Operamos crianças mutiladas no escuro. Os hospitais ucranianos não têm mais nada

Foto: Andrii Ovod / Médico Sem Fronteiras

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19 Dezembro 2025

Enfermarias sem aquecimento, unidades de terapia intensiva alimentadas por geradores velhos e sucateados, cirurgiões obrigados a operar com lanternas de cabeça, idosos doentes perdidos em vilarejos remotos que dependem de teleconsultas médicas para sobreviver. Essa é hoje a região de Dnipro, no centro-leste da Ucrânia, onde a ong Médicos Sem Fronteiras oferece atendimento médico com uma rede de ambulâncias, clínicas móveis e apoio aos hospitais que ainda estão em funcionamento.

O relato é de Enrico Vallaperta, diretor médico dos Médicos Sem Fronteiras na região de DniproUcrânia, publicada no jornal La Stampa, 18-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o relato. 

Retornei à Ucrânia depois de mais de 3 anos, na primavera de 2022 tinha organizado as atividades do trem-hospital montado pelos Médicos Sem Fronteiras que evacuava feridos e doentes graves das zonas de conflito para hospitais mais seguros no oeste do país. Hoje estou entre Dnipro e Donetsk, onde a população enfrenta há semanas apagões causados pelos bombardeios russos a centrais elétricas. Aqui, residências particulares e instalações públicas voltaram a depender de geradores, mas o número de aparelhos disponíveis está muito aquém da necessidade real e, apesar das remessas vindas do exterior, obtê-los continua extremamente difícil.

Mesmo nos hospitais, a disponibilidade é limitada e a prioridade de uso é dada aos casos mais graves: o funcionamento dos ventiladores para pacientes em terapia intensiva, o aquecimento das salas de emergência e o acionamento de equipamentos essenciais. O restante do hospital permanece no escuro e frio, cada vez mais intenso à medida que se aproxima o auge do inverno. As temperaturas oscilam por volta dos 0 graus; se faz de tudo para resistir. Desde fevereiro de 2022, ataques às infraestruturas elétricas têm sido usados intencionalmente para enfraquecer a população, mas neste inverno, os apagões deliberados parecem ser ainda mais frequentes. O fornecimento instável de energia, que falta mais do que é fornecido, danifica ainda mais os equipamentos hospitalares já desgastados, que acabam por quebrar, sem possibilidade de substituição. Os pacientes, aos quais podemos oferecer cuidados cada vez mais limitados, são aqueles que pagam o preço mais alto. Quase todos são civis: idosos, mulheres e crianças.

Na região de Dnipro, operamos uma rede de 12 ambulâncias, que transportam uma média de 20 pacientes por dia. Trata-se de ambulâncias inter-hospitalares, destinada à transferência dos feridos de hospitais da linha de frente, mais próximos do front de batalha, para instalações de segunda linha, liberando assim o máximo de leitos possível para as vítimas dos bombardeios. Nossas clínicas móveis, por outro lado, conseguem atender cerca de 100 pessoas por dia, cobrindo uma área muito maior, aproximadamente 800 km de norte a sul do país, ao longo da linha de frente oriental. Junto com minha equipe viajamos de Dnipro a Donetsk, passando por Pavlohrad e Pokrovsk, até chegarmos a Zaporizhzhia, onde a MSF presta apoio a outro hospital. Apoiar os hospitais locais é agora mais fundamental do que nunca para garantir assistência médica à população que permaneceu no país, especialmente porque a maioria dos profissionais de saúde locais fugiu por causa da guerra. Muitas vezes, porém, mesmo pequenos hospitais que permanecem parcialmente operantes são forçados a serem evacuados devido à aproximação do front de batalha e do aumento do raio de ação dos drones, como aconteceu com o hospital em Prokrovsk, que está atualmente inutilizável.

Além das evacuações hospitalares, aldeias inteiras também estão sendo evacuadas, afetando uma população em sua maioria idosa, isolada em pequenas cidades no interior da Ucrânia, forçada a fugir de suas casas. Cerca de 500 pessoas por dia recorrem aos chamados centros de trânsito, administrados pelas Nações Unidas, em busca de assistência e orientação sobre as rotas e locais mais seguros para onde ir. No entanto, ninguém está realmente seguro, nem mesmo nós, trabalhadores humanitários: enquanto viajamos com ambulâncias e clínicas, monitoramos constantemente as atualizações de nossos colegas da segurança, que nos informam de hora em hora sobre as rotas mais seguras a seguir para levar assistência também nas áreas mais remotas. A precisão e o poder destrutivo dos drones continuam aumentando; a área atingida por explosivos praticamente triplicou, passando de 5 para 15 km, e os bombardeios atingem cada vez mais prédios residenciais.

Os civis chegam aos nossos hospitais em estado de choque, simplesmente por serem ainda considerados alvos militares. Eles precisam reapropriar-se da cotidianidade, viver livremente em suas casas e considerá-las seguras. Na semana passada, uma família com duas crianças chegou ao hospital após uma explosão devastar seu condomínio. A criança mais nova perdeu os dois membros inferiores, o desespero dos pais era enorme, mas o choque de ter sido um alvo, e de potencialmente sê-lo novamente após quase quatro anos de guerra, possivelmente foi ainda maior.

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