17 Outubro 2025
O elDiario.es conversa em Jerusalém com a diretora internacional da organização de direitos humanos, que foi a primeira a romper o tabu em Israel e denunciar o genocídio em Gaza.
A organização israelense de direitos humanos B'Tselem tem documentado e denunciado as violações de Israel nos territórios palestinos ocupados desde os anos 90 do século passado. Em julho passado, tornou-se a primeira ONG de Israel a confirmar que o país estava a cometer genocídio na Faixa de Gaza, quebrando um tabu.
"Desde o ataque do Hamas em 07-10-2023, Israel tem agido de forma coordenada e deliberada para destruir a sociedade palestina na Faixa de Gaza, cometendo genocídio contra os seus residentes", afirmou a ONG num relatório intitulado O Nosso Genocídio. A sua diretora internacional, Sarit Michaeli, explica a elDiario.es que escolheram esse nome porque na B'Tselem trabalham juntos israelenses e palestinos, e o de Gaza era o genocídio de ambos: os perpetradores e as vítimas.
Michaeli fala com este meio em Jerusalém, onde estes dias se vive com alívio o fim da guerra e o regresso dos últimos reféns israelenses que permaneciam sequestrados há dois anos. No entanto, adverte que este não é o fim do genocídio contra os palestinos, nem em Gaza – onde as consequências se farão sentir durante muitos anos – nem noutros territórios ocupados, nos quais existe o risco de que se repitam os mesmos crimes.
A entrevista é de Francesca Cicardi, publicada por El Salto, 16-10-2025.
Eis a entrevista.
Quando e por que a B'Tselem decidiu publicar o relatório?
Fomos a primeira organização israelense, juntamente com Médicos pelos Direitos Humanos, a emitir um relatório sobre o genocídio israelense, mas não fomos os primeiros [a nível internacional]. Já o tinham feito ONG palestinas, a Amnistia Internacional, a relatora especial das Nações Unidas, etc. Creio que nos levou muito tempo porque, no processo, tentamos entender que contribuição específica poderíamos dar como organização sediada em Israel e com trabalhadores israelenses e palestinos. Era importante para nós podermos dizer algo novo sobre a situação.
No momento em que chegamos à conclusão e estávamos muito seguros, então tínhamos a obrigação legal e moral de o dizer. Israel não faz parte da Convenção sobre o Genocídio, mas existe a obrigação moral de fazer tudo o possível para o prevenir ou deter. E no momento em que decidimos que é efetivamente um genocídio, não podíamos ficar em silêncio. A pergunta então foi como nos preparar para o que podia vir, para as reações que iríamos enfrentar.
Como foram essas reações em Israel?
A maioria dos meios de comunicação simplesmente nos ignorou e a maioria do público israelense provavelmente nem sequer sabe que nós e outras organizações sediadas em Israel usamos o termo genocídio devido à falta de informação ou, melhor, a um claro desinteresse em informar sobre isso.
Esperávamos um contra-ataque, uma reação violenta, mas o Governo ignorou-nos bastante. De certa forma, isso deu-nos uma pequena vantagem e pudemos falar muito sobre este tema com alguns meios israelenses independentes e muitos meios internacionais, inclusive, organizámos um evento público em Telavive, [que decorreu] sem interrupções. Assim, de alguma forma, pudemos beneficiar do silêncio mediático e oficial e fazer-nos ouvir em alguns círculos.
Então, os meios de comunicação ocultaram o relatório e, consequentemente, o genocídio?
Esta não é uma parte central do relatório, mas aparece nele. Os meios de comunicação israelenses são culpados de consentir, silenciar e racionalizar o genocídio e, em alguns casos, de incitar literalmente ao genocídio, ao ponto de que provavelmente se poderia argumentar que os meios e os seus organismos de controle apoiaram este genocídio, encarregaram-se de o explicar, racionalizar e justificar interna e externamente – principalmente internamente.
Esta é a minha postura pessoal, mas creio que os meios de comunicação nos traíram a nós, cidadãos israelenses. Traíram a nossa confiança, a necessidade de que exercessem o seu papel como elemento crucial numa democracia.
Os meios de comunicação de massas, nos últimos dois anos, basicamente ocultaram informação aos israelenses que era necessária para entender o que está a acontecer no mundo que nos rodeia; o resultado é que, agora, vemos que a sociedade civil e a opinião pública internacionais estão tão furiosas com Israel e os israelenses, enquanto os israelenses não entendem o que está acontecendo porque nos passados dois anos lhes têm estado a dizer que não fizemos nada de mal, que nós é que somos os prejudicados.
Os meios de comunicação desempenharam um papel crucial nestes dois anos?
Os meios de comunicação em Israel estiveram tão absorvidos a informar sobre os horrores de 7 de outubro que simplesmente não informaram sobre mais nada. Certamente, os meios tinham que informar sobre isso, mas também deviam ter informado sobre os resultados da ofensiva israelense em Gaza. E isso é importante, não porque 7 de outubro não tenha sido um horrível ataque criminoso e bárbaro, mas porque há um contexto.
Há um historial que deve ser entendido para que não se repita, para que não voltemos ao mesmo ciclo de gestão do conflito. E um dos fatores que permitiram o genocídio de Israel foi o trauma e o horror que viveram os israelenses em 7 de outubro, também dizemos isto no nosso relatório.
Um dos fatores que permitiram o genocídio de Israel foi o trauma e o horror que viveram os israelenses em 7 de outubro.
O nosso relatório não é de tipo legal, mas aborda os aspetos sociológico, político, histórico e de direitos humanos. Nele tentamos explicar as condições históricas que tornaram possível o genocídio. Os problemas essenciais, tanto no que respeita a 7 de outubro como a este genocídio, ainda não foram resolvidos. A profunda desigualdade [entre palestinos e israelenses], a superioridade total israelense, a supremacia judaica que tem guiado as políticas israelenses... Tudo isto não está a mudar e representa um risco para o nosso futuro imediato e a longo prazo.
O relatório também adverte que o genocídio pode repetir-se noutros territórios palestinos.
Há risco de que práticas similares que Israel tem estado a empregar em Gaza, que vimos como parte do genocídio israelense em Gaza sob certas circunstâncias, possam levar a ações genocidas noutras zonas onde os palestinos vivem sob controlo israelense, principalmente na Cisjordânia – também em Jerusalém Oriental, mas em menor medida.
Por exemplo, a recente ofensiva no norte da Cisjordânia: os ataques aéreos, as táticas militares, a deslocação forçada massiva de civis palestinos (...) e que amplas zonas sejam esvaziadas dos seus residentes com ameaças e violência. E não só as práticas. Estamos a falar do mesmo exército, da mesma ideologia e da mesma justificação militar e política.
Na Cisjordânia dão-se condições como a falta de responsabilização, a sensação de impunidade total e a ideologia que claramente exige a destruição dos palestinos no seu conjunto.
Existe a possibilidade de um evento desencadeador na Cisjordânia – não tem que alcançar o horror de 7 de outubro – com todas as condições existentes, juntamente com outras condições, como a falta de responsabilização, a sensação de impunidade total – tanto do exército como dos colonos – e a ideologia que claramente exige a destruição dos palestinos no seu conjunto, não só de palestinos individuais, mas como grupo. Por tudo isso, alertamos para a possibilidade de que o genocídio se estenda a outras partes.
E em Gaza o genocídio terminou?
A fase ativa do genocídio parou, isso espero. Parou a guerra aberta, incluindo os bombardeamentos, a presença militar, a destruição massiva de habitações e infraestruturas e a política de fome. Outros problemas, como a falta de alimentos, hospitais e infraestrutura continuarão a afetar a população. Isto não se resolverá da noite para o dia.
As pessoas, especialmente as crianças de 2 ou 3 anos que sofreram a falta prolongada e deliberada de nutrientes, não poderão desenvolver-se.
Dezenas de milhares de pessoas sofreram lesões, algumas delas graves, e não tiveram a oportunidade de recuperar adequadamente. As pessoas, especialmente as crianças de dois ou três anos que sofreram a falta prolongada e deliberada de nutrientes, não poderão desenvolver-se; os seus cérebros simplesmente não poderão desenvolver-se ao máximo do seu potencial. Assim tão simples. Crianças que viveram à base de pão e água durante os passados dois anos... As crianças crescerão sem família ou a viver com as suas famílias alargadas porque os seus pais ou as suas famílias próximas foram assassinadas. Crianças sem membros, que perderam um, dois ou três membros. Tudo isso continuará.
E agora, todos os soldados israelenses estarão na Cisjordânia. Todas as escavadoras que têm estado a usar para demolir habitações em Gaza, demolirão mais e mais habitações na Cisjordânia. Assim, existe um risco real de que o que estava a acontecer em Gaza ocorra na Cisjordânia, não exatamente o mesmo, mas as práticas e ideologias genocidas terão mais oportunidades de se expressar na Cisjordânia. Enquanto este Governo continuar no comando e esta for a ideologia predominante...
Acha que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ou os comandantes do Exército vão prestar contas em algum momento pelos crimes que cometeram em Gaza?
Acima de tudo, é crucial que haja responsabilização pelo genocídio. Creio que os líderes israelenses deveriam prestar contas pelos seus crimes, mas será esta uma perspectiva realista?
O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de detenção contra Netanyahu e [o ex-ministro da Defesa, Yoav] Gallant. Mas o Governo dos Estados Unidos impôs sanções muito graves ao TPI e a qualquer um que trabalhe com ele. Claramente, é uma tentativa de parar [o TPI].
Eu diria que, em primeiro lugar, a Europa tem uma obrigação absoluta, tanto os Estados-membros como a União Europeia, de aderir aos seus princípios e políticas de responsabilização. Isto significa que têm o dever de aplicar os mandados de detenção emitidos contra os líderes israelenses. Embora não pareça que Netanyahu esteja disposto a viajar para nenhum país europeu neste momento, salvo a Hungria ou países similares.
A Europa tem uma obrigação absoluta de aderir aos seus princípios e políticas de responsabilização. Tem o dever de aplicar os mandados de detenção emitidos contra os líderes israelenses.
Também se iniciaram alguns procedimentos em diferentes países contra soldados israelenses que publicaram informação incriminatória sobre eles próprios alegadamente a cometer crimes de guerra em Gaza.
E em Israel, os cidadãos aceitariam que os seus líderes políticos ou os seus militares sejam julgados?
Hoje em dia, não há apetite nem interesse nem se entende que seja necessário [que haja uma responsabilização]. Existe uma rejeição absoluta do facto de que se tenham cometido crimes em Israel, de que haja coisas que não sejam aceitáveis. Tudo se resume à responsabilidade do Hamas. Tudo o que nós, israelenses, fizemos foi 100% legal, salvo alguns casos menores. E esta não é só uma postura da direita israelense, mas da maior parte dos israelenses e das instituições encarregadas de investigar, como a Procuradoria Geral Militar e a Procuradoria Geral do Estado.
Existe uma rejeição absoluta do fato de que se tenham cometido crimes em Israel, de que haja coisas que não sejam aceitáveis.
Eu sim, creio que o meu Governo, o meu exército e todos estes atores têm estado a cometer crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Mas a minha postura é praticamente minoritária. Não creio que isso vá mudar agora [com o fim da guerra].
Também creio que muita gente, no fundo, sabia que isto está mal, sobretudo desde março, quando Israel quebrou o cessar-fogo anterior e foi evidente que Netanyahu o fez por motivos políticos. Creio que muitos do lado anti-Netanyahu se deram conta de que se estavam a cometer crimes, mas não creio que se trate nem remotamente de uma massa crítica de israelenses que estejam de acordo com a necessidade de algum tipo de responsabilização interna. Simplesmente, não creio que seja realista.
O que pode a B'Tselem fazer nesse sentido?
O nosso papel consiste em continuar a falar a nível internacional sobre a obrigação de exigir responsabilidades a Israel e aos responsáveis políticos israelenses; mas também a nível nacional, falar com os nossos compatriotas israelenses sobre o que fizemos e continuar a fazê-lo apesar da negação, da justificação [do genocídio], porque é nossa obrigação. Não sei se terá sucesso.
Às vezes estes processos demoram muito tempo. Nos próximos meses ou anos, sairá mais informação que poderia mudar a opinião de algumas pessoas, mas não está garantido.
Os israelenses crescemos a perguntar-nos como pôde ser e agora o nosso país comete um genocídio em Gaza.
Na B'Tselem, o nosso papel como coletivo baseado nesta zona é trabalhar pelos direitos humanos e a humanidade. E o genocídio é a perda de humanidade, não só da humanidade dos palestinos mas da nossa própria humanidade.
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