03 Outubro 2024
Entre o conforto das mentiras e a dureza da verdade, temos que poder escolher a verdade também nas urnas.
O artigo é de Eliane Brum, jornalista e escritora, publicado por El País, 02-10-2024.
Nas grandes e pequenas campanhas eleitorais na maior parte do mundo, como as eleições presidenciais nos Estados Unidos e as eleições municipais no Brasil, o aquecimento global e a perda da biodiversidade aparecem em uma posição irrelevante ou estão completamente ausentes dos debates. Mas, mesmo que não seja abordado, o colapso do funcionamento do planeta é possivelmente o que tem maior impacto na política e está diretamente ligado à ascensão da extrema-direita tanto no norte como no sul globais. A questão é: o que têm os partidos e os políticos para oferecer quando as temperaturas mudam rapidamente, as secas e as inundações se multiplicam, os eventos extremos se tornam mais frequentes e graves e os cientistas alertam que estamos em território desconhecido?
A extrema-direita, que engolfou a direita liberal tradicional, tem uma resposta clara: um regresso a um passado que nunca existiu. Ou seja: um passado de glórias e sem conflitos, onde se estabelece o que diz respeito a cada gênero e raça, com indiscutível supremacia masculina e branca, onde só restam famílias de homens com mulheres e pessoas LGBTQIA+ permanecem no armário ou em tratamento médico. Essa suposta imutabilidade social e cultural corresponderia à imutabilidade da trajetória de vida: nascer, crescer, estudar, formar uma família tradicional, conseguir um emprego estável, montar seu próprio negócio ou herdar o negócio da família e morrer sabendo que tudo se repetirá nas gerações futuras.
O que a extrema-direita promete é obviamente mentira, pois esse passado só foi possível para uma minoria e deixou de fora a maioria, atolada na pobreza, na miséria ou na escravatura. E os conflitos foram intensos e custaram a vida dos mais vulneráveis. É também um grande engano porque não existe imutabilidade num planeta em mutação. Mas a extrema-direita corrompeu a verdade e decidiu inventar tanto a realidade do passado como a realidade do presente. Vende a uma população assustada a mentira de que toda a insegurança prevalecente não é responsabilidade do modo colonial capitalista que, entre tantas outras formas de violência, transformou a natureza numa mercadoria e alterou o clima do planeta, mas sim de uma suposta “degeneração” moralidade produzida pela esquerda.
E os da esquerda? Eles estão numa encruzilhada e alguns nem sequer entendem isso. Existem os velhos esquerdistas, que no Brasil têm como expoente Luiz Inácio Lula da Silva, que continuam acreditando que a única coisa que as pessoas querem é ter carro na garagem, churrasco com cerveja no fim de semana e casa própria com muitos eletrodomésticos. E o que é pior: ele acredita nisso quando o petróleo e a indústria da carne estão entre os principais vilões do aquecimento global. E depois há as novas esquerdas, que chegaram ao século XXI e percebem a gravidade do momento. Mas o que eles podem oferecer?
O político ou a política mais honesto deve dizer aos seus eleitores que votar não é suficiente. Além de votar muito melhor, para tirar os negacionistas ativos ou passivos dos cargos de poder, é preciso participar muito mais ativamente nas decisões. Os parlamentares e governantes devem ser pressionados diariamente para adotarem medidas emergenciais de mitigação e adaptação, mas também para deterem as grandes corporações que estão devorando o planeta. Eu diria que você tem que assumir muito mais responsabilidade pelas decisões que são tomadas no presente, porque delas depende não só a sua vida, mas também a dos seus filhos e netos, não daqui a um século, mas no próximo ano. O político mais honesto teria de dizer que a vida já está pior e que vai piorar muito. E eu diria que você precisa aprender a perder. Mudar os hábitos alimentares e a forma como nos locomovemos e entre cidades é apenas o começo. Não basta reciclar os restos do consumo, é preciso consumir muito menos.
Entre a mentira que dá o conforto da esperança, mesmo que falsa, e a verdade que exige sacrifícios e perdas, quem vota num político que diz a verdade? A resposta é: tem que ser nós. Temos que votar naqueles que dizem a dura verdade, mas estão dispostos a lutar. Este é o início de uma mudança que tem de ser muito rápida, porque a paisagem do planeta está a ser rapidamente transfigurada. Políticas e políticos que dizem que o que é mais difícil de ouvir e ainda mais difícil de fazer é onde reside a nossa oportunidade para um amanhã.
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O que a esquerda pode oferecer num mundo em colapso? Artigo de Eliane Brum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU