Democracias estilhaçadas ou o transbordamento do crime organizado. Artigo de Juan Pablo Luna

Foto: Thiago Dezan/Farpa/CIDH | Repórter Brasil

10 Dezembro 2025

A crise das democracias latino-americanas não se deve apenas a razões de ordem político-institucional — nem a fenômenos como os populismos ou a polarização —, mas também a fatores muito mais profundos, entre eles o crime organizado. Este não afeta somente Estados frágeis: em países como Chile e Uruguai, além da Argentina, ele colore (ou influencia fortemente) a agenda política e eleitoral.

O artigo é de Juan Pablo Luna, publicado por Nueva Sociedad, novembro/dezembro de 2025.

Juan Pablo Luna é doutor em Ciência Política pela Universidade da Carolina do Norte e professor titular do Instituto de Ciência Política e da Escola de Governo da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

Eis o artigo.

Na última década, a expansão do crime organizado consolidou-se como um desafio fundamental para os Estados latino-americanos e para suas democracias. Se no passado pensávamos que esse problema afetava apenas Estados fracos, com pouca capacidade de projetar sua autoridade e presença em amplas zonas de seus territórios, hoje está claro que ele também gera graves problemas entre os países mais fortes da região, como Costa Rica, Chile e Uruguai — nações que viram aumentar notoriamente os níveis de violência criminal na última década. O mesmo ocorre com países do Primeiro Mundo que são símbolos da social-democracia, como Suécia, Países Baixos e Bélgica, que enfrentam níveis de violência “narco” sem precedentes [1].

Para compreender a natureza do crime organizado e sua relação com a democracia e o Estado, é necessário problematizar uma série de pressupostos que sustentam nossa visão convencional sobre o tema. Por um lado, normalmente associamos crime organizado a altos níveis de violência visível (por exemplo, homicídios). Mas, na realidade, a violência é ruim para o negócio, pois gera visibilidade social e atrai a atenção da opinião pública. O melhor crime organizado — e o mais próspero — é o que não se vê.

Por outro lado, quando pensamos em crime organizado, tendemos a associá-lo ao narcotráfico; e quando pensamos em narcotráfico, imaginamos os grandes cartéis mexicanos ou colombianos que controlam toda a cadeia de valor do negócio. Ou seja, pensamos em uma única organização, verticalmente integrada, que produz, distribui, vende localmente, exporta e lava dinheiro. No entanto, a realidade do crime organizado é extremamente complexa, varia rapidamente e se adapta às novas oportunidades e às vantagens competitivas oferecidas por diferentes países e economias locais. Nessa realidade, convivem, competem e cooperam múltiplas organizações (algumas locais, outras transnacionais) que exploram uma diversidade de mercados ilegais. Em outras palavras, o “narco” é apenas um desses negócios.

As estruturas criminais podem alcançar integração horizontal (desenvolvendo vários negócios) e integração vertical (controlando diferentes etapas de um mesmo negócio), mas também podem funcionar de maneira mais atomizada. Compreender melhor os níveis de integração horizontal e vertical das trocas que ocorrem em um determinado território é uma das chaves para entender o seu “lugar” no mapa do crime organizado, bem como o tipo de estrutura criminal que desafia e coopera com agentes estatais e atores políticos em cada país.

Como já mencionamos, os mercados ilegais são variados. Incluem atividades como o tráfico de migrantes e o tráfico sexual, a exploração laboral, o sicariato, o microcrédito, a extorsão (desde o “imposto de segurança” e a “vacina” cobrados de comércios locais até o sequestro extorsivo), o tráfico de terrenos e lotes para moradia, a exploração de produtos primários como madeira, frutas e mineração, e o tráfico de espécies protegidas. O tráfico de areia, impulsionado pela expansão da indústria da construção, constitui outro negócio próspero na região [2]. A reportagem “La noche de los caballos”, vencedora do Prêmio Gabo em 2024 e que relata a operação de um enorme esquema de exportação de cavalos roubados na Argentina para a Europa, voltou a mostrar a diversidade do negócio ilegal [3].

Da grande maioria desses mercados, quase não falamos. No Chile, por exemplo, estão praticamente ausentes do debate público setores muito dinâmicos, como o das máquinas caça-níqueis presentes em grande parte dos armazéns nos bairros populares, o tráfico de medicamentos em feiras ou o mercado ilegal de roupas usadas (importadas e posteriormente vendidas informalmente no mercado nacional e internacional). A extorsão em suas várias expressões é outro negócio em expansão sobre o qual quase não falamos.

Essa falta de análise faz com que não percebamos o quanto essas organizações podem ser maleáveis. Por exemplo, os cartéis que operam no estado de Michoacán passaram a se especializar na exportação de abacate e limão para os Estados Unidos, onde são apontados como responsáveis pelo alto preço desses produtos. Enquanto isso, o Clã do Golfo (também conhecido como Gaitanistas, grupo originado das autodefesas colombianas) domina o tráfico de migrantes cujo epicentro é a região do Darién, no Panamá. Por essa rota, migram para os EUA, sob “proteção” e “orientação” do Clã, latino-americanos, mas também pessoas da Ásia. Em 2023, ao menos 500 mil pessoas atravessaram essa passagem [4].

Na América do Sul, a extração ilegal de madeira, a mineração ilegal, o tráfico de hidrocarbonetos, o mercado de apostas, a extorsão a comércios e o tráfico e exploração de migrantes tornaram-se negócios prósperos de importantes organizações que muitas vezes identificamos apenas como traficantes de drogas. Ainda que, por suas altas rendas e pela violência que frequentemente gera no âmbito local, o narcotráfico monopolize a atenção no debate sobre segurança em nossos países, o fato é que a expansão dos “novos negócios” nos obriga a repensar o crime organizado de outra forma. A seguir, apresentarei cinco argumentos para caracterizar as feições do crime organizado em nosso continente hoje.

Em primeiro lugar, como já mencionamos, em nossos países associamos crime organizado ao narcotráfico, e narcotráfico ao microtráfico, que costumamos situar especialmente nas periferias urbanas. A partir disso, argumenta-se que a luta contra a venda de droga (microtráfico) impactaria na vitalidade das organizações criminosas. Essa ideia é enganosa. Embora tenda a ser muito visível — pois produz violência nas periferias urbanas — o microtráfico é hoje a atividade do narcotráfico que menos renda produz. Esses ganhos diminuíram durante a pandemia, devido ao excesso de estoque de droga que se acumulou na região com o desaquecimento do comércio internacional. Essa queda nas rendas gerou incentivos para a diversificação dos negócios criminosos locais, como a extorsão a comércios (as chamadas “vacinas”) e a pessoas.

Essa mudança ocorreu em vários países da região e levou as organizações a buscar aumentar seu controle territorial (o que torna a extorsão possível) e a integrar horizontalmente seus negócios (ou seja, multiplicar os mercados ilegais que exploram). Também ocorreu que grupos especializados em alguma atividade transversalmente útil para operar mercados ilegais — o sicariato é um exemplo — passaram a ser subcontratados por outras organizações para operações específicas. Uma consequência desse processo é que, no território, a competição entre bandos que disputam o controle desses espaços aumentou, gerando uma escalada de violência e corrupção (pois as organizações buscam melhorar suas condições de operação comprando vontades na política e em agências estatais relevantes). No entanto, focar apenas no microtráfico — e, de maneira mais ampla, nos mercados criminais que operam nas periferias — reduz a atenção pública sobre atividades muito mais lucrativas para as organizações, como a venda de drogas em setores de alta renda, o tráfico internacional e a lavagem de dinheiro. Esses negócios são menos violentos porque não dependem do controle territorial, mas produzem maior potencial de corrupção e infiltração da política e do Estado nos espaços onde se realizam (portos, aduanas, fronteiras, sistema financeiro, etc.).

Assim, enquanto os operadores do microtráfico nas periferias urbanas tendem a comprar estruturas políticas e agentes estatais no nível local, aqueles que operam outros mercados e atividades tendem a infiltrar as instituições políticas e estatais em níveis mais altos.

Uma consequência é que os primeiros têm maior probabilidade de terminar presos (especialmente os integrantes menos relevantes de cada organização, como mulheres que complementam sua renda com o microtráfico). Já quem opera os mercados de alta renda raramente enfrenta a Justiça e permanece socialmente invisível. O crime organizado mais lucrativo não se vê — porque funciona comprando vontades nos interstícios do Estado e da política.

Em segundo lugar, o debate público nos diferentes países costuma soar alarmes quando a polícia detecta a presença, no território, de algum dos grandes cartéis de droga. Preocupam hoje especialmente o Tren de Aragua, da Venezuela, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), do Brasil — da mesma forma que, há uma década, os cartéis mexicanos e colombianos geravam medo. Essa ideia também é enganosa.

O fato é que os grandes operadores do mercado ilegal podem ou não estar verticalmente integrados com os pequenos traficantes locais. Nos casos emblemáticos de Colômbia e México, as grandes organizações de fato possuíam integração vertical de seus negócios — e o mesmo ocorre hoje com as grandes facções prisionais brasileiras, como o Comando Vermelho ou o PCC, que operam em boa parte da região e são atores centrais no tráfico para o mercado europeu. No entanto, países pelos quais passam grandes carregamentos, como Uruguai e Chile, podem não apresentar integração vertical, sendo escassos os vínculos orgânicos entre operadores internacionais e as gangues que operam localmente.

A integração vertical, assim como a dinâmica do negócio, transforma-se em um ritmo vertiginoso. A título de exemplo, com o auge das drogas sintéticas (como as metanfetaminas, os opioides e, mais recentemente, o fentanil), a China tornou-se um fornecedor privilegiado de insumos e precursores utilizados no México para sua fabricação e exportação aos Estados Unidos. A mesma cadeia logística que conecta México e China — pela qual circulam inúmeros produtos legais — também passou a funcionar como veículo para a exportação de espécies protegidas e fauna exótica entre ambos os países [5].

Em terceiro lugar, os equilíbrios associados à interação entre o crime organizado e o Estado podem mudar com bastante rapidez. Um exemplo é o Equador, que passou de ter uma baixa taxa de homicídios a se converter no país mais violento da América Latina, com 45 homicídios por 100 mil habitantes em 2023. Essa mudança se explica pela combinação de dinâmicas internas e fatores externos que transformaram o país no epicentro das atividades de tráfico e lavagem de dinheiro de organizações internacionais com alto poder de fogo (e de compra!).

Outro caso de mudança rápida entre um equilíbrio pouco violento e uma espiral de violência homicida é o de Rosario, na Argentina. Há mais de uma década, essa cidade constitui uma exceção em um país que possui os índices mais baixos de homicídios da região. Embora a escalada de violência tenha sido influenciada pela posição estratégica de Rosario na hidrovia que conecta áreas produtoras da Bolívia e do Paraguai com zonas exportadoras que se tornaram mais relevantes (os portos da própria Rosario, de Buenos Aires e de Montevidéu), as causas mais importantes têm mais relação com dinâmicas internas do mercado ilegal.

Em quarto lugar, o crime organizado explora fragilidades em cada país, mas também se aproveita das fortalezas que eles possuem para o desenvolvimento de negócios legais. Em alguns casos, isso ocorre pela reconversão (ou simples uso) de antigas rotas de contrabando ou corredores logísticos entre países. A título de exemplo, o Paraguai tem uma longa tradição de importar veículos usados do Japão e dos Estados Unidos, que chegam ao Chile pelos portos do norte do país. Esses carros são então conduzidos, por terra, até o Paraguai, por motoristas paraguaios. Nos últimos anos, parte desses veículos passou a alimentar o mercado dos carros “chutos” na Bolívia (automóveis que entram ilegalmente naquele país e circulam sem placa até serem eventualmente legalizados pelo Estado boliviano, com o objetivo de cobrar pela tramitação e oficialização) [6]. O mercado de “chutos” também é abastecido por carros de alta gama furtados na Argentina, no Brasil e no Chile, que às vezes são negociados na Bolívia em troca de alguns quilos de cocaína. O corredor logístico por onde transitam os carros que efetivamente chegam ao Paraguai também parece estar sendo utilizado por facções brasileiras para o tráfico de armas [7]

Os fluxos de pessoas também se relacionam com o desenvolvimento e a expansão de mercados ilegais em determinados momentos. Na década de 1980, por exemplo, a chegada de ex-guerrilheiros do grupo peruano Sendero Luminoso à periferia de Buenos Aires — onde buscavam refúgio — teve um papel relevante na massificação do consumo de cocaína na cidade, já que esses ex-militantes mantinham vínculos com zonas produtoras em seu país de origem [8]. Contudo, as vantagens que cada país oferece ao crime organizado não se vinculam apenas a “vazios” estatais, mas também ao tipo de atividade legal que desenvolvem. Por exemplo, países mineradores possuem um amplo estoque de produtos químicos com os quais os narcotraficantes podem fabricar drogas sintéticas. Também são atrativos para o crime organizado os países que se destacam por sua capacidade logística. Nesse sentido, os portos do Chile e do Uruguai — que possuem alto volume de tráfego e boa reputação nos portos de destino — tornaram-se especialmente atrativos para o negócio de exportação de drogas a destinos do Primeiro Mundo. Ainda mais quando recebem tratamento de fast track (associado a menos controles), em virtude de exportarem grandes quantidades de mercadorias perecíveis.

Em quinto lugar, mais do que um problema de segurança, o crime organizado deve começar a ser considerado um problema de desenvolvimento [9]. Costuma-se argumentar que os países de renda média, como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, enfrentam uma “armadilha” caracterizada pela explosão de expectativas (e de descontentamento) diante de uma trajetória de crescimento sustentado que ainda não consegue satisfazer a demanda cidadã que o próprio crescimento estimulou. Os protestos sociais que ocorreram no Brasil em 2013, assim como o estallido chileno de 2019 (também uma onda de protestos massivos), costumam ser descritos como episódios que ilustram essa armadilha.

Minha impressão é que os países latino-americanos enfrentam um problema de desenvolvimento diferente — e possivelmente complementar. Por um lado, o crescimento econômico trazido pelo boom das commodities estimulou o desenvolvimento de múltiplos mercados ilegais. Esses mercados foram dinamizados pelas circunstâncias da pandemia de covid-19 e pelo estancamento econômico provocado pelas restrições de mobilidade e pelo fim do boom. Diante de uma economia menos dinâmica, que não consegue satisfazer as demandas de amplos setores da população, os mercados ilegais passaram a oferecer uma alternativa de emprego e mobilidade social.

Além de gerar crescimento econômico e prover emprego e recursos a quem não consegue obtê-los no mercado formal, a expansão dos mercados informais e ilegais também aumentou a infiltração das instituições estatais e dos sistemas políticos da região. Se os economistas afirmam que o crescimento econômico requer instituições de boa qualidade, o crescimento econômico na região (instável e com altos níveis de desigualdade) contribuiu, na prática, para minar a qualidade dessas mesmas instituições. Como confessou um entrevistado no Uruguai, enquanto a ilegalidade gerar crescimento econômico e não aumentar a violência, “o político” tem todos os incentivos para “fingir que não vê e olhar para o lado”. Os limites desse raciocínio estão no fato de que a força dos mercados ilegais e a fraqueza de nossos Estados — paulatinamente colonizados pela ilegalidade — vão deixando os sistemas políticos sem margem de ação.

Além disso, é importante sublinhar uma obviedade que, entretanto, costuma passar despercebida devido aos nossos preconceitos normativos. Embora muitos de nós tendamos a ver uma demarcação clara entre o legal e o ilegal, entre a política institucional e a violência, na realidade essas esferas possuem interfaces porosas. O legal e o ilegal se determinam mutuamente e constituem, em conjunto, o tipo de ordem que observamos em diferentes níveis sociais e territoriais.

A polícia como coordenadora de mercados ilegais

A América Latina é a região mais violenta do mundo. Nossas cidades figuram entre aquelas com as maiores taxas de homicídios em escala global. No topo do ranking costumam aparecer localidades do México, Colômbia, Venezuela e dos países do Triângulo Norte da América Central, mas recentemente a violência aumentou de forma marcante em cidades de países como Costa Rica e Equador. A violência também cresceu em outros países que historicamente tinham baixos níveis de homicídios, como Chile e Uruguai. Este último é um caso especialmente preocupante, pois apresenta mais que o dobro de homicídios por 100 mil habitantes em comparação com o Chile. Entre os países menos violentos da região encontram-se Argentina, Bolívia e Paraguai. No entanto, a situação paraguaia apresenta diversas semelhanças estruturais com o cenário observado no México antes de 2000 — isto é, pouco antes de estourar a guerra contra o narcotráfico e iniciar um processo no qual morreram cerca de 170 mil pessoas apenas na primeira década [10]. Hoje se calcula que o México já superou 250 mil mortes.

Enquanto isso, a cidade de Rosario, na Argentina, constitui a exceção mais gritante ao padrão de baixa violência homicida do país. Nessa cidade da província de Santa Fe, a taxa de homicídios ultrapassa 22 por 100 mil habitantes, cerca de cinco vezes mais que a média nacional. A escalada de violência coincide com a ruptura do pacto tradicional de proteção entre policiais, políticos e operadores do crime organizado que caracteriza o “manejo” da violência no restante do país. Esse pacto se rompeu — sem que tenha sido possível restaurá-lo — em torno de 2007, após a alternância entre o peronismo (no poder provincial desde o retorno à democracia, durante seis mandatos consecutivos) e o Partido Socialista (que governou a província por três mandatos, até nova alternância, primeiro para o peronismo e, mais recentemente, para a União Cívica Radical em 2023).

Os trabalhos de Hernán Flom, Marcelo Saín, Matías Dewey e Javier Auyero e Katerine Sobering ajudam a compreender como funciona a coordenação do crime organizado no caso argentino [11]. O seguinte trecho do livro de Saín — estudioso do fenômeno e ex-funcionário do governo provincial — oferece uma amostra de como operava o antigo pacto. A citação corresponde ao testemunho de um narcotraficante durante uma audiência judicial:

“[Aqui] ninguém vende drogas se não for com a permissão da polícia. A polícia controla o narcotráfico. Diz quem vende e quem não vende e todo mundo sabe disso (...) a Brigada de Drogas Perigosas, não toda, mas o pessoal mais forte, é quem controla a droga. Eles dizem quem vende e quem não vende, eles dizem ‘este acerta e este não’, e vai preso. A polícia acerta com as pessoas que lhes servem. O resto, os que vendem drogas e não podem acertar, são usados para montar procedimentos que ajudam a limpar a imagem deles. O raciocínio deles é: alguns nós temos para prender e outros para trabalhar. É simples. Se alguém não tem drogas, eles [a polícia] fornecem. E se tem, paga-se mensalmente à polícia para poder trabalhar" [12].

Como se percebe no trecho citado, o pacto de proteção tem a polícia como ator fundamental, articulando e organizando o mercado ilegal de venda de drogas. Essa coordenação policial — que, como mostram estudos como o de Dewey, opera também em outros mercados criminais (como o roubo de veículos, a venda clandestina de autopeças, a produção, exploração laboral e venda de roupas falsificadas etc.) — permite que os mercados ilegais funcionem “ordenadamente”, reduzindo os níveis de violência explícita.

Nesse sentido, é relevante sublinhar um ponto crucial: a possibilidade de regulação policial depende da capacidade estatal de fazer valer a lei (contra aqueles que não cumprem o pacto). Ou seja, as polícias podem suspender seletivamente a vigência da lei em benefício de quem adere ao sistema de coordenação policial. Se geralmente pensamos que o crime organizado prospera em espaços de vazio ou ausência estatal, o caso argentino ilustra a situação oposta: o crime organizado está presente e só consegue operar com habilitação estatal. A título de exemplo, as polícias segmentam o território que “liberam” para que diferentes grupos atuem, evitando a competição territorial. Isso também se explica porque, embora a violência homicida seja baixa na Argentina, a prevalência de outros delitos (como roubos) e o nível de corrupção são desproporcionalmente altos.

O trabalho de Matías Dewey também mostra como as polícias atuam com poderes delegados pelo poder político, mas também em coordenação com outros atores, como companhias têxteis legítimas e seguradoras de automóveis (ambas eventualmente negociam benefícios por baixo dos panos; no caso das seguradoras, chegam a acordar limites máximos de roubos para manter seu negócio rentável). As polícias também obtêm benefícios monetários diretos dessa coordenação, que servem como base para o enriquecimento ilícito de oficiais e chefias. Esses fundos, no entanto, também são usados para custear insumos básicos do funcionamento das delegacias (Dewey documenta como, diante da austeridade ou ausência de repasses oficiais, as propinas às vezes são usadas para comprar tinta de impressora para imprimir boletins de ocorrência). Além disso, parte desses recursos é direcionada ao financiamento de campanhas políticas. Assim, se um candidato “acerta” com a polícia, pode obter fundos para sua campanha; se não o faz e é eleito, provavelmente enfrentará uma crise de segurança em seu distrito, provocada pela própria capacidade policial de regular o funcionamento dos mercados ilegais.

O nível de comunicação entre as diferentes forças policiais (provincial, municipal e federal) e as quadrilhas de crime organizado é tão alto que, para um dos principais operativos contra uma das organizações criminosas mais importantes de Rosario — conhecida como Los Monos — foi necessário trazer de Buenos Aires uma unidade policial especializada em outra área (gestão aeroportuária), para evitar que o próprio aparato local alertasse a quadrilha.

Os trabalhos de Saín e Dewey (bem como o de Auyero e Sobering para o caso de Rosario) também mostram que os políticos delegam à polícia a tarefa de coordenar os mercados ilegais e reduzir a violência — sobretudo a violência homicida, que é a que gera mais atenção pública e custo político. Outro pilar fundamental do Estado que possui vínculos porosos com a corrupção policial e política é o sistema judicial. Isso gerou um processo em que a justiça se politiza (por meio da nomeação e promoção de atores judiciais alinhados politicamente) e a política se judicializa (por meio de operações conduzidas por atores judiciais para perseguir ou proteger lideranças políticas, conforme sejam aliadas ou adversárias). Este exemplo ilustra um dos mecanismos centrais pelos quais se erode a qualidade institucional das democracias contemporâneas: a politização da justiça e a judicialização da política.

Paradoxalmente, apesar desse intrincado sistema de penetração cruzada entre atores criminais, políticos, forças policiais e membros do sistema de justiça, a Argentina conseguiu manter-se como um dos países menos violentos da região. Como explicar, então, a epidemia de homicídios em Rosario? Nesse caso, confluíram vários fatores que fragmentaram os pactos de proteção entre política, criminalidade e polícia. Essa fragmentação ocorreu tanto no mundo do crime como no plano político e estatal.

Do lado criminal, o crescimento econômico associado ao boom da soja nas províncias da pampa argentina aumentou a demanda por drogas e ampliou as oportunidades de lavagem de dinheiro — por exemplo, através de investimento em agronegócio, mercados financeiros e construção civil. Isso ocorreu em mercados de alto poder aquisitivo, mas também nos cinturões urbanos de Rosario, que o crescimento econômico transformou em polo de atração para migrantes pobres oriundos do norte argentino, assim como da região do Chaco boliviano e paraguaio. A isso se adicionou a crescente centralidade dos portos do Rio da Prata como hub logístico para exportação de grandes carregamentos de drogas para a África e Europa.

A localização central de Rosario na hidrovia que conecta os rios Paraná, Uruguai e Rio da Prata faz dela um dos portos de maior tráfego do mundo — e um ponto nodal para a logística de grandes quantidades de drogas. Embora não haja evidências de articulação sistemática entre exportadores de drogas e quadrilhas de microtráfico locais, a centralidade de Rosario para o negócio internacional colocou grande volume de drogas à disposição do mercado varejista da cidade, via pagamento em espécie às quadrilhas que auxiliavam na logística e segurança do negócio.

Nesse contexto, as duas grandes estruturas que dominavam o microtráfico na cidade — Los Monos e o Clã Alvarado — iniciaram disputas territoriais abertas. Além disso, como resultado do desenvolvimento de um sistema de franquias e de disputas internas, esses grupos começaram a se fragmentar e deram origem a organizações menores. Em suas pesquisas, Sain e Flom argumentam que as estruturas que hoje competem em Rosario são fundamentalmente precárias e pouco sofisticadas, o que contribui para um nível maior de violência.

Por sua vez, a alternância política ocorrida em 2007, assim como a maior competição entre partidos, lideranças provinciais e nacionais, gerou descoordenação na resposta política à violência criminal. Isso se traduziu no fato de que diferentes setores da política e da justiça passaram a competir pela proteção de diversos grupos criminosos. Em suma, enquanto a Argentina ilustra as possíveis “virtudes” de um sistema de coordenação dos mercados criminosos para reduzir a violência letal, Rosario mostra como essa coordenação pode se quebrar diante de choques que alterem a estrutura de incentivos enfrentada pelos atores que compõem o sistema local.

A bukelização da América Latina

No caso chileno, a configuração do debate público e da competição política que está emergindo é semelhante à que facilitou a ascensão do “modelo Bukele” em El Salvador e sua difusão na região. Embora saibamos que o “populismo punitivo” não funciona como solução sustentável de política pública, ele funciona como lógica de competição eleitoral para atores orientados ao curto prazo [13]. Com que argumentos afirmar que a “mão dura” não é solução, diante do “sucesso” de Nayib Bukele na redução da violência em El Salvador? [14] Há três argumentos.

Primeiro, por diversas razões, o experimento Bukele não é replicável em boa parte da região. Por um lado, El Salvador é um país muito pequeno, no qual operavam organizações criminosas com uma estrutura de liderança piramidal, com as quais Bukele negociou tréguas e a entrega de membros de cada organização. Países de maior dimensão, com estruturas criminais e aparatos de segurança mais complexos, não possuem condições que permitam montar uma estratégia desse tipo “de cima para baixo”, e dentro dos prazos (muito curtos) em que Bukele desenvolveu sua política de encarceramento massivo. A evidência disponível sobre políticas de “mão dura” e militarização da segurança em contextos mais complexos é esmagadora: em Brasil, Colômbia e México, a “mão dura” acabou elevando simultaneamente a violência e a corrupção [15].

Segundo, o esquema de encarceramento massivo de Bukele não tem estratégia de saída. As prisões na América Latina são criminógenas, no sentido de que ampliam e complicam o fenômeno criminal, mais do que o reduzem ou previnem. Por quanto tempo são sustentáveis, então, os resultados de Bukele em termos de segurança? Quem, e em que condições, eventualmente começará a sair das prisões salvadorenhas? A falta de resposta a essas questões leva ao terceiro argumento: a estratégia Bukele implica a queda das liberdades civis e da vigência dos direitos humanos constitutivos de um regime democrático. Uma parcela importante da população salvadorenha se sente, com razão, mais segura do que no passado. No entanto, eles e seus filhos correm o risco de se ver, a qualquer momento, à mercê da arbitrariedade das autoridades salvadorenhas e acabar nas masmorras de Bukele. E, diante dessa possibilidade, não terão a quem recorrer sem correr o risco de agravar ainda mais sua situação.

Recentemente, diante da alta dos preços e enfrentando queda em sua popularidade devido ao cenário econômico, Bukele ameaçou os empresários (que até então o apoiavam abertamente) com perseguição judicial se não reduzissem os preços. Ele afirmou que “todos estavam fichados” e acrescentou: “vocês sabem os delitos que cometeram. Não será a multa pelo aumento dos alimentos que vamos aplicar. Não é brincadeira. Assim como dissemos às gangues em 2019, e elas perceberam que não era brincadeira. Então, importadores, distribuidores, comercializadores e atacadistas de alimentos: parem de abusar” [16]. É provável que, assim como fez com as gangues, no momento em que tornou pública sua ameaça, Bukele já estivesse negociando os ajustes de preços com as empresas nos bastidores.

Em suma, o fato de que uma parcela relevante da população prefira viver com a incerteza das arbitrariedades do regime de Bukele do que preservar suas liberdades civis diz muito mais sobre os déficits da democracia salvadorenha que precedeu o presidente (e, por extensão, de várias democracias latino-americanas contemporâneas) do que sobre o sucesso deste último em gerar uma alternativa sustentável e normativamente aceitável de política pública.

Evitei aqui, conscientemente, referir-me aos vínculos evidentes entre o crime organizado e as três ditaduras atualmente vigentes na região (Cuba, Nicarágua e Venezuela), porque meu interesse era explorar as relações entre regimes democráticos e as dinâmicas do crime organizado. Sob essa perspectiva, o caso Bukele é relevante porque aponta um caminho eleitoral e democrático em direção ao autoritarismo. Esse caminho ilustra como um sistema partidário que estava entre os mais estáveis e institucionalizados da região (junto aos de Argentina, Chile e Uruguai) acabou sendo varrido em uma eleição por um outsider que conseguiu explorar a desesperação da população diante do problema da segurança. Ao mesmo tempo, o caminho salvadorenho é um que, ao contrário das ditaduras anacrônicas, hoje conta com uma estratégia de marketing sofisticada e vento a favor.

Notas

[1] Sobre o fenômeno do novo crime organizado na Europa (e suas ramificações no Oriente Médio), vale a pena ouvir o podcast de Miles Johnson, Patricia Nilsson e Alex Barker: Hot Money: The New Narcos, Pushkin, 2022-2025. Disponível aqui. Ver também Hanne Cokelaere: “Belgian Government Presents Plan to Fight Drug Violence that’s Become ‘Narco-Terrorism’”, Politico, 16/2/2023; Jean-Pierre Stroobants: “‘Narco-State’ Fears in Belgium after Summer of Violence”, Le Monde, 21/9/2022, e “Drug Trafficking and Gang Violence on the Rise in Brussels”, Le Monde, 15/3/2024; Femke Halsema: “As the Mayor of Amsterdam, I Can See the Netherlands Risks Becoming a Narco-State”, The Guardian, 5/1/2024; Charlie Duxbury: “Sweden’s Narco Wars Dominate Election Campaign”, Politico, 5/9/2022; “Swedish Criminal Gangs Using Fake Spotify Streams to Launder Money”, The Guardian, 5/9/2023.

[2] Marina Cavalari: "Las mafias detrás del tráfico de arena en América Latina", InSight Crime, 8/7/2024.

[3] Diego Fernández Romeral: "La noche de los caballos: el rescate equino más grande de América del Sur", Gatopardo, 19/1/2024. Disponível aqui.

[4] Defensoría del Pueblo de Colombia: "Más de 520.000 personas migrantes atravesaron la selva del Darién en el 2023", comunicado No 495, Bogotá, 26/1/2024.

[5] Nathaniel Parish Flannery y Vanda Felbab-Brown: "How Is China Involved in Organized Crime in Mexico?", Brookings, 23/2/2022.

[6] "En Bolivia hay 52 ‘zonas rojas’ de venta de autos ‘chutos’ donde existe riesgo de realizar operativos", Correo del Sur, 12/7/2023.

[7] Ashley Pechinski: "Traficantes de armas tienen en la mira puerto de Chile", InSight Crime, 6/8/2021.

[8] Cristian Alarcón: Cuando me muera quiero que me toquen cumbia, Aguilar, Buenos Aires, 2012 y Si me querés, quereme transa, Aguilar, Buenos Aires, 2012.

[9] Exponemos este argumento in extenso em Andreas E. Feldmann y J.P. Luna: Criminal Politics and Botched Development in Contemporary Latin America, Cambridge UP, Cambridge, 2023.

[10] "Una guerra sin rumbo claro", El País, especial, 2016.

[11] V., entre outros, J. Auyero y K. Sobering: Entre narcos y policías. Las relaciones clandestinas entre el Estado y el delito, y su impacto violento en la vida de las personas, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2021; M. Dewey: El orden clandestino. Política, fuerzas de seguridad y mercados ilegales en la Argentina, Katz, Buenos Aires, 2015; H. Flom: The Informal Regulation of Criminal Markets in Latin America, Cambridge UP, Cambridge, 2022; M. Sain: El Leviatán azul. Policía y política en la Argentina, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2019.

[12] M.F. Sain: Ciudad de pobres corazones. Estado, crimen y violencia narco en Rosario, Prohistoria, Rosario, 2023.

[13] Alejandra Luneke y J.P. Luna: "Democracias violentas", Tercera Dosis, 13/10/2023.

[14] Sobre este fenómeno, recomiendo escuchar Bukele: el señor de los sueños, pódcast, Radio Ambulante, 23/1/2024. Disponível aqui.

[15] Benjamin Lessing: Making Peace in Drug Wars: Crackdowns and Cartels in Latin America, Cambridge UP, Cambridge, 2017.

[16] "Bukele amenaza a las empresas alimentarias: ‘Mañana mismo tienen que bajar los precios’", vídeo em Libertad Digital Televisión. Disponível aqui.

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