05 Fevereiro 2025
Contrato para o desenvolvimento do projeto foi assinado em outubro, mas Estudo de Impacto Ambiental ainda não foi analisado pelo Ibama.
A reportagem é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 02-11-2024.
Enaltecida pela possibilidade de mudar a matriz econômica do Rio Grande do Sul e levar o estado a outro patamar de logística, a construção do Porto Meridional de Arroio do Sal é uma obra, na mesma medida, desejada por setores econômicos influentes e criticada e vista com desconfiança por pesquisadores e ambientalistas. O contrato para a execução do projeto foi assinado no último dia 18 de outubro pelo ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, durante cerimônia na sede da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs). A medida autoriza a exploração de instalação portuária na modalidade de Terminal de Uso Privado (TUP).
A construção prevê investimentos de quase R$ 1,3 bilhão, destinados à movimentação de granel sólido, granel líquido e gasoso, carga geral e conteinerizada, e a criação de mais de 2 mil empregos diretos e quase 5 mil indiretos.
O projeto do porto no litoral norte é principalmente uma demanda de empresários da região serrana do RS que, atualmente, precisam embarcar seus produtos nos portos de Rio Grande, no sul do estado, ou em Imbituba, em Santa Catarina. Apesar do contrato recentemente assinado, o futuro do projeto ainda está em disputa. Isso porque o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) elaborado por empresa contratada pelo empreendedor ainda está em curso e, quando pronto, será analisado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável por essa tarefa em empreendimentos com influência para além do nível local, como são os portos oceânicos.
Segundo Costa Filho, a “obra transformará a matriz econômica do Rio Grande do Sul, alinhada à política de desenvolvimento econômico do governo Lula. As oportunidades de trabalho abrangem diversos setores, desde a construção civil até funções administrativas e de suporte”, disse durante a assinatura do contrato. Costa Filho ainda reforçou que com a conclusão do projeto, a produção logística gaúcha será impulsionada significativamente, abrangendo granéis líquidos e sólidos e um aumento expressivo no volume de contêineres, consolidando o estado como protagonista no desenvolvimento portuário brasileiro.
Também presente na cerimônia, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, definiu o porto de Arroio do Sal como fundamental não só para a parte do PIB do RS localizada na região da Serra. “Muitas empresas que exportam e que hoje têm alto custo de logística, vão ganhar competitividade. Isso significa gerar empregos. Isso significa atrair mais investimentos”, projetou.
O entusiasmo dos ministros do governo federal e dos empresários presentes no ato na Fiergs, todavia, encontra resistências em outros segmentos da sociedade civil e da academia. Tatiana Silva da Silva, vice-diretora do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que nunca houve acesso aos detalhes do projeto. Por isso, diz que a análise possível de ser feita, do ponto de vista dos impactos ambientais da obra, é somente para impactos potenciais esperados para qualquer instalação portuária. A real magnitude dos efeitos somente poderá ser conhecida quando for entregue o Estudo de Impacto Ambiental, previsto para janeiro de 2025. Ainda assim, ela considera estranha a assinatura do contrato sem a entrega do documento, elaborado pela empresa DTA Engenharia.
“Antes de haver essa entrega, a gente só vai falar de coisas que talvez aconteçam ou vão acontecer com certeza, só que a gente não sabe ainda em qual grau”, explica a vice-diretora do Instituto de Geociências da UFRGS.
Por ser um porto off-shore, ela explica que o primeiro efeito esperado decorre de um processo chamado de “deriva continental”. Tatiana conta que na costa do litoral do RS há uma migração de sedimentos que ocorrem no sentido sul-norte, seguindo o fluxo da corrente marinha. Ao construir uma estrutura no mar que bloqueia esse fluxo, ela explica que a tendência é que a praia na parte ao sul do porto aumente, enquanto a praia na parte ao norte sofra erosão.
A professora destaca que, em boa parte do litoral norte gaúcho, as ruas operam como um “sangradouro”, ou seja, um curso d’água, fazendo com que o cordão de dunas tenha erosão. “Se já se perdeu um pouco da capacidade de proteção costeira em função do cordão de dunas ser afetado por outros processos, se há ainda uma componente que aumenta a erosão da praia, somado a um evento extremo, pode sim aumentar o nível de vulnerabilidade principalmente das residências na beira da praia”, avalia, se referindo ao trecho da orla que ficará ao norte do porto.
Tatiana também enfatiza que sempre que o padrão das águas é alterado, acontecem mudanças na vida da flora e da fauna local. “Para ter a instalação do porto, vai ter um efeito imediato em função da dragagem e da obra, que pode ser mais ou menos dependendo de como será feito, onde será feito e quais são as quantidades de sedimentos que vão ser envolvidos.”
Cerimônia de assinatura do contrato para a execução do Porto Meridional de Arroio do Sal. Foto: Eduardo Oliveira
Envolvido com o assunto do porto de Arroio do Sal há bastante tempo, desde quando surgiram as primeiras possibilidades de sua construção, há mais de dois anos, o Instituto Curicaca tem forte atuação no litoral norte há mais de 20 anos, acompanhando pesquisas sobre conservação de espécies migratórias e integrando o conselho do Refúgio da Vida Silvestre da Ilha dos Lobos.
Coordenador técnico da entidade, Alexandre Krob destaca ser comum baleias francas usarem o território entre Arroio do Sal e Torres para amamentar seus filhotes e seguir viagem em direção ao norte, assim como há grande fluxo de toninhas (golfinhos), tartarugas, além de lobos e leões marinhos que circulam em torno da Ilha dos Lobos.
Krob diz que o começo do empreendimento foi cercado de “nebulosidades” que apontavam para uma perspectiva eleitoreira. Há cerca de um ano e meio, o Instituto Curicaca fez uma denúncia no Ministério Público Federal (MPF) tratando dos possíveis riscos à biodiversidade que o porto traria. O órgão então convocou uma reunião com o Ibama, a Prefeitura de Arroio do Sal e os empreendedores do projeto. Na ocasião, o MPF entendeu que as questões trazidas pela entidade ambientalista deveriam constar no processo de licenciamento do porto. Desde então, o processo segue aberto, ao mesmo tempo em que está em curso o licenciamento ambiental.
O Termo de Referência elaborado pelo Ibama para guiar o licenciamento ambiental foi avaliado pelo Instituto Curicaca, o qual identificou uma série de problemas. “Deixamos para fazer o enfrentamento técnico dentro do processo de licenciamento. Então a gente vem aguardando”, comenta Krob, reconhecendo que sempre houve grande predisposição política para que o projeto avance.
Ainda assim, ele recorda que a Portos RS, a algum tempo atrás, chegou a se posicionar contrária à construção da obra por falta de fundamentação logística. “Em função de haver o porto de Rio Grande muito bem estruturado e o Porto de Imbituba, também muito bem estruturado, os investimentos justificáveis, em termos de logística, seriam melhorar as condições de ambos os portos e o escoamento rodoviário para suprir a demanda”, pondera o coordenador do Curicaca, lembrando a manifestação feita à época pela Portos RS.
Ele ainda critica o que chama de “licenciamento desagregado”, ou seja, quando determinado projeto é licenciado por partes e não de maneira conjunta. Cita como exemplo o ramo de energia, quando há primeiro um licenciamento para a geração de energia e depois outro licenciamento para a subestação e um terceiro licenciamento para a transmissão. O ambientalista defende que o processo deve ser um só, de modo a escolher os melhores locais para as obras e diminuir os impactos ambientais. “Há um impacto cumulativo que não é considerado no licenciamento e a gente há muito tempo critica a forma como o Ibama e a Fepam conduzem isso porque o licenciamento deveria considerar todo o conjunto”, afirma.
No caso do porto em Arroio do Sal, a situação, prevê Alexandre Krob, deve se repetir, considerando que o licenciamento do porto em si demandará outras obras complementares, como uma ponte que atravessa a Lagoa de Itapeva e uma alteração significativa no fluxo da estrada Rota do Sol (cujo licenciamento, na época, já foi complexo por cruzar três unidades de conservação).
“Não tem como fazer o licenciamento desse porto sem considerar o impacto das outras estruturas que são necessárias e complementares”, afirma. Ele defende que o MPF entre com uma ação para suspender o licenciamento do modo como está sendo feito.
O coordenador do Instituto Curicaca define que o Estudo de Impacto Ambiental é uma “caixa preta”. Apenas o Termo de Referência é conhecido de antemão até haver a entrega do estudo um ano depois, quando ocorre então a análise do órgão licenciador e a posterior audiência pública. “A gente vai ter um estudo que só vamos conhecer no momento em que ele for anexado no processo, por enquanto não tem nada. O que posso dizer a respeito do estudo? Nada. Posso dizer a respeito do Termo de Referência que está norteando o estudo, e que ele tem fragilidades”, afirma.
A coordenadora do Instituto de Geociências da UFRGS também observa com preocupação a pressão que o porto causará na rede viária das estradas da região, tanto na Rota do Sol (que liga o litoral norte com a região serrana) quanto na BR 101 e na Estrada do Mar. Para ela, se o projeto do porto se concretizar, será preciso haver um grande investimento em infraestrutura para dar conta do aumento do volume de tráfego na região.
Questionado pela reportagem do Sul21 sobre a assinatura do contrato antes da análise do Estudo de Impacto Ambiental, o Ministério de Portos e Aeroportos explica que a autorização para o empreendimento é a primeira etapa do projeto. “O documento assinado no último mês, chamado de contrato de adesão, é um instrumento jurídico no qual permite que o interessado privado possa desenvolver o seu projeto. Nessa etapa se faz necessário, pelo operador, a apresentação do termo de referência ambiental, documento este apresentado pela empresa”, diz o Ministério.
A pasta do governo federal destaca que o licenciamento ambiental é necessário para o início da execução das obras, conforme prazos previstos nos normativos do Ibama diante das fases de implantação do projeto. “Ou seja, para iniciar os trabalhos práticos, o operador precisa reunir todas as autorizações necessárias e regidas em normativas”, conclui.
Entre as fragilidades do Termo de Referência apontadas por Alexandre Krob estão a não consideração de impactos importantes na biodiversidade, principalmente de espécies migratórias, e a subestimação de impactos sobre o trabalho dos pescadores artesanais. A área da costa usada por esses pescadores costuma ir desde Passo de Torres, na divisa com Santa Catarina, até Tramandaí (por vezes até perto de Rio Grande), região que passará a ter fluxo de navios com a instalação do porto. E há ainda os impactos do retroporto (área onde ficam os depósitos das cargas que serão embarcadas ou desembarcadas) nas regiões de restinga, também com alta biodiversidade.
Outro problema levantado pelo ambientalista é a autorização da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) para o transporte de produtos sólidos e líquidos no futuro porto. O problema, nesse caso, deve-se ao fato da estrada Rota do Sol ter sérias restrições para o transporte de produtos químicos e tóxicos. “Isso demonstra o quanto a questão da Rota do Sol e suas limitações ambientais são colocadas em jogo em função de interesses políticos”, alerta Krob.
Por sua vez, Tatiana Silva da Silva, joga luz sobre uma questão que tem sido pouco discutida: o deslocamento dos benefícios e dos prejuízos sociais e econômicos entre a cidade de Rio Grande, onde fica o maior porto do RS, e Arroio do Sal. Afinal, ela salienta que parte das cargas que hoje vão para a cidade na região sul do estado, irão para o novo porto. A professora da UFRGS avalia que, se Arroio do Sal pode ter ganhos socioeconômicos, a cidade de Rio Grande terá perdas.
Com a experiência de ter trabalhado no programa de monitoramento do porto de Rio Grande e atualmente ser coordenadora do programa de gestão ambiental do porto da Capital, ela questiona a real vantagem de haver um novo porto em Arroio do Sal, considerando todos os prós e contras. Tatiana teme que haja o empobrecimento da região de Rio Grande, um território que já sofre com dificuldades sociais e econômicas, além de acreditar que a demanda comercial possa continuar sendo bem atendida tanto pelo porto no sul do estado, quanto pelo porto de Imbituba.