19 Dezembro 2024
"Paralelamente à ofensiva do Hayat Tahrir al-Sham, que derrubou o regime de Assad, as milícias do Exército Nacional Sírio (SNA) avançaram no Norte: financiadas pela Turquia, são em grande parte paramilitares com passado jihadista, que se destacam pelas violências e extorsões nas regiões sírias controladas por Ancara. Após a retirada das SDF de Manbij, uma cidade de maioria árabe no lado ocidental do Eufrates, um cessar-fogo negociado pelos EUA na semana passada trouxe os milicianos islâmicos de volta a Kobane", escreve o cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Il Manifesto, 18-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Inverno de 2014: combates em Kobane, com as defesas curdas esmagadas entre o avanço do Isis e a fronteira turca, patrulhada por militares complacentes com os jihadistas. A Síria pós-Assad também nasce em Kobane, sitiada mais uma vez, dez anos após a decisão de Obama, pressionado pela opinião pública de meio mundo, para intervir ao lado daqueles que se mostravam capazes de resistir à disseminação de um terror que parecia imparável. O mesmo que vendia no mercado de escravos as meninas curdo-yazidis que sobreviveram ao genocídio. O mesmo que, meses antes, havia exibido como um aviso na entrada de Azaz, entre Aleppo e a Turquia, quatro cabeças cortadas de curdos, inaugurando a temporada dos degoladores. Os curdos, mal armados, pareciam então uma brigada de autodefesa camponesa.
No entanto, a situação se modificou rapidamente: chegaram voluntários e voluntárias de todas as partes, e as sevícias dobravam as combatentes atraídas pela vocação igualitária do confederalismo democrático curdo, que também afluíam do outro lado da fronteira. Estima-se que os curdos sírios tenham pago um tributo de 15.000 mortos na campanha contra o Estado Islâmico: até o reduto de Raqqa, até conduzir as forças especiais dos EUA a eliminar o califa al-Baghdadi na fronteira turca. Com os poucos recursos de que dispõem, as Forças Democráticas Sírias (SDF), coluna militar do autogoverno liderado pelos curdos, se viram gerindo dezenas de milhares de prisioneiros que sobreviveram à última batalha do Isis, espremidas entre a recusa dos Estados em aceitar sua repatriação e as contínuas tentativas de rebelião.
Supõe-se que o novo califa do Estado Islâmico esteja agora escondido longe do Levante, provavelmente na Puntlândia somali. Dias atrás, o Isis matou um ministro do Emirado afegão, um herói de guerra talibã pertencente ao clã Haqqani. Na Síria, o Isis está se preparando para encerrar 2024 com mais de 700 ataques realizados, três vezes mais do que no ano anterior: ações cada vez mais frequentes, sofisticadas e não mais limitadas às infraestruturas petrolíferas na região guarnecida pelas tropas estadunidenses posicionadas ao lado das SDF. Os Estados Unidos mantêm 900 homens na área e estão bem cientes de que, hoje como naquela época (a Líbia pós-Gaddafi), os milicianos jihadistas agem recortando para si margens de manobra ao longo das linhas de falha de conflitos existentes: os comandos EUA declararam que atingiram o Isis para fins preventivos cerca de oitenta vezes somente nas duas últimas semanas de caos sírio.
Paralelamente à ofensiva do Hayat Tahrir al-Sham, que derrubou o regime de Assad, as milícias do Exército Nacional Sírio (SNA) avançaram no Norte: financiadas pela Turquia, são em grande parte paramilitares com passado jihadista, que se destacam pelas violências e extorsões nas regiões sírias controladas por Ancara. Após a retirada das SDF de Manbij, uma cidade de maioria árabe no lado ocidental do Eufrates, um cessar-fogo negociado pelos EUA na semana passada trouxe os milicianos islâmicos de volta a Kobane. Uma oportunidade de ouro para a Turquia de Erdogan, que há anos insiste em uma “faixa de segurança” de 22 milhas ao longo da qual operar dentro da fronteira síria contra “os terroristas do PKK”: assim, as SNA romperam o cessar-fogo e os turcos começaram a desmantelar o muro na fronteira de Kobane, amontoando invasores e artilharia. O objetivo é varrer o autogoverno curdo a leste do Eufrates, tomando 120 km de fronteira.
Ao fazer isso, a Turquia se declara pronta para reconhecer a campanha anti-Isis na Síria e puxa todos os cordões que controla na região, incluindo as facções curdas tradicionalistas e os clãs políticos que governam a região autônoma do norte do Iraque: os chamados “curdos bons” protegidos por Ancara. Enquanto isso, os líderes “terroristas” do Rojava aceitam a nova bandeira da revolução síria e apelam a Trump, pedindo que ele detenha Erdogan: não está claro se Washington permitirá que os turcos tenham o espaço aéreo de que necessitam para atacar.
Por sua vez, a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, prestou homenagem a Kobane e ao Rojava, pedindo a Erdogan que respeitasse a soberania síria, enquanto a Itália fica em silêncio.
Os líderes das milícias pró-turcas foram a Damasco em busca de aquiescência ao novo homem forte, al-Julani, que de fato não parece propenso a uma visão descentralizada ou federal da nova ordem política síria. Os novos líderes certamente não são simples emissários de Ancara, mas sobreviveram por anos à sombra da fronteira turca. As contas entre as diferentes facções revolucionárias estão abertas e são complexas, pelo menos desde que Assad liberou islamistas e jihadistas a fim de envenenar os poços da revolta contra o regime.
A questão curda abrange toda a região do Oriente Médio. Ela nos fala não apenas da Turquia e da Síria, mas também dos e das militantes do movimento Mulher Vita Liberdade, que o Irã persegue até dentro das cidades iraquianas, obrigando a fugas em barcaças até a costa da Calábria, em meio a naufrágios e prisões sob a acusação de transporte ilegal. Ao lado dos curdos, vimos outras minorias sírias se mobilizarem nos últimos dias, inclusive armênios que temem a limpeza étnica já vista em Nagorno Karabakh.
Resistindo ao terror e construindo uma ordem democrática e igualitária em meio a infinitas dificuldades, os curdos nos ensinaram a perseverança. Hoje não se fala apenas da traição da sua causa, mas também da traição da nossa.