07 Março 2025
A temática da Campanha da Fraternidade 2025 "mostra nesse ano que a conversão de que necessitam todos os fiéis tem que ser integral, ou seja, não basta uma prática apenas para se dizer que houve uma conversão ecológica, mas, da mesma forma que o despertar para a realidade da casa comum mostrou que tudo está interligado, também é necessário descobrir que outros aspectos precisam mudar".
O artigo é de Geraldo Luiz De Mori, SJ, professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte.
“Recusaram-se, todavia, a dar atenção; deram de ombros e endureceram os ouvidos para não ouvir. Tornaram seu coração duro como o diamante, para não ouvir a instrução e as palavras que o Senhor do universo, lhes dirigira pelo seu Espírito, por intermédio dos antigos profetas” (Zc 7,11-12a).
A Igreja católica iniciou, em 05-03-2025, mais um período quaresmal, que a prepara para celebrar o mistério central da fé cristã: a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os 40 dias desse período são considerados propícios para “rasgar os corações” e não as “vestes”, como diz o profeta Joel na leitura proposta para a liturgia do dia com o qual é iniciada a caminhada quaresmal (Jl 2,13). Os 40 dias remetem ao tempo que Jesus esteve no deserto, jejuando, sendo tentado, após ter sido batizado. Evoca ainda os 40 dias em que Elias caminhou pelo deserto até o monte Horeb, no qual encontrou-se com o Senhor, após ouvi-lo passar numa brisa suave (1Rs 19,12) e aos 40 anos da travessia do povo eleito pelo deserto, antes de ingressar na terra prometida (Ex 15-40). O deserto não é somente um lugar em que a vida é difícil, mas, no imaginário de Israel, ele evoca a preparação para a aliança, sendo, portanto, lugar de revelação. Lembra também as tentações sofridas pelo povo, e como Deus, com paciência, manifestou sua misericórdia.
No Brasil, desde 1964, ou seja, há 61 anos, nesse período se realiza a Campanha da Fraternidade. Trata-se, provavelmente, da principal expressão da pastoral de conjunto da Igreja do Brasil, tão valorizada pelo episcopado nacional a partir do Concílio Vaticano II. Os temas escolhidos para as Campanhas da Fraternidade ao longo desse período sempre evocam aspectos que demandam uma conversão pessoal e comunitária. Além de afetarem a dimensão litúrgica, com cantos próprios, subsídios para homilias, os temas das Campanhas da Fraternidade são aprofundados em grupos de reflexão, na catequese e nas pastorais e movimentos, suscitando muitas iniciativas importantes que traduzem uma tomada de consciência da questão proposta, que pode levar à conversão.
Ao longo desses mais de 60 anos, temas ligados ao meio ambiente ou ao “cuidado da casa comum”, como tem sido chamado pela Encíclica Laudato si’, têm sido recorrentes nas Campanhas da Fraternidade. Segundo alguns estudiosos, a questão da ecologia é a que mais foi abordada no período da Quaresma pela Igreja do Brasil. Apesar disso, mais uma vez, a questão socioambiental volta ao centro da preocupação da Igreja. Muitos poderiam se perguntar: mas por que voltar a essa problemática, uma vez que já foi trazida tantas vezes? Muitos profetas do Antigo Testamento se faziam a mesma pergunta. Por que, apesar de tantos apelos à conversão, ainda insistir chamando à conversão? O profeta Zacarias traz a imagem da dureza do “diamante” para falar do coração do povo eleito (Zc 7,11). O profeta Ezequiel, consciente dessa dureza, diz que Deus arrancará o coração de pedra e colocará um coração de carne no seu povo (Ez 36,26). Talvez essa imagem possa ajudar a entender por que a Igreja do Brasil insiste mais uma vez com a temática relacionada ao meio ambiente. E essa temática mostra nesse ano que a conversão de que necessitam todos os fiéis tem que ser integral, ou seja, não basta uma prática apenas para se dizer que houve uma conversão ecológica, mas, da mesma forma que o despertar para a realidade da casa comum mostrou que tudo está interligado, também é necessário descobrir que outros aspectos precisam mudar.
A dificuldade em converter-se ao cuidado da casa comum se expressa de muitas maneiras no dia a dia de cada fiel: na forma como utiliza a água, no lixo que produz, no modo como o descarta, sem contar as formas coletivas, como a indiferença com relação aos espaços comuns, e, mais grave ainda, causas maiores, que envolvem interesses de grandes corporações, como o caso da exploração predatória associada à mineração ou do uso de agrotóxico, envenenando fontes, aquíferos, rios. Somente quem passou por tragédias como as de Mariana e Brumadinho sente na pele os efeitos de uma visão irresponsável do modo como muitos se relacionam com o meio ambiente. É verdade que os grandes responsáveis pela destruição da casa comum são os donos das grandes mineradoras ou do grande agronegócio, mas isso só acontece porque há omissão da maioria da população, da qual fazem parte os fiéis que se dizem cristãos. Um exemplo disso neste momento da história do Brasil é a tentativa, por parte da Petrobras, de prospecção e exploração da Margem equatorial da Amazônia, acreditando que lá exista muito petróleo, uma vez que na outra margem, ou seja, na Guiana e na Venezuela, foram descobertas imensas reservas. Mesmo governos tidos como progressistas parecem cegos diante da ameaça que esse tipo de exploração representa para a região.
A motivação para mais uma Campanha da Fraternidade que aborda o tema do meio ambiente não se deve, porém, somente a essa dificuldade em converter-se de fato ao cuidado do mundo bonito que Deus deu ao ser humano, mas por outras razões. A primeira, que é importante recordar, são os dez anos da publicação da Encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, certamente um divisor de águas na compreensão que a Igreja passou a ter da importância de se propor uma ecologia integral, que supõe uma conversão integral. 2025 também é o ano de comemoração dos 800 anos do Cântico das Criaturas, escrito por São Francisco de Assis, ícone de uma compreensão de que tudo está interligado, que o ser humano não é só irmão e irmã do ser humano, mas também do conjunto da criação, como a água, o sol, a lua, a terra, o lobo, a morte, como cantou de modo tão profundo o “Pobre de Assis”. Finalmente, mas não sem a menor importância, o Brasil abrigará no fim do ano a 30ª Cúpula das Nações Unidas sobre o meio ambiente, a COP30, que se realizará em Belém. Esse evento, de alcance universal, tem se tornado uma das principais iniciativas do conjunto da humanidade em busca de uma convivência mais amigável, mais sustentável e menos predatória do meio ambiente.
Como viver esse tempo “favorável”, como diz Paulo na leitura proposta na Quarta-feira de Cinzas? As práticas quaresmais, como o jejum, a oração e a esmola devem certamente permear a existência de todos os fiéis, pois o processo de conversão não é resultado apenas do esforço humano, embora conte com ele.
Nesse sentido, o jejum é a expressão de que, com a ajuda de Deus, é possível dominar tantas formas de falta de domínio, de si mesmo, nas relações mais próximas e na relação com o mundo e a casa comum.
A oração é a prática que mostra que com a força do Espírito do Senhor é possível avançar no processo de humanização, que, para os fiéis cristãos, coincide com o de cristificação, ou seja, deixar formar em cada um a imagem do verdadeiro humano, que, apesar de passar pela tentação, pelo sofrimento e pela morte, é vitorioso e pode, com seu Espírito, tornar vitorioso quem nele crê.
Enfim, a esmola, mais que dar uma quantia de dinheiro ou um auxílio para quem vive em situação de precariedade, também precisa ser “política”, ou seja, beneficiar não somente uma pessoa, mas o conjunto de uma coletividade.
No caso preciso da Campanha da Fraternidade de 2025, o benefício é para o conjunto da humanidade, pois quanto mais se vive a conversão integral pedida pelo tema proposto pela Igreja para este ano, mais se conseguirá assegurar uma melhor qualidade de vida para muitos, pois sem um meio ambiente sustentável, o mundo bonito que Deus criou, vai se tornando cada vez mais inóspito e impossível de dar vida.