"Dos mais vulneráveis, Deus conserva memória". Artigo do Papa Francisco

Foto: wjgomes | pixabay

Mais Lidos

  • A luta por território, principal bandeira dos povos indígenas na COP30, é a estratégia mais eficaz para a mitigação da crise ambiental, afirma o entrevistado

    COP30. Dois projetos em disputa: o da floresta que sustenta ou do capital que devora. Entrevista especial com Milton Felipe Pinheiro

    LER MAIS
  • "A ideologia da vergonha e o clero do Brasil": uma conversa com William Castilho Pereira

    LER MAIS
  • COP30 se torna a “COP da Verdade” ao escancarar quem atua contra o clima

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

23 Outubro 2025

 Publicamos trechos do prefácio do Papa Francisco ao livro "Vivir y pensar el Dios de los pobres", a última obra de Gustavo Gutiérrez, publicada postumamente e editada por Leo Guardado. O livro, traduzido para o italiano por Marta Pescatori, é publicado pela Editrice Queriniana sob o título "Vivere e pensare il Dio dei poveri" (Brescia, 2025, 368 páginas, € 42).

O artigo é do Papa Francisco, publicado por L'Osservatore Romano, 20-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Gustavo Gutiérrez, ao longo de sua longa vida, foi um servidor fiel de Deus e amigo dos pobres. Sua teologia marcou a vida da Igreja e continua sendo atual hoje, com um frescor que abre caminhos ao seguimento de Jesus. Regozijamo-nos com a publicação deste livro, "Viver e pensar o Deus dos pobres".

Por ocasião de sua morte, eu disse: "Hoje penso em Gustavo, Gustavo Gutiérrez. Um grande homem, um homem da Igreja que soube calar quando precisava, que soube sofrer quando precisava e que soube oferecer imenso fruto apostólico e uma teologia tão rica”. Neste último livro, Gustavo nos oferece mais uma vez o fruto de seu empenho, de sua oração e de sua reflexão.

Gostaria de ressaltar nestas páginas sua profunda e permanente fidelidade à Igreja em sua trajetória.

Uma fidelidade vivida com humildade, às vezes com dor, e fundamentalmente com liberdade. Já na década de 1960, as inquietações teológicas de Gustavo emergiam gradualmente em sua própria história pessoal, seus estudos e seu trabalho pastoral. Uma nova era se abriu com aquele imenso sopro do Espírito que foi o Concílio Vaticano II, em cuja quarta sessão acompanhou, como jovem teólogo, o Cardeal Juan Landázuri Ricketts, Arcebispo de Lima.

O impulso conciliar e os textos que o expressavam ofereciam terreno sólido onde se firmar e horizontes abertos para a reorientação do trabalho pastoral, a partir da realidade de um território como a América Latina. Muitos grupos cristãos vivenciavam desafios, questionamentos e esperanças decorrentes dos fortes clamores dos pobres e do crescente empenho neste mundo.

"A irrupção dos pobres", como Gustavo a chamava, exigia justiça e uma maneira diferente de viver a fé, de pensar a fé, de falar a fé, resumindo, de ser Igreja. Gustavo recordava frequentemente, tanto oralmente quanto por escrito, as palavras de João XXIII de 11 de setembro de 1962, um mês antes da inauguração do Concílio: "A Igreja se apresenta como é e quer ser, como Igreja de todos, e particularmente Igreja dos pobres", e também insistia, já na sala conciliar, na mesma linha do Cardeal Giacomo Lercaro. A evolução do Concílio ofereceu modelos fundamentais nessa perspectiva, mas, em última análise, esse sonho de uma Igreja dos pobres permaneceu um horizonte aberto a ser seguido.

O Pacto das Catacumbas, assinado por um grupo de Padres Conciliares, muitos deles latino-americanos, assumiu essa orientação espiritual, teológica e pastoral. A Igreja na América Latina abriu os braços ao Concílio de diferentes maneiras, mas é muito claro que em todos os países e em todas as esferas eclesiais houve indivíduos e grupos — leigos, religiosos, sacerdotes e bispos — que acolheram as palavras e o espírito do Vaticano II com entusiasmo e dedicação.

Uma válida demonstração disso foi a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Medellín, 1968), com a presença de São Paulo VI naquelas terras. Entre aqueles que prepararam e acompanharam Medellín estava Gustavo, que trabalhava dia e noite. Gustavo, outros teólogos e pastores, e muitos bispos, já em espírito sinodal, teceram uma rede de confiança e amizade em torno daquela experiência eclesial que fomentou decisões pastorais, documentos e reflexões teológicas: eles marcaram, e continuam a marcar, a identidade eclesial da América Latina e do Caribe.

Na Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em 1979, nosso querido Gustavo esteve muito presente tanto nos debates que antecederam quanto durante o próprio congresso na cidade de Puebla, México. Gustavo manteve uma clara linha de continuidade com Medellín, atento às realidades sociais e eclesiais, lembrando sempre que a opção pelos pobres é evangelicamente central entre as antigas e novas pobrezas. (...) Somente com os rostos dos pobres no centro encontraremos um terreno comum onde nos reconhecermos na igreja, no encontro com as culturas nas quais se desenvolve nossa vida de fé, no cuidado da criação e no diálogo ecumênico e inter-religioso.

Toda a reflexão de Gustavo nos convocou a estar atentos às inegáveis mudanças do nosso tempo, muitas das quais são positivas para a humanidade, até fascinantes, mas que tantas vezes escondem ou mascaram os aspectos mais cruéis e desumanos da nossa realidade universal. Sua pergunta constante: "Como podemos falar de Deus a partir do sofrimento dos inocentes?", continua sendo premente para os fiéis diante do poder da injustiça e da mentira. As ênfases centrais de sua teologia buscam estar presentes onde a marca de Deus parece ter sido apagada da atmosfera cultural.

Enraizada na libertação que Cristo nos oferece, sua teologia afirma a gratuidade do amor de Deus que nos envolve na história.

A teologia de Gustavo permanece na Igreja não como um belo tesouro do passado, mas como aquele "segundo ato", uma tarefa sempre aberta, para refletir sobre nossa experiência vivida de Deus; uma experiência já iniciada e vivenciada precisamente quando nos aproximamos dos feridos, abandonados à beira da estrada, e quando buscamos dizer com humildade, com terna convicção, aos mais pobres e a todos: "Deus te ama".

Gustavo nos deu as ferramentas teológicas essenciais para nunca esquecer os pobres. Neste último livro, ele deixa bem claro que lembrar dos pobres significa muito mais do que uma coleta; não é um acréscimo piedoso. Como Paulo ensina, é o cerne da mensagem (2 Coríntios 8-9). Em consonância com esse texto, é bom recordar as palavras de uma pessoa muito querida a Gustavo, Bartolomé de Las Casas: "Dos mais vulneráveis e dos mais esquecidos, Deus conserva uma memória bem próxima e viva". A partir disso, o Reino que Jesus anuncia abraça toda a criação, cada ser humano e realidade humana, em todo tempo e lugar. Esse é o Deus de Jesus.

Leia mais