23 Mai 2025
Com a eclosão dos protestos na Tunísia, Egito e Síria, no início da segunda década dos anos 2000, começou uma era de mobilizações em massa que se estenderam do Brasil à Coreia do Sul, superando em número os icônicos e agitados anos 1960.
Naquele momento, o jornalista e escritor Vincent Bevins estava no Brasil, onde a rejeição ao aumento nas tarifas do transporte público provocou uma revolta social sem precedentes em 2013, marcada por uma maior horizontalidade e grandes mobilizações convocadas através das redes sociais.
Seu livro Si Ardemos: La década de las protestas masivas y la revolución que no fue (Capitán Swing, 2025) analisa esta década de protestos e é, em última instância, um apelo às reivindicações e iniciativas sociais contra a atomização e individualidade promovida pelos discursos neoliberais.
A entrevista é de Lara Villalón, publicada por La Marea, 19-05-2025. A tradução é do Cepat.
A maioria dos movimentos de protesto que você analisa termina sem alcançar o seu objetivo inicial ou sem sucesso. Apesar disto, você acredita que há impactos menores que perduram nesses países, após os protestos? Talvez uma organização melhor das pessoas ou iniciativas que não aparecem nos meios de comunicação.
É a história mais comum do mundo: um grupo de pessoas se une em torno de uma causa justa, arrisca-se, trabalha duro e não consegue o que almeja. O realmente fascinante dos anos 2010 não está em que não funcionaram. Está no fato de que são vividos momentos reais de euforia vitoriosa. Geram-se mudanças reais.
Há pessoas que passam pela experiência que mudam suas vidas, sentindo que nós, juntos nas ruas neste momento, estamos fazendo história. E isto, alguns anos depois, quando olhamos para trás, não só não aconteceu como se imaginou, como, inclusive, é possível que as coisas tenham retrocedido na perspectiva dos organizadores originais dos protestos.
Em alguns casos, há vitórias moderadas, vitórias relativas, mas vitórias reais. Chile e Coreia do Sul são exemplos de países onde não se conseguiu tudo o que foi sonhado pelo movimento, mas ocorreu algo real e importante como resultado da mobilização nas ruas.
Obviamente, não se conseguiu tudo o que se reivindicou, o que se sonhou nas praças em 2011, mas foram formadas novas organizações, discursos foram transformados e conexões foram forjadas, o que a longo prazo resultou em uma contribuição positiva para a política progressista. Dito tudo isto, para uma análise séria da política, é importante aceitar que a derrota de um movimento de protesto é possível.
No livro, é recorrente o conceito de horizontalidade nos protestos e a falta de liderança, o que às vezes faz com que alguns manifestantes ou ativistas iniciais se sintam um pouco decepcionados com o desenrolar das manifestações. Por que o horizontalismo se tornou tão proeminente nas praças, nos anos 2010?
Em 2010, no Egito, ou mesmo na Espanha, Brasil e Hong Kong, não é que a grande maioria das pessoas fosse horizontalista. Não que o senso comum dominante em todo o mundo indicasse que um movimento social deveria ser completamente não hierárquico, mas esses elementos existiam. Existia um legado em alguns setores da esquerda antiautoritária. Contudo, o que acontece nos anos 2010, na minha opinião, é que certo tipo de mobilização se torna mais fácil do que todas as outras ações que os seres humanos podem realizar para se opor ou protestar contra as elites.
Isso se sobrepõe a alguns dos discursos mais antigos sobre o horizontalismo, a rejeição à hierarquia e a possibilidade do protesto descentralizado, que se considera prefigurativa da sociedade, em vez de tentar se apoderar ou transformar o Estado como uma tradição leninista teria feito.
Por que isto se tornou mais fácil de fazer do que outras coisas? Porque esses protestos foram usados pela centro-esquerda, a centro-direita, a extrema direita, os nacionalistas, por todos nos anos 2010, não apenas por pessoas da esquerda anarquista ou autônoma que teriam teorizado ou sido fiéis a tais princípios em tempos anteriores. Penso que, em primeiro lugar, no que poderíamos chamar de era neoliberal, ou pelo menos nas sociedades capitalistas avançadas, temos um modo de vida mais atomizado e individualizado do que no século XX.
Então, organizar-se, conseguir fazer com que as pessoas se juntem a organizações formais, está mais difícil do que nunca. Empiricamente, há menos pessoas nelas do que no século XX. As redes sociais possibilitam uma mobilização rápida como nunca antes.
Em relação a isso, em uma parte do livro você menciona que, no Brasil, a ex-presidenta Dilma Rousseff revisava os vídeos dos protestos, tentando compreender as reivindicações dos manifestantes. Você considera que a incapacidade de compreender as reivindicações está relacionada à horizontalidade ou à distância entre as elites e a população?
Penso que são as duas coisas. Mas lembre-se de que a distância entre as elites e a população é a condição prévia para os protestos; é o que os próprios movimentos de rua tentam impor. Portanto, deve-se aceitar como parte necessária da infraestrutura, uma parte necessária do terreno no qual qualquer movimento social luta. Então, se você diz que as elites não nos representam, que a representação está rompida, também deveria proceder de modo a considerar essa falha. Se você acredita que a representação está rompida, então, não deveria se basear nela para traduzir suas afirmações.
Então, sim, você tem toda a razão. Mas no caso do que considero uma crise de representação no sistema global e na Espanha, isto foi expresso com a frase: “Não me representam ou não nos representam”. A horizontalidade dificultou a autorrepresentação do movimento. Um bom governo deveria saber o que a sua população pensa, mas se torna muito difícil coordenar uma voz unificada entre três milhões de pessoas, quando se insiste no consenso total, no modelo de assembleia ou em que ninguém pode falar por ninguém.
O livro se concentra muito no Sul Global, mas eu gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre os tempos recentes, especialmente após a guerra em Gaza, onde houve uma espécie de réplica da repressão aos protestos que vimos no Sul Global, como, por exemplo, intervenções policiais, proibições de protestos, prisões e até ordens de deportação. Avalia que estamos diante de uma nova situação ou forma de protesto?
Em seu discurso sobre o colonialismo, Aimé Césaire pergunta: o que é realmente o fascismo? E diz que o fascismo surgiu quando os europeus começaram a tratar a eles próprios da mesma forma que tratavam as pessoas do terceiro mundo. Esse fascismo trouxe para casa tecnologias que tinham sido usadas contra os povos colonizados na África, Ásia e América Latina. Quando você vê estudantes árabes, muçulmanos ou simplesmente pró-palestinos presos e empurrados para dentro de veículos sem identificação, por policiais à paisana, não tem como deixar de pensar nas atividades das ditaduras apoiadas pelos Estados Unidos na Argentina e no Brasil.
Então, se Césaire está certo ao afirmar que o fascismo está repercutindo, fazendo a nós mesmos, aos cidadãos da metrópole, o que o Estado vem fazendo com os cidadãos da periferia ou do sul global, então, considero que tem toda a razão. É muito surpreendente ver como a administração Trump recorre a um tipo de opressão em casa que o governo dos Estados Unidos, tradicionalmente, apoia com entusiasmo em outros países.
As redes sociais são um fator importante no livro. Escreveu sobre o Brasil. “Penso que em muitos lugares, sobretudo no Brasil, as coisas teriam sido diferentes se não tivesse ocorrido essas conexões entre os protestos e as redes sociais”. Como as redes sociais influenciaram nos protestos, seja de forma positiva ou negativa?
Penso que influenciaram nos dois aspectos. Acredito que as redes sociais contribuem para o rápido crescimento quantitativo, que sempre acarreta uma espécie de horizontalidade que gerou as oportunidades reais que vimos nos anos 2010, mas que também houve dificuldades para aproveitar as oportunidades que elas próprias criaram. Então, as redes sociais foram um dos fatores que possibilitaram uma rápida mobilização como a que vimos no Brasil, em 2013.
Mas, ao mesmo tempo, quando centenas de milhares de pessoas foram às ruas por causa do que viram na televisão, no Twitter ou no Facebook, havia outras pessoas com ideias completamente diferentes sobre a política brasileira, sobre como agir politicamente e o significado dos protestos. E o que eu vi com meus próprios olhos, a poucos metros de mim, foi aqueles recém-chegados entrando em conflitos verbais, que acabaram em conflitos violentos com os esquerdistas originais que tinham organizado os protestos.
Observa uma mudança em sua percepção das redes sociais agora? Porque muita coisa mudou em uma década. Por exemplo, na Turquia, as autoridades usam inteligência artificial para criar vídeos falsos sobre a oposição, mas os presos opositores também a usam para enviar vídeos à população.
Sim, absolutamente. A Turquia é um grande exemplo. O sonho da internet de que todos possam falar em igualdade de condições foi pervertido pela imposição de hierarquias e estruturas de poder. E, em última instância, penso que criamos um grupo de oligarcas na Califórnia que agora estão capturando o Estado de uma forma muito perigosa nos Estados Unidos.
Governos, corporações, regimes repressivos, movimentos de extrema direita, todos também descobriram como usar a internet e como usar seu poder econômico e político para exercer uma influência desproporcional nela. E esta compreensão veio lentamente, então, eu converso com muitos jovens sobre este livro, pessoas que não se lembram da época em que... Custam a acreditar, não conseguem acreditar que em 2011 as pessoas realmente acreditavam que a internet tornaria o mundo um lugar melhor, que o mundo seria mais democrático e transparente graças a ela.
Contudo, este sonho, esta crença, desapareceu lentamente, e penso que em meados dos anos 2010 começamos a ver que algo ia mal. Começamos a ver narrativas estranhas, conspiratórias e populistas de direita que se expandem de um modo que não faz muito sentido. Começamos a compreender que as redes sociais, financiadas por recursos publicitários, privilegiam determinados conteúdos sobre outros, e isso distorce a nossa forma de ver o mundo.