Identidade, Missão e Esperança: a relação entre a Carta Apostólica Desenhando novos mapas de esperança e a Videomensagem do Papa Leão XIV. Artigo de Dom Carlos Lema Garcia e Diego Kenji de Almeida Marihama

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13 Dezembro 2025

"Em tempos de incerteza, fragmentação e aceleração tecnológica, esses dois pronunciamentos mostram que a educação católica permanece como um farol: não um refúgio, mas um laboratório de discernimento, inovação pedagógica e compromisso profético. O desafio que emerge é claro: desenhar novos mapas de esperança com a firmeza da identidade cristã e a coragem de imaginar o futuro", escrevem Dom Carlos Lema Garcia e Diego Kenji de Almeida Marihama.

Dom Carlos Lema Garcia é doutor em Teologia, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, Vigário Episcopal para Educação e a Universidade da Arquidiocese de São Paulo e Bispo Referencial para o Setor Universidades da CNBB.

Diego Kenji de Almeida Marihama é doutor em Educação, Coordenador Acadêmico do Núcleo de Formação Continuada para Profissionais da Educação da Fundação São Paulo e do Vicariato Episcopal para Educação e a Universidade da Arquidiocese de São Paulo e docente da PUC-SP.

Eis o artigo.

Introdução

No contexto dos 60 anos da declaração conciliar Gravissimum Educationis, a Igreja renova o seu olhar para a missão educativa, numa época marcada por transformações aceleradas, tensões socioculturais e desafios tecnológicos inéditos. Nesse cenário, dois pronunciamentos recentes do Papa Leão XIV ajudam a iluminar a identidade e a responsabilidade da educação católica: a Carta Apostólica Desenhando novos mapas de esperança, e a videomensagem proferida para o Congresso “Sem identidade não há educação”, realizado em Madri.

Embora pertençam a gêneros distintos, o primeiro é um documento magisterial de longo alcance; o segundo, um discurso pastoral dirigido a um público específico. Ambos convergem em afirmar que a educação cristã perde sua alma sempre que se distancia de sua identidade e de sua capacidade de gerar esperança. Este artigo apresenta uma análise integrada dessas duas fontes, evidenciando pontos de ressonância que podem inspirar colégios, universidades e comunidades educativas.

1. A Carta Apostólica Desenhando novos mapas de esperança

A Carta Apostólica de Leão XIV é um documento que resgata a tradição educativa da Igreja para reinterpretá-la à luz das demandas do século XXI. O texto percorre uma ampla memória histórica, desde a pedagogia dos Padres do Deserto até a fundação dos primeiros colégios e universidades como destacado pelo Papa:

Na Roma do século XVII, São José Calasanz abriu escolas gratuitas para os pobres, percebendo que a alfabetização e o letramento numérico são dignidade antes mesmo da competência. Na França, São João Batista de La Salle, "percebendo a injustiça causada pela exclusão dos filhos de operários e camponeses do sistema educacional", fundou os Irmãos das Escolas Cristãs. No início do século XIX, também na França, São Marcelino Champagnat dedicou-se "de todo o coração, numa época em que o acesso à educação continuava sendo privilégio de poucos, à missão de educar e evangelizar crianças e jovens". De modo semelhante, São João Bosco, com seu "método preventivo", transformou a disciplina em racionalidade e proximidade. Mulheres corajosas, como Vicenza Maria López y Vicuña, Francesca Cabrini, Giuseppina Bakhita, Maria Montessori, Katharine Drexel ou Elizabeth Ann Seton, abriram caminhos para meninas, migrantes e os menos favorecidos. Reitero o que afirmei claramente em Dilexi te: "A educação dos pobres, para a fé cristã, não é um favor, mas um dever". Esta genealogia da concretude testemunha que, na Igreja, a pedagogia nunca é teoria desencarnada, mas carne, paixão e história (LEAO XIV, 2025, n. 2.3).

Todas essas tradições convergem na convicção de que a educação católica não é um acessório da evangelização, mas um de seus modos mais concretos. Leão XIV insiste que essa história não se reduz a um patrimônio estático: trata-se de um dinamismo espiritual e intelectual que sempre soube se renovar, mantendo a unidade entre fé e razão, pensamento e vida, saber e justiça.

A centralidade da pessoa é outro eixo estruturante da Carta Apostólica. A educação cristã, segundo o Papa, compreende a pessoa como imagem de Deus e rejeita sua redução a um conjunto de competências, algoritmos ou desempenhos mensuráveis. A formação integral (espiritual, intelectual, afetiva, cultural, social e corporal) é apresentada como caminho para construir uma cultura educativa que uma profundidade e responsabilidade. A partir desse horizonte antropológico, o Papa critica as abordagens utilitaristas e tecnocráticas que fazem da educação um produto comercial ou instrumento de mercado, e reafirma que o valor do processo educativo só pode ser medido pela dignidade da pessoa e por sua capacidade de servir ao bem comum.

Esse patrimônio não é rígido: é uma bússola que continua a apontar o caminho e a falar da beleza da jornada. As expectativas de hoje não são menores do que as que a Igreja enfrentou há sessenta anos. Aliás, elas ampliaram-se e tornaram-se mais complexas. Diante dos milhões de crianças em todo o mundo que ainda não têm acesso ao ensino fundamental, como podemos não agir? Diante das situações dramáticas de emergência educacional causadas por guerras, migração, desigualdade e diversas formas de pobreza, como podemos não sentir a urgência de renovar nosso compromisso? (LEÃO XIV, 2025, n. 1.3)

Entre as contribuições mais originais da Carta Apostólica, destaca-se o conceito de “constelação educativa”. Leão XIV propõe que escolas, universidades, congregações religiosas, movimentos e iniciativas pastorais deixem de atuar como ilhas e passem a compor redes colaborativas, capazes de partilhar práticas, formar alianças e responder de maneira criativa às demandas do mundo. Essa imagem aponta para um modelo de cooperação global que vai além da gestão institucional, implicando diálogo com a sociedade civil, com o mundo universitário e com setores produtivos.

Cada "estrela" tem o seu próprio brilho, mas juntas traçam um rumo. Onde no passado havia rivalidade, hoje pedimos às instituições que convirjam: a unidade é a nossa força mais profética. As diferenças metodológicas e estruturais não são empecilhos, mas sim recursos. A pluralidade de carismas, se bem coordenada, cria um quadro coerente e frutífero. Num mundo interconectado, o jogo desenrola-se a dois níveis: local e global. São necessários intercâmbios de professores e alunos, projetos conjuntos entre continentes, reconhecimento mútuo de boas práticas e cooperação missionária e académica. O futuro exige que aprendamos a colaborar mais, a crescer juntos. As constelações refletem as suas luzes num universo infinito. Como um caleidoscópio, as suas cores entrelaçam-se, criando ainda mais variações cromáticas. Isso também se verifica nas instituições de ensino católicas, que estão abertas ao encontro e à escuta da sociedade civil, das autoridades políticas e administrativas, bem como dos representantes dos setores produtivos e das categorias profissionais. Elas são chamadas a colaborar ainda mais ativamente com esses grupos para compartilhar e aprimorar os programas educacionais, de modo que a teoria seja fundamentada na experiência e na prática. A história também nos ensina que as nossas instituições acolhem alunos e famílias não crentes ou de outras religiões, mas que desejam uma educação verdadeiramente humana. Por essa razão — como já acontece —, devemos continuar a promover comunidades educativas participativas, nas quais leigos, religiosos, famílias e alunos compartilham a responsabilidade pela missão educativa juntamente com as instituições públicas e privadas (LEÃO XIV, 2025, n. 8.1-8.3).

Outro ponto relevante é a reflexão sobre o ambiente digital e a inteligência artificial. O Papa reconhece o valor da tecnologia e rejeita qualquer postura tecnofóbica, afirmando que o progresso técnico faz parte do plano de Deus. No entanto, alerta para o risco de uma eficiência sem alma, que empobrece a relação pedagógica e uniformiza o pensamento.

A inteligência artificial e os ambientes digitais devem ser orientados para a proteção da dignidade, da justiça e do trabalho; devem ser regidos por critérios de ética pública e participação; devem ser acompanhados de uma reflexão teológica e filosófica apropriada. As universidades católicas têm uma tarefa crucial: oferecer uma "diaconia da cultura", menos cátedras e mais mesas onde nos possamos sentar juntos, sem hierarquias desnecessárias, para tocar as feridas da história e buscar, no Espírito, a sabedoria que nasce da vida dos povos (LEÃO XIV, 2025, n. 9.3).

A tecnologia, segundo o Papa, deve servir à humanização e não a substituir; por isso, reforça a necessidade de educar para o discernimento crítico, a ética, a proteção de dados e a construção de uma “digitalização humana”, em que poesia, arte, imaginação e vulnerabilidade continuem sendo dimensões essenciais da aprendizagem.

O texto culmina reafirmando o Pacto Educativo Global, legado do Papa Francisco, que propõe sete caminhos para reconfigurar a missão educativa: colocar a pessoa no centro, ouvir crianças e jovens, promover a participação das mulheres, fortalecer a família, praticar a inclusão, renovar a economia e a política e cuidar da casa comum.

O Papa Leão XIV, assim adiciona três prioridades ao Pacto Educativo Global: a vida interior como fonte de sentido, a relação ética com a tecnologia e a educação para a paz. Assim, a Carta se apresenta como um mapa amplo que reúne identidade, espiritualidade, análise de contexto e diretrizes para o futuro.

Às sete vias, acrescento três prioridades. A primeira diz respeito à vida interior: os jovens exigem profundidade; precisam de espaços de silêncio, discernimento e diálogo com a sua consciência e com Deus. A segunda diz respeito à digitalização humana: educamos para o uso sábio da tecnologia e da IA colocando a pessoa acima do algoritmo e harmonizando as inteligências técnica, emocional, social, espiritual e ecológica. A terceira diz respeito ao desarmamento e à construção da paz: educamos em linguagens não violentas, na reconciliação, na construção de pontes, não de muros; “Bem-aventurados os pacificadores” ( Mt 5,9) torna-se o método e o conteúdo da aprendizagem (LEÃO XIV, 2025, n. 10.3).

2. A videomensagem do Papa Leão ao Congresso “Sem identidade não há educação”

Em contraste com a amplitude da Carta Apostólica, a videomensagem do Papa Leão XIV é uma exortação breve e pastoral, voltada diretamente aos participantes de um encontro sobre identidade cristã realizado na Espanha. Seu discurso concentra-se numa tese central: a identidade cristã é o fundamento de toda missão educativa. Leão XIV observa que muitas instituições católicas experimentam hoje uma crise de identidade ao adotarem modelos neutros, tecnocráticos ou excessivamente comerciais, que acabam diluindo sua especificidade e enfraquecendo sua capacidade de formar pessoas integrais.

Para o Papa, a identidade cristã não é um rótulo nem um diferencial de mercado, mas a raiz profunda que dá sentido à existência da escola católica. Sem essa raiz, a instituição perde coerência e propósito, torna-se funcional, mas não evangélica. Leão XIV enfatiza que uma educação verdadeiramente cristã forma o caráter, enraíza a liberdade no bem, cultiva a inteligência por meio da busca da verdade e integra consciência, espiritualidade e responsabilidade social. Ele insiste que a transmissão dos valores cristãos se realiza sobretudo pelo testemunho dos educadores, cuja autenticidade é tão formativa quanto suas competências pedagógicas.

Além disso, o Papa lembra que vivemos em um mundo marcado por fragmentação, polarizações e perda de referências éticas. Diante desse cenário, uma escola católica deve ser lugar de encontro, diálogo e cuidado, capaz de oferecer critérios sólidos de discernimento. A autenticidade da identidade cristã, portanto, não conduz ao fechamento, mas ao compromisso; não cria muros, mas constrói pontes; não exclui, mas acolhe. O discurso evidencia que a missão educativa da Igreja é sempre um ato de esperança, que acredita na capacidade do ser humano de se abrir ao bem, à verdade e à beleza.

3. Convergências entre os dois documentos

Embora diferentes em escopo e linguagem, os dois documentos convergem de maneira notável na compreensão da educação católica. Ambos afirmam que a identidade cristã é um elemento irrenunciável, não como marca institucional, mas como fundamento antropológico, espiritual e cultural que orienta todas as dimensões da vida educativa. E rejeita a redução da educação à técnica, ao desempenho ou ao mercado, insistindo que a formação integral é caminho para restaurar a dignidade humana num mundo cada vez mais utilitarista.

Outro ponto de convergência diz respeito à importância da esperança. Enquanto Leão XIV, na videomensagem, a apresenta como uma categoria pedagógica e teológica que estrutura a missão da Igreja, na Carta Apostólica vivencia como urgência pastoral diante das crises contemporâneas. Em ambos, educar significa acreditar no futuro e construir condições para que crianças, adolescentes e jovens possam ler a realidade com profundidade e agir com responsabilidade. A educação aparece como obra comunitária, envolvendo professores, famílias, alunos, Igreja e sociedade, numa teia de corresponsabilidade que só se fortalece com diálogo e colaboração.

4. Diferenças fundamentais

As diferenças entre os documentos são complementares. A Carta Apostólica é ampla, conceitual e analítica, funcionando como uma síntese histórica, antropológica e espiritual da tradição educativa da Igreja. Já a videomensagem é direta, exortativa e pastoral, chamando a atenção para uma urgência concreta: sem identidade, a educação católica se desorienta. Enquanto na Carta Apostólica desenvolve uma reflexão que atravessa temas como ecologia, tecnologia, história das instituições e Pacto Educativo Global, na videomensagem o Papa concentra-se na vitalidade da identidade cristã no cotidiano educacional/acadêmico.

Considerações finais

Educar é uma tarefa de amor que se transmite de geração em geração, remendando o tecido rompido das relações e restaurando às palavras o peso da promessa: «Todo homem é capaz da verdade, porém, tudo se torna mais fácil e suportável quando o avanço é feito com a ajuda de outros». A verdade é procurada em comunidade (LEÃO XIV, 2025, n. 3.2).

A leitura integrada da Carta ApostólicaDesenhando novos mapas de esperança” e da videomensagem do Papa revela uma profunda sintonia no coração da missão educativa da Igreja. De um lado, o Papa oferece um mapa amplo que articula tradição, inovação, espiritualidade e desafios; de outro, faz ressoar com vigor o chamado para que as instituições educacionais recuperem a autenticidade de sua identidade cristã. Ambos apontam para a centralidade da pessoa humana, para a necessidade de formar comunidades educativas sólidas e para a urgência de integrar fé, cultura e vida numa pedagogia que ilumine o presente e abra caminhos de esperança.

Em tempos de incerteza, fragmentação e aceleração tecnológica, esses dois pronunciamentos mostram que a educação católica permanece como um farol: não um refúgio, mas um laboratório de discernimento, inovação pedagógica e compromisso profético. O desafio que emerge é claro: desenhar novos mapas de esperança com a firmeza da identidade cristã e a coragem de imaginar o futuro.

Referências

IGREJA CATÓLICA. Pacto Educativo Global: Vademecum. Roma: Congregação para a Educação Católica, 2020. Disponível aqui. Acessado em 20 de novembro de 2025.

LEÃO XIV. Carta Apostólica Desenhando novos mapas de esperança. 2025. Disponível aqui. Acessado em 20 novembro de 2025.

LEÃO XIV. Videomensagem do Papa Leão XIV aos participantes do Congresso “Sem identidade não há educação” que se realiza neste sábado, 22 de novembro, no Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho em Madri. 2025b. Disponível aqui. Acessado em 20 novembro de 2025. 

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