02 Mai 2025
Segundo Cássio Casagrande, procurador do Ministério Público do Trabalho e professor da Universidade Federal Fluminense, decisões do Supremo chancelando a pejotização (contratação via pessoa jurídica), mesmo em casos de evidente fraude, têm tornado a CLT facultativa para os empregadores.
A entrevista é de Igor Ojeda, publicada por Repórter Brasil, 01-05-2025.
“Que patrão vai assinar a carteira de trabalho?”, pergunta Cássio Casagrande, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho), em entrevista à Repórter Brasil.
O questionamento é uma dura crítica a uma série de decisões dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), liderados por Gilmar Mendes, que nos últimos dois anos têm anulado o reconhecimento do vínculo empregatício em casos, tidos como fraudes pela Justiça do Trabalho, de profissionais contratados via “pejotização”.
Casagrande é enfático: as decisões do Supremo significam a “destruição do direito do trabalho”. “É muito grave, porque a consequência é que os trabalhadores não podem mais buscar a Justiça do Trabalho”, alerta o procurador do MPT, que também é professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutor em ciência política.
Em 11 de abril, ele lançou, em coautoria com o também jurista Rodrigo Carelli, o livro “A Suprema Corte contra os trabalhadores — Como o STF está destruindo o direito do trabalho para proteger as grandes corporações” (Editora Venturoli).
“Pejotização” é o nome dado ao processo pelo qual uma empresa, em vez de contratar um trabalhador sob o regime da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), faz um contrato civil de prestação de serviços. Nesses moldes, o empregado constitui uma pessoa jurídica, como MEI (Microempreendedor Individual) ou pequena empresa.
No entendimento da Justiça do Trabalho, se o empregador utiliza essa alternativa com o objetivo de mascarar uma relação empregatícia típica, configura-se uma fraude trabalhista. No entanto, o STF tem adotado a tese de que qualquer contrato “pejotizado” é válido, pois seria equivalente a uma terceirização. Esse posicionamento, “um erro grave”, analisa o procurador do MPT, têm tornado “a CLT facultativa para os empregadores”.
Casagrande explica que foi o próprio Supremo que “abriu a porteira” para essa possibilidade ao julgar a constitucionalidade da terceirização da atividade-fim prevista na reforma trabalhista aprovada em 2017.
Na ocasião, diz, “o tribunal estabeleceu não somente que era possível terceirizar, como também realizar qualquer outra forma de organização produtiva do trabalho alternativa à CLT. O legislador havia apenas permitido a terceirização da atividade-fim. O Supremo deu um passo além disso”.
O resultado, esclarece o procurador, é que o STF passou a ser inundado por reclamações constitucionais propostas por empregadores contestando decisões da Justiça do Trabalho que determinaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores pejotizados. “O Supremo virou a maior Vara do Trabalho do Brasil”, diz.
Casagrande afirma que dos 11 ministros da corte, 9 têm acolhido monocraticamente a tese da legalidade de qualquer tipo de pejotização – Edson Fachin e Flávio Dino são as exceções. Em 14 de abril, diante do alto volume de processos, o ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão de todas as ações no STF sobre o tema até que o tribunal decida sobre ele em plenário.
Uma possível confirmação da tese pelo colegiado do Supremo seria, na avaliação do procurador do MPT, uma “catástrofe”. Segundo ele, além dos impactos aos direitos trabalhistas, a liberação total da pejotização traria graves consequências para a arrecadação de impostos e a Previdência Social.
O livro que o senhor acabou de lançar em coautoria com o professor Rodrigo Carelli tem como subtítulo “Como o STF está destruindo o direito do trabalho para proteger as grandes corporações”. Poderia explicar essa afirmação?
Em 2017, o Congresso aprovou a reforma trabalhista. E a constitucionalidade de alguns de seus pontos foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal, em especial, a questão da terceirização. Porque havia uma certa discussão na Justiça do Trabalho sobre quais seriam seus limites. A Justiça do Trabalho vinha entendendo que ela era possível, exceto em atividades-fins [a atividade principal de uma empresa].
Porém, a reforma trabalhista mudou esse entendimento e estabeleceu que seria possível terceirizar qualquer atividade da empresa, inclusive a principal. Isso foi levado ao Supremo, que decidiu que a lei é constitucional. E, ao julgar esse assunto, o tribunal estabeleceu não somente que era possível terceirizar, como também realizar qualquer outra forma de organização produtiva do trabalho alternativa à CLT. O legislador havia apenas permitido a terceirização da atividade-fim. O Supremo deu um passo além disso.
Então essa possibilidade não está contida na reforma trabalhista?
Não está. Foi o Supremo que colocou ali. E, quando fez isso, abriu a porteira. Porque aí algumas empresas, alegando que a pejotização é uma forma de terceirização, começaram a levar ao Supremo decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam o vínculo de emprego com trabalhadores pejotizados. E o Supremo acolheu essa tese. No meu modo de ver e de vários outros juristas, isso é um erro grave, porque terceirização e pejotização são coisas completamente diferentes. Não estou dizendo que toda pejotização é fraudulenta, e mesmo a Justiça do Trabalho nunca agiu assim.
Mas aconteceu um desvirtuamento grande da pejotização no mercado de trabalho. Em vez de contratar pela CLT, a empresa contrata como PJ [pessoa jurídica]. Mas o trabalhador é empregado, bate o cartão de ponto, atua sob um comando hierárquico disciplinar. A CLT, no seu Artigo 9º, diz que os atos que tendem a mascarar uma relação de emprego são nulos de pleno direito. O Artigo 3º estabelece certos pressupostos fáticos: subordinação, trabalho contínuo, hierarquia etc. É assim que você vê se é contrato de trabalho ou não.
O Supremo simplesmente inverteu a lógica e decidiu que, se o trabalhador assinou um papel como PJ, a Justiça do Trabalho não pode anular. Vale o que está escrito. Eu até brinco no livro: é como no jogo do bicho. Vale o que está no papel, não importa a realidade. Se o trabalhador aceitou ser contratado como PJ, não pode mais questionar. Isso é um verdadeiro absurdo, é a verdadeira destruição do direito do trabalho, porque, se isso valer, que patrão vai assinar a carteira de trabalho? Acaba-se modificando o caráter da pedra fundamental do direito do trabalho, que é o chamado contrato-realidade, ou seja, o que importa é a realidade, não o rótulo que se dá.
Vamos lembrar que essas decisões do Supremo têm um impacto terrível sobre a Previdência Social, porque o pejotizado recolhe a própria cota previdenciária, que é menor do que a de outro trabalhador. E, no caso do contrato de trabalho, a empresa recolhe a previdência sobre a folha de pagamento. Quando contrata o PJ, não recolhe. Aí eu pergunto: quem é que vai sustentar a Previdência se todo mundo for pejotizado? Então, o Supremo está tomando essas decisões de forma inconsequente, sem medir os problemas que isso vai gerar.
O problema é que os ministros do STF estão decidindo monocraticamente, por critérios aleatórios. E é preocupante porque todos os direitos que dependem do contrato de trabalho ficam inviabilizados. Pense numa mulher trabalhadora que sofre assédio sexual. Se ela é pejotizada, como vai reclamar para o judiciário? Pessoa jurídica não sofre assédio sexual. É uma relação horizontal, e o assédio pressupõe uma relação vertical. E o mais absurdo do posicionamento do ministro Gilmar Mendes é que ele tem dito que a Justiça do Trabalho não tem competência para apreciar esses conflitos.
A Justiça do Trabalho não teria competência para julgar esses casos, segundo o ministro, porque seria um contrato civil, não um contrato de trabalho, é isso?
Sim. Mas, quando o trabalhador entra com uma ação trabalhista, não está entrando como pessoa jurídica, e sim como pessoa física, como trabalhador. Ele não é uma pessoa jurídica, ele tem a pessoa jurídica. Então, é claro que é competência da Justiça do Trabalho. Isso funciona assim há 80 anos, desde que a Justiça do Trabalho foi criada. Não houve fato novo algum para mudar. [Os ministros do STF] tiraram isso da cabeça deles.
Além de retirar da Justiça do Trabalho a competência para julgar, caso a caso, se há fraude ou não nos contratos pejotizados, essas decisões do Supremo têm o potencial de inclusive mudar a própria configuração do mundo do trabalho, não?
Essas decisões tornam a CLT facultativa para os empregadores. Ou seja, causam um impacto tremendo no mercado de trabalho, porque várias empresas vão substituir o celetista [contratado sob o regime da CLT] por PJ, porque o Supremo garante. Vale o escrito, não importa a realidade. Não existe mais a possibilidade de se discutir fraude trabalhista na Justiça do Trabalho. É uma decisão irresponsável do Supremo Tribunal Federal, que não pensa no impacto dessas decisões no mercado de trabalho, na Previdência Social e, inclusive, na própria fazenda. Porque o recolhimento de Imposto de Renda da pessoa jurídica é menor do que quando há contrato de trabalho. Se isso passar [no plenário do STF], será uma catástrofe.
É ruim, como falei, para as mulheres trabalhadoras, porque, além da questão do assédio, como se vai garantir a elas a licença-maternidade, estabilidade da mulher grávida, isonomia salarial? Outras minorias também serão afetadas.
Em 14 de abril, o ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão de todos os processos que discutem a pejotização até que o colegiado do STF decida sobre o assunto em um Tema de Repercussão Geral. A expectativa é que a decisão em plenário confirme a tese que os ministros vêm aplicando monocraticamente?
Tudo indica que sim. A perspectiva é ruim porque, dos 11 ministros, 9 estão acompanhando o Gilmar Mendes na admissão de forma ampla da prevalência do contrato sobre a realidade. Somente os ministros Edson Fachin e Flávio Dino estão contrários. Minha esperança é que os atores sociais exerçam alguma pressão, principalmente os sindicatos.
A gente sabe que o STF é sensível a esse tipo de articulação, não só das centrais sindicais, mas do próprio governo. O governo Lula também está dormindo no ponto, vamos falar bem claro. O ministro da Fazenda tem que acordar e ver que isso aí vai dar um rombo de bilhões na Previdência Social.
A própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional já mandou uma petição para o Supremo advertindo para as consequências fiscais se essa tese for aprovada. Inclusive para a própria justiça fiscal. Porque se o Supremo disser que trabalhador hipersuficiente pode ser contratado como PJ, somente o trabalhador miúdo vai pagar imposto sobre o salário. É o trabalhador da CLT que ganha dois, três salários mínimos. Aqueles que ganham R$ 20 mil ou mais vão pagar menos imposto. Ou seja, causaria um problema também de injustiça tributária. O cenário é catastrófico.
Por que 9 dos 11 ministros estão interpretando o tema dessa forma? Falta compreensão sobre o direito do trabalho ou há outros motivos?
São várias coisas. Primeiro, vamos falar claro: é lobby empresarial no Supremo. O que leva o Luís Roberto Barroso a falar em Roma, patrocinado pelo Esfera Brasil, que é uma entidade constituída por grandes empresas de São Paulo? Há uma pressão econômica sobre o Supremo. E também porque os grandes líderes do Supremo – Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux – são de pensamento liberal radical na economia.
Há uma ideia errada, que a direita fala muito, de que a Suprema Corte é progressista. É uma ova. Pode ser progressista para questões morais, que também têm a ver com um pensamento liberal de que o Estado não deve se imiscuir nas relações privadas das pessoas, por exemplo, da comunidade homoafetiva. Mas, quando chega na questão econômica, o Supremo é liberal conservador, no sentido de prestigiar os interesses do patronato. E os ministros são antitrabalhadores, antissindicatos.
É possível considerar que tanto a reforma trabalhista e a liberação da terceirização da atividade-fim quanto os julgamentos do STF anulando decisões da Justiça do Trabalho fazem parte de um mesmo processo de desmonte dos direitos trabalhistas que vem se desenrolando nos últimos anos?
Exatamente. Tudo isso faz parte da onda conservadora no Brasil, na qual o judiciário também está surfando. E há também certo desequilíbrio de poderes, porque o Supremo está legislando, usurpando a competência do Poder Legislativo. Não existe nenhuma lei dizendo que o contrato prevalece sobre a realidade, e sim exatamente o contrário.
O que o Supremo está fazendo não existe em nenhum país civilizado do mundo. O princípio da primazia da realidade sobre o contrato existe em todos os países da Europa, da América Latina, dos Estados Unidos. Há, inclusive, a Recomendação 198 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que diz que a legislação deve evitar que formas simuladas de contrato prevaleçam sobre a relação de fato.
Mas uma das justificativas para a reforma trabalhista era que a legislação trabalhista brasileira estava ultrapassada e precisava ser atualizada, e que inclusive era uma das mais rígidas do mundo.
Papo furado. A legislação trabalhista da Alemanha é muito mais rígida e complexa do que a brasileira. E é o país com maior produtividade da Europa. Nos Estados Unidos, qual é o estado que tem a legislação trabalhista mais rígida? A Califórnia, uma potência econômica.
Então, essa afirmação não faz sentido. E a ideia de que a CLT é muito antiga e ultrapassada ignora que ela já foi reformada várias vezes. Hoje, não tem sequer 15% do seu texto original. Então, é um discurso ideológico.