12 Setembro 2024
“A ‘pegada ecológica’ é, na realidade, uma ‘pegada civilizatória’ (ou pegada patriarcal, ou de cuidado), denunciando a falsa autonomia do sistema econômico, ou seja, a falsa autonomia do trabalho ‘produtivo’ que não poderia ser desenvolvido se as atividades de cuidados restauradores não existissem simultaneamente. Ou seja, existe uma dependência real da atividade econômica dos cuidados prestados principalmente pelas mulheres”. A reflexão é de Giulia Costanzo Talarico, socióloga e ativista ecofeminista, em artigo publicado por El Salto, 05-09-2024. A tradução é do Cepat.
Neste verão pudemos ouvir muitos números “recordes”, não apenas nos Jogos Olímpicos, mas também sobre as temperaturas, infelizmente, visto que o aquecimento global atingiu mais uma vez um marco desastroso. No dia 22 de julho, o Serviço Europeu de Mudanças Climáticas Copernicus registrou uma temperatura média diária global de 17,16 °C, superando o recorde anterior de 17,08 °C, registrado no dia 6 de julho de 2023.
Se isto não fosse suficientemente preocupante, a organização internacional Global Footprint Network relata que os países atingem o Dia da Sobrecarga da Terra mais cedo todos os anos; em 2024, esta data foi 1º de agosto. Este é um dado que começou a ser calculado em 1970 e serve para alertar sobre a insustentabilidade do ritmo de consumo atual, pois é a data em que foram consumidos todos os recursos que o planeta pode gerar num ano. Com outras palavras, este ano conseguimos esgotar os recursos planetários em sete meses. Porém, esta é uma média entre países. Na realidade, a data varia de país para país e é calculada a cada ano dividindo a biocapacidade do planeta pela pegada ecológica da humanidade, e posteriormente multiplicada pelos 365 dias do ano.
A WWF explica que, do ponto de vista econômico, seria como “esgotar o saldo disponível e entrar no vermelho”. Em média, a nível mundial, seria necessário 1,75 planeta para satisfazer a procura de recursos naturais. Vale ressaltar as diferenças mencionadas acima entre os países, entre as suas economias. Não é por acaso que países como os Estados Unidos requerem 5 vezes mais recursos do que o seu território é capaz de gerar num ano; a Espanha consome mais 2,5, enquanto outros países não chegam a “gastar” o seu limite anual.
Um estudo da Oxfam Intermón publicado no final de 2023 revela que em 2019 “o 1% mais rico da população mundial foi responsável por 16% das emissões globais de carbono, a mesma quantidade dos 66% mais pobres (5 bilhões de pessoas)”.
Percentagem de emissões de CO2 em 2019. Fonte: Oxfam Intermón, 2023.
Os dados são esmagadores e, além disso, os 10% mais ricos localizados em países de rendimentos altos são responsáveis por 60% das emissões. Além disso, tanto os super-ricos que pertencem ao 1%, como os ricos do decil superior, têm uma influência significativa em termos políticos, uma vez que um terço das principais empresas de comunicação que produzem conteúdos está nas mãos de bilionários privados, como no caso de Rupert Murdoch, cuja família controla a Fox News.
Exemplo de emissões de dois bilionários. Fonte: Oxfam Intermón, 2023.
As catástrofes climáticas estão aumentando e está claro que os responsáveis diretos são os bilionários e, em geral, os países ricos. Com outras palavras, os principais responsáveis pelas mudanças climáticas não sofrem as suas consequências diretas e encorajam decisões que não apoiam políticas para deter a crise climática ou as desigualdades. Pelo contrário, os países menos responsáveis pelo aquecimento global não apenas sofrem as piores consequências, como também têm menos capacidade de recuperação. Este fenômeno, que afeta principalmente o Sul global, implica também um maior impacto sobre as mulheres, uma vez que as pessoas mais vulneráveis são aquelas que vivem na pobreza, e segundo dados da ONU, 70% das pessoas pobres no mundo são representadas por mulheres.
Neste contexto, é evidente que falar em “pegada ecológica” é redutor e insuficiente, sendo um indicador ecológico que representa a situação de insustentabilidade calculada como “a área de território produtivo ou ecossistema aquático necessário para produzir os recursos utilizados e para assimilar os resíduos produzidos por uma população definida com um padrão de vida onde quer que esta área esteja localizada”. Desta forma, embora o conceito faça alusão à pilhagem de recursos levada a cabo pelos países ricos, ainda não proporciona uma visão mais exaustiva da situação, ou seja, não mostra a forma parasitária de exploração e não reconhece a indispensabilidade das necessidades humanas apoiadas por cuidados não remunerados.
Neste sentido, Anna Bosch, Cristina Carrasco e Elena Grau apontam [no livro El trabajo de cuidados] que se trata na realidade de uma “pegada civilizatória” (ou pegada patriarcal, ou de cuidado), denunciando a falsa autonomia do sistema econômico, ou seja, a falsa autonomia do trabalho “produtivo” que não poderia ser desenvolvido se as atividades de cuidados restauradores não existissem simultaneamente. Ou seja, existe uma dependência real da atividade econômica dos cuidados prestados principalmente pelas mulheres.
O debate sobre a sustentabilidade surge a partir da definição de “desenvolvimento sustentável” do relatório Brundtland (1987), onde se afirma que: “Está nas mãos da humanidade tornar o desenvolvimento sustentável, ou seja, garantir que ele atenda às necessidades do mundo presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”. O conceito é ambíguo, na medida em que indica limites, mas não absolutos; ou seja, aceita a existência de limites, mas mantendo o crescimento econômico. Em 1992, na Cúpula do Rio, a participação de grupos comunitários, movimentos ambientalistas, feministas, ONGs para agir contra a degradação ambiental, promoveu a adoção de um novo conceito de sustentabilidade que incluísse a integração de três tipos de sustentabilidade: ecológica, social e econômica.
Esta abordagem à sustentabilidade “integral” implicou uma crítica da epistemologia hegemônica; no entanto, está igualmente longe de alcançar uma perspectiva verdadeiramente alternativa ou radical. Os aspectos de gênero estão ausentes e continua a apresentar conceitos que estão a serviço da economia capitalista e com uma visão instrumental da natureza, que continua a ser apresentada como um conceito colonial e inscrita num projeto de conquista e exploração que continua a reproduzir uma racionalidade que impulsiona as consequências mais terríveis da globalização neoliberal: um mundo onde uma minoria específica representada por homens ocidentais brancos detém a riqueza e é responsável pela poluição tanto quanto os dois terços mais pobres (ou melhor, empobrecidos) da humanidade.
É por isso que é necessário ter um olhar realmente abrangente que denuncie a violência sistêmica que se materializa em dívidas ecológicas não neutras, ou seja: a dívida ecológica com o Sul global em termos de extração de recursos naturais como meios de produção e também meios de vida dos povos originários; a dívida social pela mais-valia extraída dos corpos e das mentes dos trabalhadores do sistema capitalista; e a dívida “encarnada” de cuidados, isto é, da reprodução não remunerada que fornece valores de uso e regenera as condições de produção, incluindo a futura força de trabalho do capitalismo.
Em particular, como explica Cristina Carrasco, a dívida de cuidados ou “dívida patriarcal” representa a imensa quantidade de trabalho de cuidados e de energias emocionais que as mulheres realizaram ao longo dos últimos séculos para manter a vida, e que os homens realizaram em menor proporção, sendo mais beneficiários do que contribuintes. É possível promover a sustentabilidade ecológica, mas sem levar em conta o modo de reprodução social será à custa de alguém. Se o preço da sustentabilidade ecológica for a dominação patriarcal e colonial, então não há sustentabilidade. Nas análises ecológicas, bem como nas econômicas, ortodoxas, os cuidados não são levados em consideração; o resultado é uma análise incompleta com um claro preconceito de gênero que não visibiliza o elemento que realmente sustenta o sistema, ou seja, os cuidados não remunerados prestados pelas mulheres.
O trabalho dos cuidados é fundamental para a sustentabilidade da vida e tem sido historicamente desvalorizado, da mesma forma que o trabalho de sustentação dos territórios e a manutenção dos ciclos naturais. Visibilizar o papel central do cuidado é essencial, pois é um elemento que não somente sustenta o ecossistema e o mercado, mas tem sido tradicionalmente desempenhado pelas mulheres. Os cuidados são uma necessidade básica e devem ser de responsabilidade coletiva, razão pela qual não pode haver sustentabilidade, nem justiça social, territorial ou climática, sem sustentabilidade da vida.
A crise do coronavírus deixou claro, mais uma vez, não apenas que os interesses do capitalismo global são necropolíticos e que o “vírus é o sistema”, mas também que o cuidado (na forma explorada de uma pegada civilizatória) garante a continuidade da reprodução social, mesmo em situações extremas. A ausência ou incapacidade das administrações locais ou estatais em responder às necessidades coletivas aumenta a situação de vulnerabilidade, especialmente das pessoas em risco de pobreza e exclusão social, entrando num círculo vicioso, dado que a vulnerabilidade implica injustiça social devido ao aumento da insegurança ligada a diversas violências estruturais (econômica, institucional, de gênero, entre outras). O cuidado constitui a forma de sobrevivência coletiva, por isso é essencial uma reorganização que promova a corresponsabilidade ativa, capaz de romper com os mandatos patriarcais e coloniais.
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A minoria que polui o planeta e a dívida de cuidados. Artigo de Giulia Costanzo Talarico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU