"Mais do que revelar Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, e muito da história dos povos daquele tempo, as Escrituras têm tudo para nós como modelos de fé; modelos ético-morais como verdadeiras 'lições de vida'. Até parece ter sido escrita nos dias de hoje — é um presente do Deus-Trino se revelar para nós por meio dela. Mas para isso não podemos confiná-Lo em livros, capítulos e versículos, e muito menos passar por ela sem interpretá-la na Ressurreição de Cristo Jesus, pois pode virar uma fé morta, por mais que o cristão não creia nisso afirmando rezar, ir à missa, dobrar os joelhos, praticar o bem etc.", escreve Orlando Polidoro Junior, pastoralista e teólogo pela PUCPR.
Todo católico conhece a Bíblia, porém, a grande maioria dos 1,4 bilhão de fiéis espalhados pelo mundo não tem contatos habituais de leituras e de estudos. Ouve a Palavra quase exclusivamente por meio das Celebrações Eucarísticas ou da Celebração da Palavra. Mas isso não compromete o tamanho da fé e muito menos o modo como vive sua essência cristã na caridade = amor pleno ao próximo (1Cor 13,4-8]. Entretanto, por falta de discernimento, a Plenitude da Graça promovida com a vinda do Filho de Deus pode não ser compreendida exatamente como deve ser, criando-se uma interpretação desfigurada e controversa sobre Deus-Trino, mesmo com toda “revelação possível” por meio das Escrituras e da Igreja. A Palavra de Deus está por trás da palavra humana.
“Os Evangelhos são interpretações teológicas a respeito de Jesus Cristo, de sua mensagem, de sua vida e de sua morte-ressurreição, bem como do significado salvífico dessas realidades” (RUBIO, 1994, p. 13).
Mais do que revelar Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, e muito da história dos povos daquele tempo, as Escrituras têm tudo para nós como modelos de fé; modelos ético-morais como verdadeiras “lições de vida”. Até parece ter sido escrita nos dias de hoje — é um presente do Deus-Trino se revelar para nós por meio dela. Mas para isso não podemos confiná-Lo em livros, capítulos e versículos, e muito menos passar por ela sem interpretá-la na Ressurreição de Cristo Jesus, pois pode virar uma fé morta, por mais que o cristão não creia nisso afirmando rezar, ir à missa, dobrar os joelhos, praticar o bem etc.
Também se falou do inicio da Kénosis de Deus na criação, que culminará na anulação propriamente dita de Jesus na encarnação, cujo ápice será a cruz. Deus, de certo modo, se retira, abre espaço para sua criação, concretamente o homem, a fim de deixar a criatura uma consistência “fora” de Deus. Sem entrar numa análise minuciosa nem num juízo que tais considerações podem merecer, não há dúvida de que Deus, manifestando-se em sua criação, ao mesmo tempo se esconde por trás dela. O amor criador funda-se no amor humilde, que é capaz de se anular. A criação não é somente fazer, mas também deixar ser. De fato, chegamos à mesma conclusão também sob outro ponto de vista: Deus cria, sobretudo enquanto suscita, dá vida, dá liberdade e autonomia MOLTMANN; BALTHASAR (1990 apud 1998, LADARIA, p. 44).
Se esta não for a razão da nossa fé, nos tornamos mais uma religião de um livro, assim como o judaísmo e o islamismo [iguais a nós, religiões abraâmicas — monoteístas]. Mas somos cristãos, a religião de um Homem, e dessa forma, nessa hermenêutica devemos ler o Primeiro e em abundância viver o Segundo Testamento.
O Primeiro Testamento mostra o amor de Deus, como também apresenta um conjunto de normas, regras, leis, proibições, mortes em guerras, deus dos exércitos, lutas por poderes, desobediências, heresias, deus punitivo, vingativo [...] Diante de tudo e de tantas controvérsias comparadas ao Deus anunciado por Jesus de Nazaré, é recomendável ler os livros veterotestamentários com a presença de Jesus e de como seriam suas ações em cada contexto. Esse é o modo correto de conhecer o Deus de Jesus, O Cristo — O Verbo encarnado (Dei Verbum, n. 15).
Uma leitura convencional da Bíblia — ou simplesmente sua não-leitura — faz com que em muita gente subsista a impressão de uma imagem de Deus lisa e pura desde o começo. Mas à medida que se observa de perto, logo aparece que são inumeráveis os textos segundo os quais Iahweh enche o homem de medo e pavor, pretende aniquilá-lo mediante catástrofes, pestes e fomes, envolve-o em guerras e o entrega à perdição HAAG (1978 apud 2011, QUEIRUGA, p. 64).
A Bíblia é o fundamento da fé cristã, e o que a Igreja prega e ensina para que vivamos como “bons católicos” têm como base seus escritos/revelações, porém, não é coerente e nem correto interpretar tudo em seu conteúdo ao pé da letra, com leituras fundamentalistas, pois é “queda” na certa. A Bíblia não surgiu pronta em um só momento, com tudo definido com esmero e exatidão, foram séculos de iluminação.
Na sequência, visando conhecimento, apresentamos uma breve síntese de como as Escrituras foram sendo elaboras e chegaram até nós.
Mesmo diante de algumas controvérsias e objeções pertinentes em vários aspectos por parte de grandes estudiosos no assunto, é um livro para ser interpretado exclusivamente à plena luz da fé. A intenção aqui não é colocá-la à prova, o objetivo é compartilhar este conhecimento, integrando-o como parte importante na compreensão de seu contexto integral. Mas sempre lembrando que a Bíblia não deve ser colocada acima de Cristo, pois é somente um meio para conduzir o fiel a Ele, tendo-O como Modelo de Vida cristã. A experiência em Cristo é o mundo real.
“O amor do nosso Jesus não empacou no Novo Testamento...transbordou para o terceiro Testamento...que é do Amor” (SANTA CRUZ, 2011, p. 62).
Os textos Sagrados foram escritos por um número estimado de cinquenta autores, no período entre 1100 e 450 a.C. (AT) e 45 e 100 d.C. (NT), totalizando aproximadamente 750 anos de escritos pelos autores primordiais, contendo mais ou menos 1600 anos de relatos vividos nas histórias de fé dos povos bíblicos desde Abraão, amplamente alicerçados pela tradição oral. Nos tempos citados está sendo considerado o período interbíblico, ou intertestamentário, 433-5 a.C. considerado por muitos como “anos de silêncio”, nada foi escrito.
Todos os dados referentes a períodos dos escritos, quantidade de autores, autores, tempo, locais etc., quando se busca diferentes exegetas e biblistas, historiadores, arqueólogos e pesquisadores, encontram-se respostas desiguais, mas condizentes, indicando sempre números e dados aproximados, mas nada pode ser reconhecido como exato.
Não há dados acadêmicos histórico-científicos comprovando o período e a formação do Primeiro Testamento pelos judeus. A Bíblia hebraica contém 24 livros divididos em três seções: a Lei, os profetas e os Escritos denominados Tanakh = Torá, Nevi’im e Ketuvim. Torá é uma palavra hebraica com significado de ensinamento, instrução, lei. Ela é composta pelos cinco primeiros Livros [Pentateuco]: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A língua original do Primeiro Testamento é o hebraico, com exceção apenas de alguns trechos escritos em aramaico.
Nosso cânon, palavra grega que significa “cana”, vara utilizada como instrumento de medida, com significado secundário de conjunto de regras, por nós conhecida como livros, contêm 46 livros do Antigo Testamento, diferentemente da Bíblia Judaica com 24, isso porque alguns livros foram divididos pelos cristãos.
Em nossas bíblias constam os livros protocanônicos [catalogados em primeira instância], totalizando 39, e também os 7 deteurocanônicos [catalogados em segunda instância]: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, I e II Macabeus, e fragmentos de Ester e Daniel, totalizando 46. Os deteurocanônicos além de terem sidos rejeitados pelos protestantes, foram considerados como apócrifos. Eles seguiram a decisão do judaísmo rabínico tomada no Sínodo de Jâmnia no ano 100 d.C.
Como naquele tempo começaram a surgir escritos do Novo Testamento e os rabinos não os aceitavam, decidiram que para um livro fazer parte da Bíblia deveria ter sido escrito na terra Santa; deveria ter sido escrito somente em hebraico; deveria ter sido escrito antes de Esdras (455-428 a.C.) e não entrar em contradição com a Torá ou a Lei de Moisés.
Voltando um pouco na história do povo judeu, quando Alexandre o grande conquistou o império persa, incluindo o território de Israel, o grego se tornou a língua oficial da região. Como havia muitos judeus nascidos em outras regiões e não conheciam o hebraico, em Alexandria no Egito, aproximadamente no século III a.C. foi feita a primeira tradução do Antigo Testamento para o idioma grego Koiné, que é conhecida como Septuaginta. O nome se dá pelo que a tradição definiu por ter sido traduzida por setenta (72) sábios judeus. Mesmo entre acertos e erros iniciais e posteriores cometidos até mais pelos copistas, ela foi bem aceita pela comunidade judaica e também pelos primeiros seguidores de Jesus.
“Quem vê Jesus vê o Pai (Jo 14,9) o discípulo que caminha com Jesus será assim introduzido com ele na comunhão com Deus” (BENTO XVI, 2013, p. 26).
A Septuaginta oferece uma tradução bem próxima da forma e substância original dos primeiros escritos Sagrados, mas difere até consideravelmente do texto hebraico massorético, principalmente por interpretações.
Avançando na história, entre o final do século IV início do século V d.C., a pedido do Papa Dâmaso, o biblista São Jerônimo produziu a Vulgata. Termo Latim que significa versio/popular. Ele traduziu para o Latim os textos hebraicos [não da Septuaginta], e selecionou e revisou os textos do Novo Testamento que foram escritos em grego. Estes são os que constam na maioria de nossas bíblias. Esta versão foi usada pela Igreja Católica Romana por muitos séculos, e ainda hoje por ser respeitada é fonte para diversas traduções.
Como a definição exata sobre a canonicidade dos 73 livros de nossa bíblia é uma longa e complexa história, a “conclusão” mais acertada para nós vem do Concílio de Trento em 1545–1563. Por meio da Sagrada Tradição, sob a assistência do Espírito Santo, houve discernimento para elencar os livros inspirados (Dei Verbum, n. 8). O cânon foi estabelecido para unificar a fé cristã.
Unificada no Amor, a Bíblia não pode ser vista somente com os olhos voltados à mística, pois esse ângulo pode levar o leitor às ideias religiosas pré-concebidas, ou então “cair” no subjetivismo. Para nossos olhos resplandecerem sobre as Escrituras, devemos direcioná-los a Jesus — vivo em Nazaré e no coração de todos, especialmente os que n’Ele creem e confiam. “Conhecer a Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria” (Documento de Aparecida, n. 29).
Não vamos nos aprofundar nas origens bíblicas entrando no tema dos códices, mas sugerimos leituras sobre o assunto para que possa compreender com mais razão o Livro que você tem em mãos, visto que as traduções de cada livro não saíram respectivamente de seus originais, saíram de cópias. Os originais são desconhecidos.
Somando-se a isso, o tempo, as histórias e suas narrativas, os modos, os meios, os fatos, as causas e os efeitos produzidos através da hermenêutica, das leituras estruturalistas, das figuras de linguagem, das numerologias, das discordâncias textuais, das traduções e interpretações, dos fundamentalismos, das leituras diacrônicas, dos gêneros literários, da mitologia, das alegorias, das figuras de linguagem, das etimologias, das metáforas, dos folclores, dos simbolismos, das semânticas, dos anacronismos e antagonismos, da mística, da anagogia, do método histórico-crítico, dos métodos de análises literária, retórica, narrativa e semiótica, e a lista vai longe [...].
Simplesmente entender a verdade sobre o básico muitas vezes já se torna difícil, imagine analisar tudo isso então. Estas referências são essenciais para os estudiosos biblistas/exegetas, com a finalidade de transmitirem aos fiéis o mais louvável suprassumo da Palavra. Estudos de exegetas estão disponíveis, mas dificilmente chegam aos cristãos católicos que só participam das missas, e até mesmo para os que exercem algum ministério na Igreja. Como raramente são anunciados pelas paróquias, a procura e o esforço para se chegar a eles se torna pessoal.
A exegese bíblica preenche, na Igreja e no mundo, uma tarefa indispensável. Querer se dispensar dela para compreender a Bíblia seria ilusão e manifestaria urna falta de respeito para com a Escritura inspirada (Pontifícia Comissão Bíblica, Roma, abril 1993).
Santo Agostinho (2015, p. 117) sobre ciência humana e fé divina, nos transmite esta bela mensagem: “Senhor, Deus da verdade, será suficiente conhecer essas coisas para te agradar? Infeliz o homem que conhece tudo isso e não te conhece. Feliz aquele que te conhece, ainda que ignore o resto”.
A intenção em apresentar todas estas importantes referências e condições que devem ser analisadas para, verdadeiramente poder compreender e viver a mensagem da Santíssima Trindade têm dois bons, fortes e favoráveis motivos: 1) Não dá para fazer uma leitura fundamentalista ao pé da letra. 2) Com todas estas “observâncias/dificuldades”, o Livro que temos em mãos é uma gigantesca obra da Providência Divina através de seus cocriadores. A melhor forma de ler o texto é dentro desse contexto.
Como Deus na Sagrada Escritura falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles (Dei Verbum, n.12).
A Bíblia não é um Livro científico que fornece informações precisas e exatas sobre a Revelação de Deus aos homens. Por isso, não adianta buscar e nem crer piamente em algumas passagens como sendo relatos extremamente verdadeiros e precisos, exemplos: os seis dias da criação, ou a criação das criaturas, como são relatos de fé do povo, é fundamental discernir o que o autor usou para se expressar. Não dá para fazer uma leitura “pura” dos textos Sagrados, como são interpretações, se faz necessário interpretá-los pela via da fé.
Crer é uma resposta obediente, consciente e livre ao apelo de Deus que se revela por amor. Por ser resposta a um apelo, o ato de fé — crer — é base e, ao mesmo tempo, expressão da relação da pessoa que crê, com Deus que a interpela por amor (CNBB. Sou Católico, 2012, p.11).
A fé transforma a pessoa inteira, corpo e espírito unidos pelo coração, precisamente na medida em que ele se abre ao amor; é neste entrelaçamento da fé com o Amor que se compreende a forma de conhecimento da própria fé, sua força de convicção e sua capacidade de iluminar os nossos passos (Lumen Fidei, n. 26).
No pensamento do Cardeal Kasper (2015, p. 61), na Bíblia o coração não designa unicamente um órgão de importância vital para o ser humano, do ponto de vista antropológico, designa o centro da pessoa, a sede dos sentimentos e do julgamento.
Como a proposta não é um estudo detalhado sobre o Livro em si, seus conteúdos e sua elaboração durante a história, mas sim, sobre o que seu conteúdo, verdadeira e racionalmente representa na vida do cristão. Sob a Graça da infinita Misericórdia da Santíssima Trindade, esta deve ser a ótica do próprio cristão em sua forma de interpretar e desfrutar — é o “conceito”, esta é a Verdade. Se não tivermos a noção do amor de Deus, jamais progrediremos na nossa fé.
Só foi possível elaborar esta reflexão “envolvendo” Deus-Trino, um pouco de história dos povos bíblicos, a igreja e seus documentos, grandes teólogos, mas, especialmente a participação do ser humano em todos os momentos. Único interesse de Deus em tudo isso!
Concluímos com o número 35 da Carta Encíclica Lumen Fidei do Papa Francisco: “Configurando-se como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem captar, já vivem — sem o saber — no caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar diretrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio da escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem que a presença de Deus ainda a tornaria maior”. Creia nisso, creia em você e na Misericórdia do Deus-Pai.
POR CRISTO, COM CRISTO, E EM CRISTO
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus. 2015.
BENTO XVI. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2013.
CELAM. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo/Brasília: Paulus/CNBB/Paulinas, 2007.
CNBB. Sou católico: vivo minha fé. São Paulo: Edições CNBB, 2012.
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina. São Paulo: Paulus, 2014.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Lumen Fidei: Aos Bispos, aos Presbíteros, aos Diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre a fé. São Paulo: Paulinas, 2013.
KASPER, Walter. A misericórdia: condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
PONTIFICA COMISSÃO BÍBLICA. Clique aqui.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a criação: por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 2011.
RUBIO, Afonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994.
SANTA CRUZ, Pe. Afonso. Como Jesus falaria hoje. Curitiba: 2011.