10 Outubro 2024
O artigo é do teólogo chileno Jorge Costadoat, teólogo, jesuíta chileno, publicado por Religión Digital, 09-10-2024.
O Concílio Vaticano II adquiriu uma importância enorme e decisiva para a Igreja latino-americana. Um dos frutos latino-americanos do Concílio foi a maturidade com que a Igreja daqueles anos realizou, no seu próprio contexto histórico, o aggiornamento promovido por João XXIII. Gustavo Gutiérrez Merino OP. Ele é um ícone nesse processo. Ninguém se enganará se o chamarem de “Pai da Teologia da Libertação”, embora hoje saibamos que esta teologia tem vários pais e mães, e teólogos pobres que foram os primeiros intelectuais do seu cristianismo.
A recepção do Vaticano II na América Latina foi adulta em vários aspectos. A hierarquia eclesiástica teve a coragem - graças ao método que tomou da Gaudium et spes - de abrir-se aos sinais do seu tempo, de deixar-se questionar pela palavra de Deus expressa nas vozes de multidões de trabalhadores, camponeses e aqueles amontoados nas grandes cidades, e adaptar a sua forma de ser à práxis que assumiu para responder ao que lhe era exigido.
Este formidável esforço de recepção local do Concílio foi concomitante ao nascimento de uma nova versão da Teologia Latino-Americana. A Teologia Latino-Americana conseguiu significar duas coisas antes e depois do Concílio. Nas palavras de Juan Noemi, “antes do Vaticano II predominava um exercício teológico para o qual o contexto espacial e temporal constituía uma exterioridade, um acidente que não era considerado em si mesmo como determinante da teologização”[1]. A teologia da Igreja do continente antes do Vaticano II era, na realidade, meramente europeia, destinada à formação de seminaristas.
Por outro lado, a partir do momento em que se criou entre nós uma teologia pensada para pensar os acontecimentos históricos em que a Igreja estava enraizada, a Teologia Latino-Americana conseguiu identificar-se sem mais delongas com a Teologia da Libertação.
Este acesso ao “uso da razão” da Igreja na América Latina – aqui é válida a analogia das crianças quando começam a pensar por si mesmas – abriu um espaço de tensão, e por vezes de conflito, com uma inveterada dependência intelectual do continente e a Igreja Latino-Americana. Nas palavras de Gustavo Gutiérrez: “A Teologia da Libertação é uma das expressões da idade adulta que a sociedade latino-americana e a Igreja nela presente começam a alcançar nas últimas décadas. Medellín tomou nota desta idade avançada e isto contribuiu fortemente para o seu significado e alcance histórico”[2]. Assim, a convergência em Medellín da hierarquia eclesiástica e dos teólogos da nascente Teologia da Libertação deve ser considerada um marco de uma Igreja no caminho da autoconsciência e da autonomia que distingue aqueles maiores de idade forçados a responder a novas circunstâncias. si mesmos e diante de si mesmos com criatividade. A recepção do Concílio na América Latina foi sem dúvida original.
Sabemos que a Teologia da Libertação não foi inteiramente criativa no seu método. Mas quando a Igreja aplicou um método indutivo para ouvir os próprios sinais dos tempos, resultou uma grande novidade na história do cristianismo, nomeadamente, ter concluído e proclamado que Deus escolhe os pobres.
Esta convicção e formulação teológica típica da Igreja na América Latina e no Caribe excede em muito o cuidado que a Igreja sempre teve pelos pobres. Esta opção, numa Igreja que praticou a reflexão sobre a sua própria experiência histórica, confrontada com uma miséria injusta e antiga entre os oprimidos, equivale a incorporar os pobres no Credo.
Para os católicos latino-americanos – representados oficialmente – o valor teológico dos pobres passou a constituir a prova decisiva da fidelidade ao Evangelho. Não se diga que a opção de Deus pelos pobres constitui um fato novo da fé. A novidade é que a opção pelos pobres torna explícito o mistério da cruz de Cristo. Os pobres, para a Teologia da Libertação, representam os crucificados na história e através deles o Cristo crucificado salva os seres humanos sem exclusão. Neste sentido, a contribuição teológica da Igreja Latino-Americana tornou-se duradoura e essencial também para outras igrejas.
Nos anos que se seguiram a Medellín, não sem o apoio dos pontífices, mas também com a oposição dos bispos, das conferências episcopais e da Congregação para a Doutrina da Fé, a Teologia da Libertação Latino-Americana desenvolveu-se de uma forma sem precedentes. Nele é possível distinguir diversas correntes: algumas admitiam maior influência do marxismo e outras, como a Teologia do Povo Argentina, nenhuma; uma teologia feminista e uma teologia indígena foram desenvolvidas. Todos estes têm em comum a opção pelos pobres e uma práxis de libertação. Se em seus primórdios a Teologia Latino-Americana foi identificada por sua intenção libertadora, progressivamente foi reconhecida, além disso, por tornar própria a cultura, a religiosidade e a condição de povos e sujeitos emergentes.
Os teólogos da libertação acreditavam que faziam teologia de uma maneira diferente. Gutiérrez entende desta forma:
“Por tudo isto, a teologia da libertação oferece-nos, talvez, não tanto um novo tema de reflexão, mas antes uma nova forma de fazer teologia. A teologia como reflexão crítica da práxis histórica é, portanto, uma teologia libertadora, uma teologia da transformação libertadora da história da humanidade e, portanto, também, da porção dela – reunida na Ecclesia – que confessa abertamente Cristo. Uma teologia que não se limita a pensar o mundo, mas que procura posicionar-se como um momento no processo através do qual o mundo se transforma: abrindo-se – no protesto contra a dignidade humana espezinhada, na luta contra a desapropriação do grande maioria dos homens, no amor que liberta, na construção de uma sociedade nova, justa e fraterna – ao dom do reino de Deus” [3].
Esta teologia, este movimento teológico da Igreja latino-americana pós-conciliar, produziu mártires. Seria muito longo mencionar todos eles. D. Romero os representa.
Este livro consiste na primeira parte de minha tese de doutorado concluída na Pontifícia Universidade Gregoriana em 1993. Ao publicá-lo não fiz nenhuma correção, exceto para diminuir algumas referências desnecessárias. Naquela época eu queria fazer uma tese só em Gustavo Gutiérrez. Os escritórios do Vaticano não me permitiram. Através das autoridades da Faculdade de Teologia disseram-me que se tratava de um autor vivo. Logo, não escrevi a tese por autor, mas por tópico [4].
Nesses mesmos anos tive a oportunidade de conversar durante três horas com Gustavo na Villa Cavaletti. Fui contatado por Rossano Zas Fritz, um jesuíta peruano, um grande amigo, que o conhecia. Não sei onde ele encontrou forças para uma conversa tão longa, pois estava lecionando o dia todo e estava com febre.
Este livro é uma homenagem a um cristão formidável que abriu caminho para muitos de nós que nos esforçamos para reconhecer que o Reino de Deus pertence aos pobres e, consequentemente, são eles que mais conhecem o cristianismo.
[1] Juan Noemi, “Traços, imperativos e desafios”, em Teologia Latino-Americana (Santiago: Centro Teológico Diego de Medellín, 1998) 1.
[2] Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação: perspectivas, Siga-me, Salamanca, 1972. 31.
[3]Gutiérrez, Teologia da Libertação, 72. 6
[4] Jorge Costadoat, O Deus da vida. O “discurso sobre Deus” na América Latina. Pesquisa sobre algumas das principais obras de Gustavo Gutiérrez, Ronaldo Muñoz, Jon Sobrino e Juan Luis Segundo, PUG, Roma, 1993.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como dizer aos Pobres que Deus os ama? Homenagem a Gustavo Gutiérrez. Artigo de Jorge Costadoat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU