Uma gramática jurídica para a proteção da Amazônia. Artigo de Paloma Pitre e Nicholas Zanelato

Áreas de desmatamento no município de Careiro da Várzea, no Amazonas próximo às Terras Indígenas do povo Mura (Foto: Amazônia Real/Alberto César Araújo)

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17 Dezembro 2025

Com o reconhecimento da floresta, de seus rios e de seus povos como sujeitos de proteção, começa a se delinear uma nova gramática jurídica latino-americana que entende que proteger o bioma é, ao mesmo tempo, proteger a vida, a diversidade e um futuro comum possível.

O artigo é de Paloma Pitre e Nicholas Zanelato, publicado por InfoAmazônia, 16-12-2025.

Paloma Pitre é professora e advogada especialista em Direitos Humanos. Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Nicholas Zanelato é professor, mestrando em Direito Internacional e Direito Comparado pela USP. Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista. Pesquisador do Núcleo de Estudos

Eis o artigo.

Após a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) — realizada pela primeira vez na região amazônica, na cidade de Belém do Pará —, os debates sobre avanços concretos na proteção do bioma amazônico ganharam relevância. Para se aproximar dessa discussão de forma consistente e traçar análises sobre as formas mais efetivas de avanço na temática, é preciso compreender de que modo diferentes áreas do conhecimento, instituições e atores vêm mobilizando esforços que contribuam para a defesa da floresta e de seus povos.

No campo das ciências jurídicas, pensar o papel do Direito na proteção da Amazônia implica refletir sobre as potencialidades e limitações do sistema jurídico para responder às múltiplas emergências socioambientais que atravessam o bioma, como o desmonte de políticas de preservação ambiental que acabam permitindo a concessão irresponsável de terras indígenas ou a exploração madeireira ilegal. Diante desses desafios, quais instrumentos jurídicos têm sido acionados para frear a destruição? Qual é o papel das cortes constitucionais na consolidação de um efetivo sistema de proteção?

Essas foram algumas das perguntas que nortearam a pesquisa que apresentamos no XXIII Congresso Brasileiro de Direito Internacional, realizado em agosto, em Belém. O estudo analisou decisões de Cortes Constitucionais latino-americanas (Brasil, Colômbia, Bolívia e Equador) de forma a compreender qual a tutela dada à Amazônia pelos tribunais. Para isso, buscamos identificar padrões jurisprudenciais que possam indicar a emergência de um novo paradigma jurídico-ambiental na proteção do bioma amazônico.

O estudo identificou três principais teses relacionadas à discussão central de possibilidade de defesa da floresta, que revelam o desafio central entre o direito ao desenvolvimento e a preservação ambiental.

A primeira tese consiste na ideia de preservação ambiental via direitos humanos, conforme demonstrou a Colômbia na Sentença T-411/1992, que reconheceu o meio ambiente como “entorno vital do ser humano”, essencial à vida, à saúde e à dignidade.

Já no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760, afirmou que o desmatamento e a omissão estatal também violam diretamente direitos humanos fundamentais, impondo ao Estado o dever de proteger a Amazônia como condição de existência digna para as gerações presentes e futuras. Nesse sentido, o estudo observou como essas decisões demonstram que, apesar do avanço na proteção ambiental, a defesa do meio ainda é condicionada a uma lente centrada apenas no ser humano.

Mais à frente, a segunda tese identificada pelo estudo das decisões destaca a prioridade dos direitos da natureza sobre interesses puramente econômicos. Nesse sentido, as cortes têm afirmado que o desenvolvimento só é legítimo quando respeitar determinados limites ecológicos. Isso se verificou, por exemplo, na Colômbia, onde a Sentença C-431/2000 derrubou normas que permitiam aprovar planos urbanísticos sem análise ambiental, afirmando que a eficiência administrativa não pode se sobrepor ao dever de proteção ecológica.

De forma semelhante, na Bolívia, a Sentença 0014/2013-L determinou a suspensão imediata de atividades madeireiras em território indígena, priorizando o direito dos povos isolados e a integridade do bioma sobre o lucro empresarial. Nesta vertente, o estudo destaca que os tribunais da região demonstram que a natureza não é obstáculo ao desenvolvimento, desde que respeitados os limites da própria floresta em restaurar-se, sendo esta uma condição necessária para quaisquer atividades econômicas.

A terceira tese identificada trata sobre a internalização do direito internacional nas legislações internas dos países amazônicos, por meio de garantias construídas em matéria ambiental ou de direitos humanos. Nesta realidade, a proteção da Amazônia, portanto, não seria apenas um dever interno, mas um compromisso com a comunidade internacional, uma vez que os serviços ecossistêmicos da floresta têm grande importância para o mundo, por mais que as cortes interpretem a floresta por meio de suas próprias jurisdições e limites territoriais.

Assim, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59, no Brasil, incorporou expressamente o Acordo de Paris e a Convenção da Biodiversidade ao bloco constitucional, afirmando que a omissão governamental na preservação da floresta fragiliza as metas climáticas e viola a Constituição. Já na Bolívia, a Sentença 0040/2024 elevou o Protocolo de Kyoto e o próprio Acordo de Paris à condição de normas de direitos humanos, obrigando o Estado a harmonizar suas políticas ambientais aos tratados globais. Assim, essas decisões mostram que, para a justiça latino-americana, proteger o meio ambiente é também cumprir a palavra dada ao mundo.

As conclusões do estudo vão além e evidenciam que os tribunais latino-americanos gradualmente têm assumido um papel estratégico na consolidação de uma nova cultura jurídica ambiental, marcada por avanços significativos na proteção jurídica da Amazônia. Cada vez mais, a proteção da natureza deixa de ser apenas um tema setorial e passa a ocupar o centro das agendas constitucionais e regionais. Esse movimento revela uma perspectiva regional na qual a proteção ambiental está profundamente conectada aos direitos humanos e às realidades locais.

As cortes reconhecem que o meio ambiente saudável é condição essencial para a dignidade das populações amazônicas, incorporando os modos de vida tradicionais como base da proteção territorial e cultural. Contudo, permanece o desafio de equilibrar interesses, evitando que lógicas estritamente centradas no ser humano venham a subordinar a natureza ao desenvolvimento econômico.

Ao mesmo tempo, observou-se um diálogo claro com o plano internacional. Normas e princípios globais de proteção ambiental, muitas vezes consagrados em tratados multilaterais, são reinterpretados e adaptados aos contextos nacionais. Isso tem permitido que países da região avancem na construção de um modelo próprio de governança ambiental, no qual responsabilidades locais — de comunidades, governos e tribunais — se articulam com compromissos internacionais assumidos pelos Estados.

Por fim, surge um desafio de extrema importância para o futuro jurídico: consolidar a proteção da natureza como um valor em si mesmo, e não apenas como uma condicionante para o exercício de outros direitos. Isso exigirá equilibrar a escala global e local, garantindo que o desenvolvimento econômico respeite os limites ecológicos e humanos do bioma.

Nessa perspectiva, a judicialização do meio ambiente, em que pese suas limitações quanto ao alcance de casos, tem se mostrado como uma possibilidade eficaz para indicar caminhos para que as premissas da sustentabilidade passem para práticas concretas.

Assim sendo, com o reconhecimento da floresta, seus rios e seus povos como sujeitos de proteção, começa a se delinear uma nova gramática jurídica latino-americana: uma gramática que entende que proteger o bioma é, ao mesmo tempo, proteger a vida, a diversidade e o futuro comum da humanidade.

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