31 Outubro 2024
No passado dia 24 de outubro foi celebrada a missa fúnebre do teólogo Gustavo Gutiérrez na Basílica do Santíssimo Rosário, de Lima. Publicamos a homilia do arcebispo local, D. Carlos Castillo Mattasoglio, na ocasião.
O texto é de Carlos Castillo Mattasoglio, publicado por Settimana News, 29-10-2024.
Queridos irmãos e irmãs,
estamos aqui como testemunhas de uma história muito concreta, que em nossas vidas foi atravessada pela Cruz do Senhor e pela sua Ressurreição, graças à palavra, ao incentivo, à companhia, ao testemunho e ao ministério do nosso querido Gustavo. Seria estranho se aqui fôssemos pessoas que não fossem tocadas pelo poder da sua palavra, porque é a Palavra do Senhor. Gustavo, pela experiência humana que viveu, sempre soube, com grande espírito de disponibilidade diante do Senhor, desde muito jovem, deixar-se questionar − como dizia: “perguntar” − por aquela palavra que ele sempre colocou no centro da vida do ser humano.
Aqui temos pessoas de comunidades cristãs, padres, religiosos, bispos, mas também temos uma população de fiéis e alguns amigos de Gustavo, que não necessariamente se enquadram no horizonte altamente restrito que às vezes temos da Igreja, com limites claros e fechado em si mesmo. Gustavo, desde muito jovem, sempre esteve em contato com pessoas que pertenciam a diferentes horizontes, e soube dialogar com elas, fazer amigos e reconhecer uma presença do divino em tudo o que é humano.
Por isso estamos todos aqui hoje: cristãos, amigos da Igreja, inclusive alguns amigos muito distantes que talvez não acreditem, mas que sentiram em suas vidas a santa humanidade do nosso querido Gustavo. E viemos agradecer a Deus pela sua vida, e à Vida pela sua vida, porque sabemos que quando alguém marca a nossa vida, a única coisa que nos resta é ser grato, e viver uma vida grata. Isto é o que significa ter fé, não tanto para acreditar em Deus, mas sim para confiar que Ele acredita em nós e que, através do seu dom gratuito de amor, podemos deixar-nos guiar pelo Espírito para nos guiar, pequenos aos poucos, de forma criativa, ao serviço do significado profundo que este dom nos dá.
Ser cristão significa acolher o dom, não criar para nós mesmos imagens de Deus que depois se tornam uma série de práticas e imaginações, e então, portanto, confessar o que criamos. Ser cristão significa acolher na nossa vida o dom misericordioso de Deus, representado fundamentalmente pelo dom generoso de Jesus como dom do Pai; significa deixar-se levar pelo que Gustavo chamou de “a gratuidade do amor de Deus” e que hoje o Papa Francisco reiterou em sua encíclica sobre o Coração de Jesus. O Papa chama de “dom gratuito”, e Gustavo chama de “gratuidade”. do amor de Deus.
Se não somos amados livremente, a vida não tem sentido, porque a vida só teria o sentido “limitado” que podemos dar-lhe, que é sincero como forma de encontrar algo na existência, mas é insuficiente, porque nós o criamos. E o que Gustavo nos ensinou é aceitar o dom da revelação; e se ele não foi explícito, como muitos de nós que estamos aqui, e nos tornamos ministros como ele, outros que, talvez, não entendessem muito, sentiram a sua presença como um dom, e assim Jesus entrou em suas vidas. E sendo seus amigos, continuam a seguir o mesmo caminho que percorremos como Igreja, de serviço aos pobres, de justiça e de compromisso com a vida.
Por isso, no Evangelho que lemos (Lucas 12,49-53), Jesus, cheio da alegria do Espírito Santo, agradece a Deus, porque o Senhor do céu e da terra escondeu estas coisas aos sábios e instruídos e revelou-os aos mais pequenos. E esta é a decisão do Senhor, esta é a escolha do Senhor, este é o fundamento da opção preferencial pelos pobres.
É verdade que esta opção preferencial sempre esteve presente na história da Igreja. Mas é importante que padre Gustavo tenha tomado isso como base para caminhar neste mundo, em que a injustiça, a pobreza, a marginalização, a intolerância, a ditadura, o desprezo e os maus-tratos querem se impor. Fizeram-no em muitas épocas, mas também se impõem na nossa, em que temos o dever de humanizar a humanidade com os mesmos sentimentos de Jesus Cristo.
Esta “opção para os mais pequenos” é chamada em grego “nepioi” (νηπιοι), que significa “nem um sopro”, isto é, os pequenos são aqueles que não falam, aqueles que não dizem, “nem um sopro”. Mas quando Deus lhes revela o seu amor, eles aprendem a falar e a dizer coisas, aprendem a ser críticos, aprendem a abrir horizontes na história, que nos permitem transformá-la e melhorá-la à imagem do amor de Deus, tornamo-nos irmãos universais, aprendemos a dialogar com todos.
E gostaria, nesse sentido, de dizer que Gustavo teve uma experiência humana que lhe permitiu ter acesso a todos, principalmente aos que mais sofrem. Bruno Mari, seu amigo marista que trabalhava na embaixada em Roma e era muito amigo do cardeal Juan Landázuri (arcebispo de Lima de 1955 a 1989), me contou que Gustavo gostava muito de futebol (na juventude ele havia sido goleiro). Então, um belo dia, aconteceu com ele a mesma coisa que aconteceu com José Carlos Mariátegui: foi atingido por uma bola na perna e descobriu-se que ele tinha osteomielite. A partir desse momento sua vida mudou, pois na escola tinha que passar todo o tempo na cama e seus colegas lhe traziam bilhetes para aprender as aulas que davam em San Luis de Barranco.
Ele me contou – uma vez que estávamos no trem em Roma – que seus amigos o cercaram, trouxeram anotações, mas como estavam espalhadas, Gustavo leu todas e depois fez um resumo; então vieram fazer as perguntas para ele, para que ele acertasse na prova. E isso lembra a todos nós, principalmente aos “Unecos”, e a nós que formamos diversas comunidades com Gustavo, como ele nos ensinou a ouvir nossas experiências nas sessões plenárias e, no fim, a lançar seus famosos “dados”. Não se tratava de apertar os parafusos, porque esse não era o seu estilo, mas de saber resumir e tirar da riqueza que emergiu da experiência novas ideias para continuar caminhando na fé.
E aí ele nos fez reconhecer a grande importância da teologia. Ou seja, Gustavo entendeu que a teologia é um instrumento de caridade, de serviço e de solidariedade porque, se não valorizarmos as nossas experiências, que obras de caridade faremos se não soubermos como é o sofrimento da pessoa, nem articular uma linguagem capaz de falá-la e dizê-la de modo a saber do que se trata?
O Papa Francisco, quando afirmou que a Igreja é chamada a ser como aquela das origens, uma Igreja sinodal, disse três coisas: caminhar, juntos na história e diante dos sujeitos históricos (esta é a última coisa que esquecemos). Não basta caminhar juntos, porque a comunidade pode fechar-se, caminhar juntos diante do Outro e dos pobres, especialmente diante do sofrimento humano, dos desafios da história. É isto que nos permite saber o que o Senhor nos quer dizer, ouvindo a linguagem dos últimos. Se não os ouvirmos, não saberemos do que se trata e imporemos instituições de caridade que inventámos (tal como às vezes inventamos religiões).
A novidade da fé cristã reside precisamente no fato de o Deus que se entregou a nós ser um Deus que nos fala a partir do sofrimento, do servo sofredor que Jesus encarnou, depois de ter sido anunciado durante séculos por um enorme precedente histórico, que Israel tinha vivido, e que Isaías nos conta nos seus quatro cânticos.
Hoje também devemos saber ouvir o que as pessoas vivem, e quando o Papa insiste em ouvir, refere-se a uma Igreja que caminha junta, mas não avassaladora, não investindo, não impondo, mas no ziguezague de se encontrar com outras pessoas; e muda de forma dependendo da vida, dos problemas e das dificuldades dos pobres. E foi isso que Gustavo nos ensinou: andar em ziguezague, vai aqui, vai ali, como Jesus quando caminha. Jesus caminha com os seus discípulos e ensina-os, mas cada pessoa que se aproxima dele, e que também encontra, muda o seu caminho. Curar o leproso não é a mesma coisa que curar o surdo-mudo ou a samaritana, sempre muda. A Igreja está em movimento permanente, mas não num movimento de evolução totalitária, mas sim numa evolução de idas e vindas, de complexidade e de problemas que devem ser resolvidos, pouco a pouco, com a imaginação e com a inspiração do Senhor. Foi isso que Gustavo nos ensinou.
E, claro, quando encontramos esses “outros” em lugares diferentes, voltamos com nossas próprias experiências, e como o Senhor, que se reuniu com seus discípulos em um lugar isolado para descansar um pouco e conversar, também nos permitiu compreender não apenas o que vivíamos, mas também o que havíamos recebido.
Por isso também lhe devemos algumas frases preciosas, como a que ele cunhou numa fórmula: “opção preferencial pelos pobres”, isto é, decisão preferencial pelos pobres. Gustavo também conseguiu cunhar algumas frases que nos permitiram entender como se movimentar com as pessoas. “Como estaríamos bem se não fosse a realidade”, disse ele, e esta expressão é uma forma simples de nos compreendermos. Talvez estejamos bem, mas... a realidade chama! Este é um dos problemas mais graves da nossa fé cristã no Peru, porque pregamos uma religião na qual temos a nossa própria língua, entendemo-la como católicos e acreditamos que outros a compreenderão, e por isso a impomos. E é por isso que as pessoas seguem seu caminho, graças a Deus! Porque as pessoas não são bancos, onde depositamos os nossos conhecimentos e as nossas doutrinas, mas sabemos, como cristãos, que o Senhor está presente em cada ser humano.
E hoje o Santo Padre afirma-o na sua encíclica Dilexit nos: o amor gratuito de Deus faz de todos seus filhos e não custa, não cobra. Como dissemos em jargão (como Gustavo nos ensinou a falar): “Se a graça não é de graça, é uma pena”. E a gratuidade, o amor gratuito, significa que todo ser humano é filho de Deus, mesmo que não o saiba. E devemos escutar a presença deste Deus nas suas ambiguidades, mas sobretudo nas riquezas e maravilhas de cada pessoa.
Gustavo, portanto, é para nós um sinal do que é a delicadeza humana, porque ele tinha muitos amigos, como os temos agora, e também em todo o mundo. E soube introduzir esta perspectiva de opção preferencial pelos pobres, até torná-la universal, mesmo que isso lhe custasse a vida. E por isso foi muito maltratado: comunista, isso é marxismo! Mas, na realidade, era puro Evangelho. E distorceram-no estupidamente, tão estupidamente que hoje vemos os resultados de todos esses ataques. É por isso que não estamos aqui para rir disto, mas para dizer: devemos mudar a nossa forma de viver como cristãos.
Temos uma necessidade profunda daquela fé cristã que se assume como fé, não só para salvar a alma individual, mas todo o ser humano e toda a história. A Abraão, o Senhor não disse: “Saia da tua terra e vá para o céu”. O Senhor lhe disse: “Saia da sua terra e vá para a terra que eu lhe mostrarei, para que você seja uma bênção para os povos”. E é isso que a Igreja é hoje, e Gustavo nos ensinou essa forma de evangelizar.
Gustavo também nos contou algo muito importante: “Vamos evangelizar e saímos evangelizados”. Isto é o que aprendemos com ele e o que todos podemos verificar. Quando você evangeliza, você sai evangelizado; quando você vai buscar lã, você sai tosquiado. E esta é a Igreja que se deixa ir ao mundo, porque o Espírito a move. O Espírito é algo muito mais profundo do que a simples repetição de fórmulas e a obrigação de decorar o catecismo. O catecismo é muito útil, coloca as coisas em foco (um pouco como os resumos do Gustavo, esclarece algumas coisas). Mas o normal é que não vivamos repetindo o catecismo, vivamos falando dos nossos problemas e descobrindo Deus no centro deles.
E nesta humanidade que está à beira do colapso, tendo gerado um mundo caracterizado pela expansão abrangente do individualismo moderno, temos a ajuda de que a nossa fé está bem fundamentada no Evangelho; e temos outra ajuda, graças aos progressos que fizemos nos últimos anos nos estudos teológicos: estamos a entrar num momento em que podemos redescobrir aquele que foi o fundador da modernidade e que não foi ouvido, aquele que é citado na última página da “Teologia da Libertação”, Blaise Pascal, que nos desafia a todos a criar um mundo em que não haja só cálculo, o cálculo que se faz desde o nascimento, porque quando nascemos temos que calcular o espaço e o tempo e usar as categorias, mas isso não é a única coisa. Quando estamos no ventre materno, somos acolhidos e vivenciamos os fluidos livres do amor materno. Em teologia podem ser pensados simplesmente como o reflexo daquilo que nos é revelado pelo amor gratuito de Deus que, imparavelmente, vem e está por trás de tudo o que fazemos e vivemos, mas que uma vez nascido tendemos a esquecer, porque é sutil , invisível, delicado. Blaise Pascal chama esta experiência uterina, pré-natal e gratuita de “espírito de refinamento”.
E temos um mundo que esqueceu o espírito de delicadeza e se dedicou apenas à geometria. Devemos nos esforçar novamente, para reordenar o que só foi feito com um espírito geométrico baseado na sistematização da ambição, da loucura, do dinheiro e do desespero.
Gustavo deixa-nos portanto um legado: o legado de preencher este mundo com a gratuidade mais refinada, que certamente nos custará a cruz do Senhor (como custou a ele). Mas é o próprio Jesus quem nos conta esta memória, porque é Jesus quem tomou a Cruz, perdoou e, como disse o Papa Francisco, “é pregado não com a força dos pregos, mas com a força da sua infinita misericórdia”.
Em Deus não há medo, e este é o lema da fé cristã: “no amor não há medo, porque o medo procura o castigo, mas o amor expulsa o medo”. Obrigado, Gustavito, porque você nos ensinou a banir o medo de nossas vidas, sendo fiéis ao Evangelho.
Que o Senhor abençoe a todos nós hoje. E agora permitimos que o Santo Padre Francisco expresse as suas palavras sobre Gustavo: “Hoje penso em Gustavo Gutiérrez, um grande homem, um homem da Igreja que soube calar quando teve que calar, que soube sofrer quando chegou a sua vez de sofrer, que soube trazer tantos frutos apostólicos e tanta teologia rica. Penso no Gustavo, vamos todos orar por ele juntos. Que ele descanse em paz".
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Gutiérrez: um grande homem da Igreja. Artigo de Carlos Castillo Mattasoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU