25 Abril 2025
"No último ano e meio, o Papa Francisco ligou quase todas as noites para a Igreja da Sagrada Família, a única igreja católica na Faixa de Gaza. Um compromisso necessário para ele, um ritual para conhecer as condições das seiscentas pessoas deslocadas na igreja", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 23-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
O destino dos civis da Faixa de Gaza tem estado no centro das preocupações do Papa Francisco todos os dias nos últimos dezoito meses. Em sua última mensagem aos fiéis, no domingo de Páscoa, ele voltou a expressar sua “proximidade com o sofrimento dos cristãos na Palestina e em Israel, e com todo o povo israelense e palestino” e a condenar “a dramática e ignóbil situação humanitária” em Gaza.
As condições para os civis de Gaza pioraram drasticamente no último mês, desde que Israel encerrou o cessar-fogo e impôs o bloqueio a toda ajuda humanitária para Gaza. De acordo com organizações humanitárias, milhares de crianças estão desnutridas e a maioria das pessoas consome pouco mais do que uma refeição por dia.
É por isso que o Papa, ao final de seu discurso aos fiéis, havia lançado o enésimo apelo às partes envolvidas no conflito: “Proclamem um cessar-fogo, libertem os reféns e venham em auxílio de um povo faminto que aspira a um futuro de paz”. Mas mesmo essas palavras não foram ouvidas. Na segunda-feira, de acordo com fontes médicas de Gaza, os ataques aéreos israelenses mataram pelo menos 14 pessoas.
Nas mesmas horas em que o Papa falava aos fiéis pela última vez, os cristãos de Gaza haviam se reunido na igreja de São Porfírio na Cidade de Gaza, uma igreja que havia sido bombardeada em outubro de 2023, algumas semanas após o início da ofensiva militar israelense, um ataque no qual 18 palestinos deslocados foram mortos, incluindo alguns cristãos. Ao mesmo tempo, na Cisjordânia e em Jerusalém, as autoridades israelenses impediam que muitos membros da comunidade cristã tivessem acesso a lugares sagrados. Este ano, apenas 6.000 palestinos na Cisjordânia receberam permissão para participar dos cultos de Páscoa na Igreja do Santo Sepulcro, na Jerusalém Oriental ocupada, que, previsivelmente, foi militarizada para a ocasião. Até mesmo o representante do Vaticano na Palestina foi impedido de entrar na igreja.
No último ano e meio, o Papa Francisco ligou quase todas as noites para a Igreja da Sagrada Família, a única igreja católica na Faixa de Gaza. Um compromisso necessário para ele, um ritual para conhecer as condições das seiscentas pessoas deslocadas na igreja. Do outro lado do telefone está o padre Gabriel Romanelli, reitor da Igreja da Sagrada Família, que lembra que, quando os bombardeios eram mais intensos, o Papa “ligava até várias vezes por dia”. Em uma entrevista de maio de 2024 ao programa 60 Minutes, o Papa Francisco contou como suas ligações telefônicas para a paróquia de Gaza faziam parte de sua rotina diária: “Eles me contam o que acontece lá. É muito difícil, muito difícil. Outro dia eles estavam felizes porque tinham conseguido comer um pouco de carne. O resto do tempo estavam comendo farinha. Eles passam fome, há muito sofrimento”.
Ele queria detalhes sobre as coisas cotidianas, se tinham comida suficiente, se as crianças estavam sendo cuidadas e o que os deslocados haviam comido durante o dia. A última vez que ele ligou foi no sábado, dois dias antes de morrer. Romanelli e o vice-reitor Yousef Assaad disseram que, quando chegou a hora do telefonema do Papa, as crianças correram para a igreja para pedir sua bênção. “É a hora do Santo Padre”, diziam, todas as noites às oito horas.
“Era uma expressão de seu amor, de sua preocupação”, disse o Padre Romanelli, ”uma verdadeira preocupação pelo bem de todos e um sinal do bom pastor. As pessoas se sentem abandonadas, mas a ligação do Papa dava um sinal muito forte de esperança. Ele sempre concluía com uma bênção, fazendo o sinal da cruz e dizendo: muchas gracias, muito obrigado”.
Na segunda-feira, todos se reuniram na igreja para chorar e orar por ele. Ao longo dos meses, o Papa Francisco tornou-se cada vez mais explícito ao criticar a conduta do exército israelense.
Em 29-10-2023, algumas semanas após o início da ofensiva militar, o Papa Francisco havia pedido um cessar-fogo em Gaza, a libertação dos reféns e a entrada de ajuda humanitária para a população civil: a guerra é sempre uma derrota, havia dito durante o Angelus. Menos de dois meses depois, no início de dezembro, havia expressado tristeza com a retomada dos ataques israelenses após um cessar-fogo temporário: “Há uma falta de itens de primeira necessidade em Gaza, é preciso encontrar outras soluções além das armas”, disse ele.
E novamente em 03-04-2024, após o ataque israelense que matou os sete voluntários da World Central Kitchen enquanto eles distribuíam alimentos em uma área designada como segura pelo próprio exército israelense, o Papa Francisco - durante a habitual audiência geral de quarta-feira – havia afirmado: “Não há paz sem justiça. É justamente quando a justiça não é respeitada que nascem os conflitos e, sem justiça, consolida-se a lei do mais forte sobre o mais fraco”.
Em 15-08-2024, ele voltou para denunciar a crise humanitária, pedir um cessar-fogo e a entrada de ajudas. Em janeiro último, diante de relatos de mais crianças morrendo de frio em Gaza, havia dito: “Não podemos aceitar de forma alguma esses bombardeios contra civis, nem que crianças morram congeladas porque os hospitais foram destruídos”.
Algumas semanas após o início da guerra, por ocasião do lançamento de um livro em vista do Jubileu, pediu uma investigação para acertar se o que Israel cometeu e está cometendo em Gaza constitui genocídio.
“De acordo com alguns especialistas”, havia disto o Papa Francisco, ”o que está acontecendo em Gaza tem as características de um genocídio. Deveria ser atentamente investigado para determinar se se enquadra na definição técnica formulada por juristas e organismos internacionais”.
Declarações, entre outras, que lhe renderam duros ataques de autoridades israelenses, que o acusaram de antissemitismo.
No dia seguinte à sua morte, o Reverendo Munther Isaac, teólogo e pastor cristão palestino, disse: “O Papa Francisco falou ao mundo inteiro sobre a difícil situação dos palestinos. Acho que nenhum palestino jamais esquecerá quando o Papa Francisco, em 2014, parou seu carro, saiu e rezou no muro de separação que separa Jerusalém de Belém - um momento que tocou a todos nós e continuou a nos falar por anos. As posições do Papa Francisco sobre a Palestina eram uma extensão de sua teologia e de seu cuidado pastoral: cuidado com os marginalizados e as vítimas de injustiça”.