09 Agosto 2025
Gal é catadora de recicláveis, mãe de dois filhos, e vive com o companheiro Leandro. Quando ele bebe, torna-se violento e ela resolve escapar com as crianças. Nas ruas de São Paulo, ela se desdobra para sobreviver e também não sacrificar os sonhos de sua infância. Nos cinemas.
O comentário é de Neusa Barbosa, jornalista e crítica de cinema, publicado por CineWeb, 26-06-2025.
Eis o comentário.
Centrado na figura de Gal (Shirley Cruz), A Melhor Mãe do Mundo, oitavo longa de Anna Muylaert, marca um aprofundamento da cineasta no território das questões femininas mais cruciais, delineando os dilemas de uma mulher, mãe de dois filhos (Rihanna Barbosa e Benin Ayo), para escapar ao círculo vicioso da violência do atual companheiro, Leandro (Seu Jorge). A partir do detalhe de que Gal sobrevive como catadora de recicláveis, o filme se torna também uma jornada dentro da cidade de São Paulo, entre o centro velho e Itaquera, na zona leste, permitindo um olhar a tantas partes não gentrificadas da metrópole, onde a luta pela sobrevivência e também a solidariedade são formas de expressão que permitem atravessar as dificuldades.
Um aspecto que o enredo resgata é a necessidade do sonho - e é com este apelo que Gal inspira os filhos em sua fuga de Leandro, colorindo seus dias com aventuras que passam por dormir em lugares inusitados, como um parque, ou um banho numa fonte próxima ao Teatro Municipal. É evidente que Anna Muylaert está preocupada em explorar múltiplos aspectos da maternidade a partir da perspectiva de uma mulher muito simples, que não teve acesso a educação ou formação profissional e que é desafiada a defender sua integridade física a partir do confronto com um homem violento - que não é exatamente um monstro, mas encarna um machismo estrutural que torna a violência contra as mulheres comum, cotidiana e, infelizmente, desconsiderada e até aceita como “normal”.
É contra isso que o filme se coloca, procurando criar situações orgânicas de convivência e conflito, não só entre os personagens de Gal e Leandro, mas também de seu entorno, como a prima dela, Val (a cantora Luedji Luna), seu marido, Anivaldo (Rubens Santos), a moradora de rua Munda (Rejane Faria), e um amigo, Reginaldo (Lourenço Mutarelli). O roteiro e a direção de Anna criam um mundo, um contexto, que tem sua coerência e força, embora algumas situações tenham soluções menos elaboradas do que outras, criando eventualmente um desequilíbrio dramático. Estes pequenos tropeços não retiram, porém, a força do filme, que venceu cinco prêmios no Cine PE 2025: melhor filme, roteiro, montagem, atriz (Shirley Cruz) e atriz coadjuvante (Rejane Faria).
As crianças, Rihanna Barbosa e Benin Ayo, escolhidas por meio de testes, são um caso à parte para salientar. Suas cenas com Shirley Cruz são de uma espontaneidade fluida e de uma autenticidade muito envolvente. É impossível não sentir empatia por eles, aliás, um fenômeno que se repete onde quer que o filme seja exibido. Não à toa, portanto, os prêmios de público que tem recebido, caso dos festivais de Toulouse e Nice.
Ficha técnica
Nome: A Melhor Mãe do Mundo
Nome original: A Melhor Mãe do Mundo
Ano: 2025
País: Brasil
Gênero: Drama
Duração: 90 minutos
Classificação: 14 anos
Cor da filmagem: Colorido
Direção: Anna Muylaert
Elenco: Shirley Cruz, Seu Jorge, Rejane Faria, Lourenço Mutarelli, Luedji Luna, Rubens Santos, Rihanna Barbosa, Benin Ayo
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