07 Novembro 2025
A vitória de Zohran Mamdani oferece diversas interpretações e lições, inclusive para a esquerda espanhola. A principal delas: a população migrante agora é uma força política, embora os partidos mais progressistas não tenham reconhecido isso.
A opinião é de Graciela Rock, imigrante mexicana e comunicadora, em artigo publicado por El Salto, 06-11-2025.
Eis o artigo.
A vitória de Zohran Mamdani como prefeito da cidade de Nova York sinaliza a possibilidade de líderes que emergem das margens do poder poderem disputar o centro do poder. Seu triunfo não é surpreendente, dada a vantagem de dez pontos que ele tinha nas pesquisas sobre o ex-prefeito Andrew Cuomo, uma figura marcada por acusações de assédio sexual, mas certamente remodela o cenário político global.
Filho de Mahmood Mamdani, um acadêmico indo-ugandense, e Mira Nair, Mamdani chegou ao poder em um momento em que a direita americana ressuscitava uma retórica odiosa que culpava os imigrantes por todas as crises: habitação, insegurança, emprego. Em seu discurso de vitória, ele enviou uma mensagem direta a Donald Trump: “Nova York continuará sendo uma cidade de imigrantes, construída por imigrantes e agora também governada por um”. A declaração sugere resistência ao endurecimento da xenofobia institucional, mas também revela um dilema: até que ponto uma cidade profundamente desigual e capitalista pode sustentar tal ideal?
Nova York, uma das cidades mais ricas e diversas do mundo, é também uma das mais desiguais e hostis àqueles que a sustentam, deslocando suas comunidades migrantes por meio de aluguéis exorbitantes, empregos precários e controle policial dos bairros. Durante a pandemia de COVID-19, as comunidades migrantes sofreram as maiores taxas de mortalidade, perderam empregos em massa e foram excluídas de programas de auxílio. O resultado foi uma deterioração estrutural de suas condições de vida, acompanhada pelo colapso das organizações que apoiam o tecido social da comunidade.
À situação precária somou-se a violência. Um relatório da Documented NY revelou que os crimes de ódio contra migrantes, especialmente latinos e afro-americanos, aumentaram 900% em Manhattan durante 2024. Não se tratava de um aumento da criminalidade em si, mas sim de um clima político alimentado pela retórica de Trump e amplificado por veículos de comunicação que associam a migração ao crime ou à sobrecarga dos serviços públicos, sem qualquer evidência empírica. O resultado foi um ambiente de desconfiança, onde as comunidades migrantes são vistas simultaneamente como mão de obra essencial e como uma ameaça. Essa narrativa não é muito diferente dos discursos que vêm ganhando força também na Europa.
A vitória de Mamdani pode ser explicada por sua compreensão desse descontentamento. Sua campanha não apelou à identidade como um slogan, mas sim como ponto de partida para uma política substancial: o direito à moradia, ao transporte e ao trabalho digno. Embora Nova York tenha sido historicamente um bastião do progressismo liberal, grande parte da comunidade imigrante votante tornou-se uma aliada relutante, decepcionada com a falta de mudanças estruturais e a retórica complacente de seus líderes.
O programa político de Mamdani se baseia em três pilares: moradia acessível, transporte público gratuito e redistribuição de impostos. Sua proposta prioriza as condições materiais em detrimento da retórica moral, entendendo que o sentimento de pertencimento se define pela vida cotidiana. Em vez de oferecer uma integração simbólica, ele propôs reorganizar a cidade com base nas necessidades daqueles que a mantêm funcionando: entregadores, garis e imigrantes indocumentados.
Essa abordagem está alinhada com a tradição municipalista do nordeste dos Estados Unidos e com a ideia de que os governos locais podem ser laboratórios para a inovação democrática. No entanto, o desafio será traduzir esse ímpeto em governança eficaz. Governar a cidade de Nova York envolve negociar com atores financeiros e midiáticos extremamente influentes. A questão é se o capital político acumulado nas margens pode ser sustentado sem perder sua substância.
A lição que a Espanha ainda precisa aprender
O caso Mamdani oferece uma reflexão incômoda para a esquerda europeia, e particularmente para a esquerda espanhola. Na Espanha, a população migrante representa mais de 15% da força de trabalho, mas praticamente não tem representação política. Seu papel na economia, principalmente na agricultura, no trabalho de cuidado e na hotelaria, é estrutural e indispensável, embora seu reconhecimento institucional seja marginal.
Em 2023, foi apresentada a Iniciativa Legislativa Popular para a regularização extraordinária de meio milhão de pessoas em situação administrativa irregular. Tratava-se de uma das maiores mobilizações cidadãs dos últimos anos, impulsionada por grupos de defesa dos migrantes e dos direitos humanos. Apesar disso, a esquerda parlamentar evitou apoiá-la de forma inequívoca, temendo reações da mídia ou ceder terreno à retórica anti-imigração. A iniciativa permanece sem aprovação no Congresso, sem que nenhum grande partido a defenda.
A lição de Mamdani é, portanto, dupla. Primeiro, que a população migrante já é uma força política, mesmo que os partidos de esquerda não a reconheçam. E segundo, que a legitimidade não é herdada da ideologia, mas construída a partir das condições materiais de vida. O migrante que reivindica direitos à moradia ou ao trabalho não busca caridade ou reconhecimento, mas participação e redistribuição.
Em seu discurso de vitória, Mamdani afirmou: “Para chegar a qualquer um de nós, terão que passar por todos nós”. Essa frase resume uma ideia de comunidade que a esquerda espanhola parece ter perdido em meio à fragmentação e ao recuo.
A vitória de Mamdani não elimina as desigualdades estruturais de Nova York, mas introduz uma nova variável: a possibilidade de governar a partir de uma perspectiva periférica sem abrir mão das complexidades da governança. Sua vitória serve como um lembrete de que a comunidade imigrante não é um bloco homogêneo nem uma minoria que precisa de favores políticos; é uma força pluralista e organizada, capaz de propor soluções.
Para a esquerda espanhola, catalã e europeia, o desafio é semelhante: transformar o discurso em políticas públicas e as políticas públicas em resultados concretos. Não se trata apenas de representar a população migrante, mas de integrá-la como um ator político central.
Reconhecer o poder dos migrantes não é uma concessão moral, mas uma necessidade estratégica: enquanto a desigualdade e o medo continuarem a moldar o espaço público, a extrema-direita continuará a encontrar terreno fértil.
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