17 Março 2025
"Certeau talvez nos deixe apenas a indicação de sermos um pouco diabólicos? A tentação de parar neste gesto e, poucos meses depois do centenário do seu nascimento, fazer uma hagiografia do herege é forte. No entanto, é preciso resistir e conseguir dar continuidade com sua obra ao necessário diálogo crítico que é devido ao legado de um clássico".
O artigo é de Diana Napoli, escritora italiana, publicado por Avvenire, 16-10-2024.
Uma conferência na Pontifícia Universidade Gregoriana investiga o imaginário que foi construído ao longo das décadas em torno da figura, à primeira vista heterodoxa, do jesuíta francês, considerado em sua época uma “dinamite”. Hoje acontece a conferência “Michel de Certeau: Pensando na modernidade” e Diana Napoli explica o significado da nomeação e o legado que o jesuíta francês deixa 100 anos após seu nascimento e quase 40 após sua morte.
Há dois textos fictícios em que Michel de Certeau (1925-1986) aparece. O primeiro, O Santuário Estava Vazio, escrito pelo Pe. Virgilio Fantuzzi (1937-2019), membro do Colégio de Escritores de La Civiltà Cattolica, é um pequeno conto teológico, publicado em 1975 na revista Carte segrete, que tem como protagonista o historiador Henri Brémond (1865-1933). Encontramos Certeau na figura de "Michel, um jovem discípulo de coração sincero, de olhar penetrante, o futuro amigo de Foucault e Lacan, de Barthes e Kristeva, o investigador dos mitos, o destruidor dos ritos e das catedrais, aquele que publicaria, muitos anos depois, um panfleto intitulado O grau zero do sentimento religioso na França" (título sob o qual se esconde o conhecido Cristianismo em Fragmentos).
Foto: Michel de Certeau | Arquivo Avvenire
O segundo assemelha-se a uma “entrevista impossível”, para usar o título da famosa emissão radiofónica da RAI transmitida entre 1974 e 1975, que podemos ler na revista mensal Jesus de junho, na qual o jornalista e sociólogo Piero Pisarra entrevista Certeau. Quem conta como, em sua época, ele era considerado uma "dinamite" das instituições do conhecimento, ele se entrega a algumas considerações sobre o presente, fala sobre o TikTok e como a Companhia de Jesus é “polivalente”, assim como o Beaubourg, observado de um café próximo enquanto ele está sendo reformado.
Essas duas aparições do “personagem” Certeau são extremamente fiéis ao imaginário que se construiu ao longo das décadas em torno da figura, à primeira vista heterodoxa, do jesuíta francês, autor de uma obra, como assinalou o sociólogo Éric Maigret, interessada ao mesmo tempo por Inácio de Loyola, pelos fundamentos teóricos da historiografia e pelos leitores do semanário Nous Deux. Para a mesa redonda de hoje na Pontifícia Universidade Gregoriana, “Michel de Certeau: Pensando a Modernidade”, juntamente com Martin Morales, diretor do Arquivo Histórico da universidade jesuíta, e Davide Lampugnani, pesquisador da Universidade Católica, escolhemos um tema que nos permite percorrer a obra de Certeau em toda a sua complexidade.
Certamente Certeau não elaborou uma teoria da modernidade; mas desde os místicos do século XVI até Freud, de Américo Vespúcio ao Maio francês, ela nos mostrou seu "reverso", os derrotados, os protestos e, finalmente, como lemos na Invenção do Diário, o "fim necessário para que se pudesse escrever sobre ela". Seu caminho, portanto, que nos faz adivinhar uma história quando ela já está terminada, mais do que nos dar uma teoria, nos convida a pensar sobre ela e a nos questionar, porque ao transitar entre seus escritos somos confrontados com o fim e as contradições de uma experiência do mundo, o moderno, do qual, no Ocidente em que vivemos, somos herdeiros epigonais, pois, confiando em nosso jesuíta, "uma leitura" nada mais é do que "mil maneiras de decifrar nos textos o que ele já nos escreveu".
Se do ponto de vista estritamente histórico a modernidade coincide – seguindo a Fabula mistica – com o silêncio da voz de Deus e a fragmentação da unidade cristã, pela qual o herege se torna ministro de outra Igreja, do ponto de vista filosófico ela é encenada como o espetáculo da ruptura da relação entre as palavras e as coisas. É neste "oceano da palavra progressivamente disseminada, universo sem fronteiras e sem ancoragem", como diz Certeau em A invenção do cotidiano, que "o indivíduo nasce como sujeito porque perde seu lugar". Paralelamente à reflexão sobre uma subjetividade “fraca”, por um lado habitada pela falta e obrigada a negociar com a ausência, por outro ávida por reencontrar o “lugar” que perdeu, nada tranquilizada por ser o ponto cartesiano de Arquimedes, Certeau aprofunda-se numa análise teórica sobre a natureza e o sentido da instituição.
Em diálogo com Michel Foucault e Pierre Bourdieu, ele sublinha as facetas mais perversas da relação entre instituição e sujeito no quadro da "utopia fundamental e generalizada do Ocidente moderno", nascida da perda de uma Paola identitária, de poder escrever e produzir-se como se escreve uma página em branco e se produz um texto escrito. Entre as décadas de 1960 e 1970, Certeau voltou a abordar essa relação, no contexto de profundas transformações que marcaram irremediavelmente a crise das instituições herdeiras de uma lógica moderna, centralizadora e essencialmente tecnocrática, numa sociedade organizada em termos rizomáticos. Observando e analisando seu próprio tempo, Certeau descreveu táticas e estratégias para reinventar, na vida cotidiana, a relação entre sujeito e instituição, convidando-nos, de alguma forma, a sabotar esta última por dentro, a transformá-la em espaço, a zombar dela, a aceitar o reconhecimento e o "lugar" que ela nos garante, mas depois, uma vez abandonada a boa sala de estar, a zombar dela nas "cozinhas".
Em certo sentido, é a operação política que ele realiza contra a instituição do conhecimento ao escrever A Possessão de Loudun, sobre um famoso caso de possessão do século XVII. Quanto mais o historiador permanecia em silêncio, reproduzindo no texto longos extratos dos arquivos, mais sua presença se tornava ambígua e, apesar da massa de documentação selecionada, a única certeza era que "a história nunca é certa".
O respeitado historiador Emmanuel Le Roy Ladurie, ao analisar o livro, não pôde acusar Certeau de ter analisado ou escolhido mal as fontes. Contudo, ele não conseguiu descobrir quem estava falando: nem o autor do texto, nem mesmo o teólogo ou o homem da Igreja, nem mesmo os protagonistas da história, podendo apenas concluir, um tanto indisposto, que Certeau havia escrito o livro mais diabólico do ano.
Certeau talvez nos deixe apenas a indicação de sermos um pouco diabólicos? A tentação de parar neste gesto e, poucos meses depois do centenário do seu nascimento, fazer uma hagiografia do herege é forte. No entanto, é preciso resistir e conseguir dar continuidade com sua obra ao necessário diálogo crítico que é devido ao legado de um clássico.