com a presença da menina e disseram que naquele momento dariam a ela uma punição. Não competia a eles tal decisão, especialmente gerar uma situação como esta, que foi uma verdadeira tortura, mas eu penso que na cabeça deles passou este pensamento. Isto é responsabilidade do estado e do governo federal.
IHU On-Line – Como é que o senhor ficou sabendo desse caso?
Dom Flavio Giovenale – Eu soube logo pelo Conselho Tutelar, com quem nós temos um ótimo relacionamento e que foi implantado graças à pressão dos movimentos populares e no próximo ano vai fazer dez anos. Sempre foi um conselho muito atuante. Há alguns anos, foi ele que fez as denúncias daquelas meninas e meninos que trabalhavam nas olarias da região rural e que tinham sido escalpeladas, perdendo os pés ou as mãos por causa das máquinas e marombas. Eles me avisaram, especialmente porque num primeiro momento não conseguiram nada além de xingamentos e ameaças. Isto foi na véspera do feriado do dia 15 de novembro. Mesmo com a documentação, o delegado, que já foi suspenso, não quis tirar a menina do meio dos homens. A menina ficou presa ainda 24 horas depois da denúncia, depois que os conselheiros tutelares foram para lá. Então, eles me avisaram logo exatamente porque imediatamente começaram as pressões muito fortes. No dia seguinte, quando encontraram os pais, os ameaçaram. Fica uma situação muito tensa. A partir dali, fui acompanhando o caso.
IHU On-Line – Por que o senhor acha que pouco se faz contra esse tipo de violência e, ao mesmo tempo, a mídia dá maior atenção à violência que acontece nos grandes centros urbanos, como no Rio de Janeiro?
Dom Flavio Giovenale – Porque você, que é da área de comunicação, sabe o que dizem os estadunidenses: “Good news, no news”. Ou seja, uma boa notícia não é notícia. Uma morte ou tortura, ou como foi o caso do menino João Hélio, que foi arrastado pelos bandidos no carro, gera notícia. Por outro lado, existe mesmo um linchamento que a imprensa faz com os menores. Porque se é presa uma quadrilha que tem seis, sete, oito pessoas, e uma delas é de menor, ela é destacada. E existe uma verdadeira campanha toda orquestrada para o rebaixamento da idade penal para aumentar a violência contra os menores, como se a violência pudesse ser diminuída por meio da violência. Então, são situações complicadas, porque o grande interesse da mídia é vender. Se isto dá certo, tudo bem, como no caso da menina L. Porém, quando a notícia cansa, aí há outra que derruba aquela sem que se tenha dado os dados finais. Enquanto isto, teve todo um bafafá de políticos vindo para cá, mas concretamente está tudo na mesma situação. Falaram em demolir a delegacia. No entanto, se demolirem uma, teremos que construir outra.
Até agora, não se colocou um tijolo na nova. Portanto, continua a se trabalhar na mesma situação precária que tínhamos antes, pois a polícia prossegue sem novos equipamentos, sem novos integrantes. Estão todos trabalhando, tanto aqueles que não têm nada a ver com o assunto quanto aqueles que estão totalmente envolvidos com o caso. É uma situação complicada, porque a situação parece não ter solução. A única coisa positiva que aconteceu foi que a situação da menina foi resolvida. Ela tem chance agora de renovar a vida. A menina foi torturada, humilhada e tem que ser defendida por causa disso, mas não se pode transformá-la numa santinha. Ela tinha sido presa, nos últimos meses, por oito furtos, e era usuária de drogas. Agora, ela tem a chance de renovar a vida e eu espero, sinceramente, que aproveite esta chance. Depois de tudo o que passou, que o sofrimento tenha a feito amadurecer para dizer: “não, eu não vou mais cair nessa”. A segunda coisa positiva é uma sensibilização que se levantou.
Vamos esperar que daí saia coisa boa, tanto de sensibilidade da polícia para não repetir esses casos no país, como também o fato de tentar procurar soluções para isso. É um compromisso em nível de nação, estado e município. Nós temos que fazer a nossa parte, não deixando o caso cair no esquecimento, mas também cobrar quem é responsável. Existem coisas que não dependem do prefeito ou do policial; dependem, neste caso, em específico, do Ministério da Justiça. Tem outros casos que dependerão da Secretaria de Justiça do Pará. É preciso cobrar de cada um e não simplesmente fazer o jogo que Adão e Eva fizeram, quando Deus perguntou “por que fizeram isto?”. Adão jogou a culpa em Eva, esta na serpente, e a serpente, que naquela hora não podia mais falar, acabou assumindo as responsabilidades que Adão e Eva não assumiram. Agora, podemos fazer esse joguinho de novo. A União joga a responsabilidade no Estado, que joga na polícia, que joga no Ministério Público, que, por sua vez, joga na prefeitura. Resultado: um joga a responsabilidade para o outro, mas mudar até agora ninguém mudou nada.
IHU On-Line – E, em meio a todas essas notícias e com toda a sua luta, como é que o senhor recebe a notícia de que um menino da região de Bauru (3), em São Paulo, foi torturado pela polícia?
Dom Flavio Giovenale – Às vezes, eu digo que precisamos fazer um transplante de coração e de cabeça. Existe toda uma onda, que não é de agora, na sociedade, em que se diz que o Estado não tem capacidade para combater a violência e para procurar a justiça. Então, cada um tem que se defender do jeito que pode. A polícia tem que encontrar culpados e, se for necessário, tortura. Essa é uma mentalidade quase que geral. Mas isso vem através de toda uma educação. O que me preocupa nesta educação é que se faz contra a capacidade que o Estado tem de resolver os problemas e, quando falo de educação, sei do que estou falando. Veja alguns filmes: normalmente, dizem que a polícia não tem capacidade e dizem “arme-se e mate”. Se pegarmos histórias em quadrinhos inocentes, tipo Batman ou Super Homem eu pergunto: qual é o papel da polícia nessas histórias? Ela faz papel de besta. Precisa-se de um homem normal? Não.
Precisa-se de um super-homem, que venha de outro planeta, porque o homem aqui da Terra não tem capacidade de lutar pela justiça. Isso é educação para violência e todo mundo, aos poucos, é educado para entender que as pessoas normais não conseguem lutar. Na prática, é essa educação que toda a indústria apresenta para nós. A mentalidade dos policiais, com isso, diz: “Antes que te matem, mata e, se puder dar porrada, dá porrada”. O caso de Bauru é um exemplo disso. Mostra que as torturas são uma prática comum para obter confissão. Então, é preciso haver mesmo uma troca de coração e uma troca de cérebros; dali vem a mensagem cristã também, porque Jesus disse: “Faça aos outros aquilo que quer que os outros façam a você”. O policial que tem um filho que faz uma besteira gostaria que ele fosse torturado? Temos que partir dessa mensagem cristã, que é uma mensagem de transformação social. A mensagem cristã vai nos trazer a paz, não como o mundo mostra, que é a paz do medo.
IHU On-Line – Seu trabalho em prol da justiça para os mais necessitados lhe rendeu inúmeras ameaças de morte. Como o senhor convive com esse tipo de problema?
Dom Flavio Giovenale – Há nove anos, quando houve a queima, a Diocese fez todo um trabalho de recuperação da sociedade de Abaetetuba e durante quase dois anos eu recebi algumas ameaças. Depois, recebi três ameaças em junho e julho de 2007, quando a polícia federal fez uma operação contra o tráfico e contra a pirataria. Em agosto e setembro, tive a possibilidade de falar duro contra o tráfico de drogas, mas não houve reação alguma. Depois que a coisa se acalmou um pouco, lá pelo dia 04 de dezembro, recebi uma ameaça.
IHU On-Line – O senhor sabe quem faz essas ameaças?
Dom Flavio Giovenale – Tenho plena consciência de que as ameaças não partem do Ministério Público ou da Justiça, assim como não acredito que seja da parte da polícia. Para mim, continua sendo da parte dos traficantes de drogas, que querem aproveitar esse momento para me fazer calar.
IHU On-Line – O senhor já chegou a repensar se continuava com a sua luta por causa dessas ameaças de morte?
Dom Flavio Giovenale – Repensar mesmo, não. Mas repensar os métodos, isto sim. De qualquer forma, de junho para cá, o que aconteceu foi intensificar as ações preventivas, como a melhoria das escolas e o diálogo com o governo municipal e estadual, a fim de não se deixar crianças e adolescentes fora da escola. Foi a primeira vez que juntamos esse dois poderes. Foi uma reunião de durou cinco horas, junto com os diretores das escolas. Deu muita esperança. Repensar, no sentido de desistir, não. O que eu pensei, por mais que alguns tenham me aconselhado a pedir a transferência, é em continuar. Não se pode deixar Abaetetuba nesta situação.
IHU On-Line – Como funciona essa máfia que gera violência no Pará?
Dom Flavio Giovenale – Eu não sei como funciona. Mas me parece que não é algo de uma situação local. A violência aumentou no mundo todo. É só ver os noticiários. Até em países ditos pacíficos, como a Finlândia, tem casos de violência, como aquele rapaz que matou os colegas dentro da sala de aula. Não é algo só do Pará, ou seja, temos que entender a violência de uma forma mais global. Agora, no Pará, temos elementos que podem aumentar esta violência. Um ponto é o tráfico de drogas. Outro ponto, mais ao sul do estado, é o da luta pela terra. Pouco se fala da invasão de terra pela elite do estado. Há luta pela terra na região de Marabá, Araguaia, Santarém. Trata-se de uma situação muito forte. Essa tensão gera muita violência.
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a forma como o governo Lula tem conduzido esse tema da violência no Pará? E no Brasil?
Dom Flavio Giovenale – Os casos da irmã Dorothy (4) e agora da menina L. tiveram repercussões imediatas. No primeiro caso, vieram para cá alguns importantes ministros, se fez muito barulho, mas depois a coisa morreu. Na prática, agora, os agentes locais, de pastoral e de movimentos sociais estão de novo sozinhos. De vez em quando se fala, mas é raro. Tudo aquilo que se prometeu foi esquecido. Atualmente, temos dois promotores do Ministério Público Federal muito empenhados no caso, junto com entidades que trabalham com este problema. Muitas vezes, eles têm que pedir proteção policial para não serem mortos. Frei Henri continua com proteção policial 24 horas por dia há mais de um ano. Se faz barulho, mas ações concretas são esquecidas depois.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o cumprimento dos direitos humanos em nosso país?
Dom Flavio Giovenale – Existe um avanço indiscutível, porque certos casos, em outras épocas, se diria apenas bem feito e acabou. Tem uma sensibilidade maior, se discute mais. Mas, ao mesmo tempo, o avanço da violência gera uma revolta quando esses casos acontecem; quando, por exemplo, um menor assassina outra pessoa ou quando acontece um assassinato brutal. Isto gera uma revolta que é justificável. Muitas vezes, a pessoa, se sentindo desprotegida pelo estado, quer apelar para violência. De um lado, existe um avanço, mas, por outro lado, a força com que a violência está presente em nossa vida gera um mal-estar, a busca desesperada por soluções e, normalmente, a solução mais imediata é o aumento da violência e da repressão. Eu acredito que não teremos paz sem uma repressão correta. Não vamos ser ingênuos achando que vamos tratar com bandidos só com flores, mas o símbolo da paz é uma pomba que para voar precisa de duas asas. Uma asa é a da repressão, ou seja, precisamos de uma polícia melhor equipada, melhor remunerada, e que o judiciário faça valer as penas, que não escolha a impunidade. A outra asa é a da prevenção. Nela, entram a pregação de Cristo, a educação, o esporte e um bocado de outras atividades que podem ajudar na prevenção. Com essas duas asas, a pomba da paz pode levantar vôo.
Notas:
(1) A Companhia Vale do Rio Doce, hoje apenas sob o nome de Vale, é a maior empresa brasileira do ramo da mineração. A antiga empresa de economia mista, criada no governo Getúlio Vargas, é hoje uma empresa privada, de capital aberto, pois foi privatizada pelo Governo Fernando Henrique Cardoso. Essa privatização foi muito controversa, por não terem levado em conta o valor potencial das reservas de ferro em possessão da companhia na época, apenas o valor de sua infraestrutura. Assim, em 2007 um plebiscito foi realizado em todo o Brasil em defesa a anulação da venda da empresa.
(2) Dom Angelo Frosi foi bispo da Diocese de Abaetetuba, no Pará. Foi ordenado padre no dia 6 de maio de 1948. Recebeu a ordenação episcopal no dia 1º de maio de 1970. Faleceu em 1995.
(3) Carlos Rodrigues Junior, de 15 anos, vivia em Bauru com a mãe e a irmã. Acusado de roubar uma moto, teve a casa invadida pela polícia durante uma madrugada de dezembro de 2007. Para confessar, Carlos recebeu 30 choques elétricos pelo corpo. Dois deles foram do lado esquerdo do peito e atingiram o coração do jovem, provocando uma parada cardiorrespiratória. Foi instaurado inquérito na Polícia Civil para saber qual a participação de cada um deles no crime. Os policiais negam as acusações.
(4) Dorothy Mae Stang foi uma freira estadunidense naturalizada brasileira. Pertencia às Irmãs de Nossa Senhora de Namur que reúne mais de duas mil mulheres que realizam trabalho pastoral nos cinco continentes. Irmã Dorothy ingressou na vida religiosa 1948, emitiu seus votos perpétuos – pobreza, castidade e obediência – em 1956. Em 1966, iniciou seu ministério no Brasil, na cidade de Coroatá, no Estado do Maranhão. Irmã Dorothy estava presente na Amazônia desde a década de 1970 junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu. Sua atividade pastoral e missionária buscava a geração de emprego e renda com projetos de reflorestamento em áreas degradadas, junto aos trabalhadores rurais da área da rodovia Transamazônica. Seu trabalho focava-se também na minimização dos conflitos fundiários na região. Irmã Dorothy recebeu diversas ameaças de morte, sem deixar intimidar-se. Foi assassinada, com sete tiros, aos 73 anos de idade, no dia 12 de fevereiro de 2005, às sete horas e trinta minutos da manhã, em uma estrada de terra de difícil acesso, a 53 quilômetros da sede do município de Anapu, no Estado do Pará, Brasil.
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A violência está institucionalizada no país? Entrevista especial com Dom Flavio Giovenale - Instituto Humanitas Unisinos - IHU