16 Abril 2008
Eventos tão importantes para a vida acadêmica, as defesas de teses de pós-graduação e os concursos de provas e títulos das universidades perderam seu caráter de reconhecimento de mérito e sua dignidade. Pelo menos é isso que constata o professor Marco Aurélio Nogueira. Em artigo publicado recentemente, Marco reflete sobre a atual situação dos “ritos acadêmicos” e a importância que perderam, mas deveriam ter, no cotidiano das universidades brasileiras. “O que está acontecendo nas universidades é uma manifestação de força em relação ao formalismo que está se organizando de uma maneira muito burocrática. Eu acredito que estejamos passando por uma dificuldade muito grande de estabelecer critérios corretos para fazer aquilo que queremos dentro da vida universitária”, reflete ele nesta entrevista concedida à IHU On-Line por skype.
Marco Aurélio Nogueira é doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo (USP). Obteve o título de pós-doutor na Università degli Studi La Sapienza, em Roma, na Itália. Atualmente, é professor da UNESP. Também é autor de Um Estado para a sociedade civil – Temas éticos e políticos da gestão democrática (São Paulo: Cortez Editora, 2005) e Em defesa da política (São Paulo: Editora Senac, 2005), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Onde está o problema nas provas de seleção das universidades brasileiras?
Marco Aurélio Nogueira – O que está acontecendo nas universidades é uma manifestação de força em relação ao formalismo que está se organizando de uma maneira muito burocrática. Eu acredito que estejamos passando por uma dificuldade muito grande de estabelecer critérios corretos para fazer aquilo que queremos dentro da vida universitária. Então, como há uma certa dificuldade para se estabelecer um parâmetro do que é mérito na universidade brasileira de hoje, os concursos estão sendo atropelados e caindo no vazio. Ao invés de representarem uma afirmação dos méritos dos candidatos, acabam sendo, de alguma maneira, condicionados por outros fatores. Penso ser esse o problema: a dificuldade de se estabelecer o que é mérito universitário.
IHU On-Line - Por que, em sua opinião, os grandes trabalhos acadêmicos, como as teses, não são mais um evento de interesse da comunidade acadêmica?
Marco Aurélio Nogueira – Eu creio que um pouco seja essa dificuldade de se estabelecer méritos, como falei antes, porque, muitas vezes, esses trabalhos são interpretados pela comunidade universitária como um mérito fruto de um ritual para obtenção de um diploma ou de um título. Essa é a primeira coisa.
A segunda coisa: eu penso que hoje a universidade brasileira virou um fenômeno de massa numa época de alta velocidade e muita divisão das pessoas entre diferentes atividades, inclusive os estudantes. Há um clima, no mundo atual, de muita dispersão. Hoje em dia, a concentração de atenção é um desafio. Então, eu acredito que boa parte do problema se deve a isso também, pois as pessoas não estão conseguindo arrumar tempo para patrocinar ou participar dos eventos principais da vida universitária.
IHU On-Line – Quem ou qual setor das universidades pode ser responsável por esse problema?
Marco Aurélio Nogueira – Acredito que não haja um vilão nessa história. Tenho muita dificuldade para pensar em responsáveis por essa situação. Nós, da universidade, estamos sendo vítimas de um processo objetivo que está confundindo a todos. Não há uma categoria que possa ser responsabilizada por isso. Essa situação está aparecendo pela maneira como a universidade está sendo desorganizada ou reorganizada em função das novas circunstâncias que estamos vivendo. Penso que, quando uma universidade está com dificuldade de assumir claramente qual é o centro da sua existência, quais são os critérios básicos de funcionamento de avaliação numérica, isso repercutirá sobre a sua rotina. E isso está confundindo alunos, professores, funcionários, pesquisadores, reitores. Estão todos muito atrapalhados. Eu costumo falar que, atualmente, nós, de dentro da universidade, estamos passando por uma situação de sofrimento organizacional.
Vem ocorrendo um desajuste entre os modelos das universidades e a realidade da vida. O modelo de universidade que temos hoje vem do passado. Além disso, a vida avançou de maneira muito acelerada, o que gera um descompasso que cria falta de comunicação e tensão. Isso interfere na universidade, atropelando a rotina. A situação de atrito entre o modelo de universidade e a dinâmica social, as expectativas culturais e a dinâmica científica, que não está restrita apenas ao ambiente acadêmico, provocam tudo isso.
IHU On-Line - Falta ética a esses eventos acadêmicos?
Marco Aurélio Nogueira – Eu acredito que, se os professores comprarem essa briga, numa perspectiva positiva, isso possa mudar num longo período de tempo. Trata-se de uma briga muito difícil de ser comprada, até mesmo porque a universidade vive hoje coagida por determinados critérios que são, em tese, definidos fora dela. A Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e outros sistemas de financiamento de pesquisa impõem à universidade certos ritmos e prazos que ela não está conseguindo acompanhar. Então, os professores, que são os principais gestores da universidade, precisariam comprar essa briga, exigir que a coisa começasse a funcionar num ritmo diferente. É uma briga de “cachorro grande” e eu não sei se, num curto prazo, há condições de ela acontecer.
IHU On-Line - Para o senhor, qual é a função, hoje, desses ritos acadêmicos, que, por mais que não sejam considerados eventos importantes para a comunidade, continuam acontecendo para o bom funcionamento das universidades?
Marco Aurélio Nogueira – Penso que aí tenhamos de avaliar o quadro com bastante serenidade. É o que eu procuro fazer sempre para não me desesperar demais. Quando fiz o artigo "Ritos acadêmicos", fui provocativo porque você sabe que os artigos de jornal precisam ter uma lógica um pouco provocativa para chamar a atenção. A minha avaliação não é de que esses ritos são completamente inúteis. Inclusive, considero que devam continuar existindo. Isso porque nas principais universidades, pelo menos as mais competentes, continuam sendo apresentados bons trabalhos e pesquisas muito importantes, que precisam passar por esse rito no decorrer do qual os professores são reconhecidos academicamente.
Creio que essa função continua sendo cumprida pelos cursos. No entanto, uma parte da dinâmica dos cursos também está condicionada ao preenchimento de certo requisitos para obtenção de títulos, o que não é um pecado, obviamente. Eu penso, porém, ter acontecido um certo desequilíbrio no peso relativo dessas duas dimensões dos concursos.
IHU On-Line - De que forma o movimento estudantil deveria interferir nesses processos?
Marco Aurélio Nogueira – O movimento estudantil sempre pode interferir. Sobretudo se alterasse sua agenda de luta, porque o movimento que vejo nas universidades hoje possui um caráter muito corporativo. Ou seja, ele só pensa na defesa dos interesses mais materiais dos estudantes, tais como subsídios para alimentação, para estadia, para cópias etc. Claro que existem muitas outras coisas, mas o perfil que eu vejo hoje é muito fortemente concentrado nessas questões. Então, ele precisa começar a ter uma agenda positiva para reforma da universidade, tentando ver o que esta tem de fundamental. Mas não em termos de assistencialismo universitário, pois essa é outra questão. A assistência estudantil não vai modificar em nada a universidade do ponto de vista estrutural, substantivo. Pode melhorar as condições de vida do estudante no plano material, mas ela não tem nem força para, por exemplo, lutar pela qualidade das bibliotecas das universidades. O movimento estudantil precisa, sim, agir. Para isso, em suma, terá de alterar sua agenda e sua maneira de pensar.
IHU On-Line - As universidades privadas e públicas reclamam dos problemas econômicos. Até que ponto essa crise interfere nesses ritos?
Marco Aurélio Nogueira – É um pouco difícil esclarecer essa questão, mas há evidentemente uma interferência nela. Quando você tem restrições orçamentárias muito severas e quase sempre elas costumam ser seletivas, ou seja, são destinadas a apenas algumas coisas, isso prejudica. Por exemplo, há uma grande dificuldade por parte das universidades de formar bancas compostas por pessoas do exterior da unidade universitária, o que acaba reforçando um caráter um pouco menos rigoroso, digamos assim, naquelas que avaliam.
IHU On-Line - O senhor afirma que brigar para que esses importantes eventos acadêmicos voltem a ter a relevância de antes é algo insensato. O que se deve fazer para que se dê o devido valor a esses ritos que qualificam tanto as universidades quanto o ensino superior?
Marco Aurélio Nogueira – Nós deveríamos dar atenção hoje nas universidades à recuperação do mérito intrínseco dos concursos, ou seja, aumentar o rigor na avaliação dos concursos e tentar neutralizar todo tipo de interferência externa à lógica acadêmica. Eu não posso admitir, por exemplo, que uma banca aprove uma tese apenas porque a reprovação poderia significar um prejuízo muito grande para a instituição. Toda interferência de fatores externos à lógica acadêmica deveria ser neutralizada. Isso é o que eu chamo de recuperar a importância do mérito aos concursos.
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Ritos acadêmicos e a universidade hoje. Entrevista especial com Marco Aurélio Nogueira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU