14 Março 2025
“Passamos a vida produzindo coisas, bens ou objetos nos quais o próprio conteúdo da vida é sacrificado. Somos o próprio rosto do trabalho morto”, escreve Ilán Semo, historiador, professor na Universidade Iberoamericana, no México, publicado por La Jornada, 13-03-2025. A tradução é do Cepat.
O primeiro emprego de Henry David Thoreau, estudante excepcional na Universidade de Harvard, foi dar aulas na escola pública da cidade de Concord, Massachusetts. Era 1837. Suportou duas semanas. Considerava inadmissível o castigo corporal aos alunos, com quem realizava longas caminhadas. O relatório emitido pelas autoridades sobre sua breve estadia na escola o descreveu como “uma ameaça à disciplina escolar, em particular, e um perigo à ordem pública, em geral”.
Depois, a vida o conduziu por muitos caminhos. Thoreau foi muitos homens ao mesmo tempo: agrimensor, fabricante de lápis, filósofo, viajante, poeta, ativista civil e escritor. Sobretudo, escritor: a literatura moderna deve a ele uma riqueza de clássicos. Sobre sua formação, basta dizer que foi o discípulo dileto (e mais protegido) de Ralph Waldo Emerson, o artífice de algumas das prosas mais penetrantes do século XIX.
Em 1845, para se concentrar em sua escrita, mudou-se para uma cabana solitária que ele mesmo construiu, localizada na floresta que circunda as margens do Walden Pond. Um tempo depois, Nathaniel Hawthorne escreveu sobre o lugar: “É a coisa mais próxima do paraíso que conheço”. Em 1846, Sam Staples, o cobrador de impostos local, exigiu que ele pagasse seis anos de dívidas. Thoreau se recusou por sua oposição à escravidão e à guerra contra o México. Foi um dos poucos estadunidenses que se solidarizaram com o povo do Sul. Acabou preso por uma noite e saiu livre - contra a sua vontade - graças ao favor de um admirador anônimo que liquidou sua dívida com o escritório de impostos.
Dessa “insurreição individual” data um de seus textos clássicos, A Desobediência Civil, que no século XX influenciaria muitos movimentos de não violência, alguns esperançosos com os princípios do autogoverno. Manteve-se na floresta trabalhando e escrevendo em estrita solidão. Não para se encontrar com a natureza, mas para se perguntar pela natureza que o habitava. Dessa experiência nasceu Walden: a vida nos bosques, um dos textos que inicia a longa marcha rumo à consciência ecológica. Sobre sua filosofia - e, em particular, a riqueza de sua prosa -, o poeta Robert Frost escreveu: “Supera tudo o que tivemos na América”.
Dessa filosofia, vale destacar a parte que se refere à relação entre trabalho e vida. Em seus diários, essa relação é examinada não simplesmente como um capítulo da economia política, mas da “economia da vida”. Assolado pelas formas modernas de trabalho (fabril, produtivista, rotineiro), Thoreau sugere aprofundar a equação que dirime a falta de expectativas do trabalho que produz objetos alheios à nossa existência, “objetos inertes, maquínicos”, que gradualmente “castram” a força da nossa vontade. O problema não está na questão sobre o desempenho - e suas derivas -, mas nos custos que ele impõe à própria vida. A este respeito escreve Thoreau: “O custo de uma coisa é a quantidade de vida que deve ser dada em troca dela, imediatamente ou por um período de tempo”.
Diferentemente de outras teorias, esta propõe pensar o valor das coisas não tanto (ou não somente) pela proporção de seu preço ou o uso que lhes é dado, mas pela quantidade de tempo de vida que empregamos para obtê-las. Assim, teremos trabalhado para alcançar as receitas que são necessárias parar consumir os bens básicos (com a expectativa de consumir cada vez mais, mesmo que seja necessário trabalhar mais), mas nisso gastamos o tempo que poderíamos empregar para fazer da vida algo com sentido próprio.
Phillipe Gross intui que esta é uma visão que distingue entre proveito e benefício. Que proveito obtenho de estar com os filhos e a família, ou com os amigos, de cuidar da saúde ou me dedicar à minha vocação livre? “O proveito - escreve Gross - é nulo: nada foi produzido que possa ser vendido” ou que me retribua algo em troca. Mas é esta atividade aparentemente estéril que, ao contrário do trabalho que ocorre em um escritório, uma fábrica ou um comércio em que “eu não sou eu” (Thoreau), pode levar a uma vida sob o benefício da pergunta se me satisfaz ou não.
Passamos a vida produzindo coisas, bens ou objetos nos quais o próprio conteúdo da vida é sacrificado. Somos o próprio rosto do trabalho morto.
Qual é o sentido de trabalhar para descobrir que o produzido levou todas as energias da nossa imaginação e individualidade? Nisto, a mente e o próprio corpo foram sacrificados. Porque o primeiro apontamento de que estamos nesta prisão aparece quando se descobre que nossos corpos foram submetidos ao estado geral de docilidade. E o que os chefes nas fábricas, comércios ou instituições de hoje exigem? Exigem docilidade. Docilidade dos corpos, docilidade das opiniões, docilidade dos gestos. O verdadeiro sinal da hegemonia atual é a docilidade psíquica e física.