07 Setembro 2024
Soledad García Muñoz, ex-relatora especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, conversou com Mongabay Latam sobre os impactos da plantação de dendezeiros na América Latina.
Do ponto de vista dos direitos humanos, García Muñoz fala sobre os impactos das empresas transnacionais em territórios fora dos seus países de origem, sobre fortalecer uma perspectiva de gênero e fazer com que as empresas e os Estados se comprometam a garantir o direito a um ambiente saudável.
A entrevista é de Yvette Sierra Praeli, publicada por Mongabay, 04-09-2024. A tradução é do Cepat.
“Lembro-me que desde a primeira audiência em que tive a oportunidade de participar, a questão das monoculturas esteve muito presente, especialmente pelos testemunhos das mulheres que trouxeram os seus problemas e as suas demandas à comissão”, comenta Soledad García Muñoz ao iniciar a entrevista com Mongabay Latam sobre os impactos da plantação de dendezeiros nos países da América Latina.
García Muñoz iniciou em 2017 o seu mandato na Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ela foi a primeira pessoa a ocupar esse cargo e ficou seis anos à sua frente, até 2023.
Agora, em meio ao seu trabalho como professora do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, García Muñoz fala sobre as monoculturas de dendê, os efeitos sobre os direitos humanos e a responsabilidade social e ambiental das empresas produtoras de dendê nos países da América Latina.
O que está acontecendo na América Latina com a produção de dendê?
Podemos dizer que a América Latina faz parte da tendência de expansão da fronteira agrícola do Sul global. Neste sentido, a produção global de óleo de palma aumentou quase 600% entre 1994 e 2021, o que significa um aumento exponencial do território utilizado para esta cultura. De acordo com a informação disponível, em 2021 havia cerca de 29 milhões de hectares em todo o mundo ocupados por este cultivo e isto porque o consumo do óleo de palma aumentou nos últimos 30 anos, ultrapassando outros óleos vegetais como o óleo de soja.
Neste contexto, as grandes empresas do setor alimentar, na sua busca para reduzir os custos de produção de alimentos ultraprocessados e agrocombustíveis, procuram territórios na América Latina e na África Ocidental, uma vez que nos países que até recentemente concentravam a imensa porcentagem da produção (Indonésia e Malásia) não há mais terra para usar. Na nossa região, os principais países produtores de óleo de palma são a Colômbia, Guatemala, Honduras, Brasil e Equador.
Como o óleo de palma conseguiu ter custos baixos e assim atrair as indústrias alimentícias e de biocombustíveis?
Há muitos fatores envolvidos e têm precisamente a ver com os direitos humanos, que acabam por ser afetados pelo fato dos custos de produção serem relativamente baixos em comparação com os lucros. Até porque o óleo produzido a partir dos dendezeiros é muito versátil e é utilizado para diversos produtos, inclusive biocombustíveis, portanto, é um negócio muito lucrativo. Eu diria que é tão lucrativo quanto perigoso e arriscado para os direitos humanos.
Por que é perigoso e arriscado para os direitos humanos?
Existem inúmeros relatórios que documentam uma relação clara entre as plantações de dendezeiros e as situações de múltiplas violações dos direitos humanos. Os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais acabam sendo afetados. Vemos que há pessoas que são criminalizadas por defenderem os direitos humanos e o seu território. É uma tendência e um padrão que infelizmente está muito difundido na nossa região. Vemos também como o cultivo dos dendezeiros, pela falta de medidas com enfoque nos direitos humanos, tanto por parte das empresas envolvidas nesta indústria como dos Estados, acaba gerando abusos.
Foram identificados padrões muito preocupantes em termos de direitos trabalhistas. Foram detectados casos de trabalho forçado, privação de liberdade dos trabalhadores, bem como casos de despejos forçados com vistas a destinar estas terras para o cultivo de dendezeiros. Há também um risco para o direito a um meio ambiente saudável, que é um direito cada vez mais reconhecido em nossa região, não apenas nas constituições nacionais, mas pelo próprio sistema interamericano e pelo Acordo de Escazú. Por outro lado, observa-se um padrão muito preocupante em relação às populações indígenas, afrodescendentes, camponesas e quilombolas, no caso do Brasil, que são desproporcionalmente impactadas pelas plantações de dendezeiros. Existem muitos relatórios que documentam esses padrões de afetação.
Qual a responsabilidade das empresas nos impactos causados pelas plantações de dendezeiros?
Esta é uma questão muito importante e que está em plena evolução no direito internacional dos direitos humanos. Eu diria que a responsabilidade das empresas é clara e direta, tanto à luz das regulamentações nacionais, como das normas regionais e internacionais em matéria de direitos humanos.
No relatório Empresas e Direitos Humanos: Padrões Interamericanos, elaborado e publicado em 2019, quando eu era relatora especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi determinado que o conteúdo dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente e sua aplicação efetiva pelos Estados envolvem a responsabilidade legal das empresas para evitar abusos ou violações dos direitos humanos. Portanto, no caso das empresas transnacionais, estas devem exercer a devida diligência sobre as atividades das terceirizadas, nas relações comerciais e nas cadeias de valor de abastecimento. Além disso, não devem incorrer em abusos diretos contra os direitos humanos extraterritorialmente [ou seja, em territórios diferentes dos do seu país de origem].
Os Estados, as empresas e outros atores econômicos, como as instituições financeiras internacionais, têm o dever de agir com a devida diligência no âmbito das atividades empresariais e de acordo com as legislações nacionais, interamericanas e internacionais para a proteção dos direitos humanos. Isto envolve a adaptação dos quadros regulatórios para regular as ações das empresas; implementar políticas de proteção em caso de atividades empresariais de risco, como no caso dos dendezeiros; criar estratégias para superar violações generalizadas relacionadas às atividades da indústria e estabelecer ou fortalecer mecanismos de proteção judicial quando ocorrerem violações dos direitos humanos em que as empresas estejam envolvidas, garantindo uma reparação eficaz às vítimas.
Você mencionou que as transnacionais devem ser responsáveis pelas ações das suas terceirizadas. É possível fazer isso acontecer?
Sim, é uma tendência muito clara no direito internacional dos direitos humanos. Por exemplo, no relatório Empresas e Direitos Humanos: Padrões Interamericanos há um capítulo que trata deste tema, de como a responsabilidade internacional de um Estado pode ser comprometida pelos atos de empresas com capital majoritário desse Estado que operam em outros países. E há muitas empresas, inclusive da região, que estão nessa situação. Mas há algumas tendências interessantes em curso. Por exemplo, no Canadá foi criada a figura de um ombudsman para examinar casos de empresas canadenses que realizam suas operações fora do país. Há também um debate contínuo sobre a obrigação das empresas como sujeitos de direito internacional. É um debate em torno de uma iniciativa para criar um tratado vinculativo, para que as empresas respondam internacionalmente pelas violações dos direitos humanos. Esta questão da extraterritorialidade é um debate muito presente.
Uma pesquisa da Mongabay Latam revelou que existem 298 processos abertos em seis países da região contra empresas de produção de óleo de palma por violação de regulamentações ambientais. Por que há tantos casos de reclamações que não são resolvidos?
Existem muitos fatores que explicam este nível de impunidade relativamente às violações dos direitos humanos. Por um lado, temos uma assimetria de poder entre as empresas, os próprios Estados e aqueles que tendem a ser as vítimas das violações, que são frequentemente pessoas e comunidades em situações vulneráveis. Por outro lado, também temos dificuldades no acesso à justiça. Os processos judiciais são difíceis e complexos. Embora na maioria dos países existam defensorias públicas e mecanismos de acesso à justiça, essa justiça nem sempre chega ou chega muito tarde. Os obstáculos são muitos e o resultado acaba sendo a impunidade.
Ao considerar a forma como a fronteira agrícola e de dendê se expande na América Latina e na África, é urgente colocar os direitos humanos e o direito a um ambiente saudável no centro desta discussão. Isto nos deve levar a pensar sobre como responsabilizamos os Estados e as empresas, cumprimos eficazmente as suas obrigações e como quebramos este círculo vicioso da assimetria de poder; como podemos garantir que as pessoas e as comunidades afetadas, em conjunto com os movimentos sociais e as organizações de direitos humanos que são a força motriz das mudanças, conseguem realmente levar as suas vozes e o seu impacto às próprias empresas, que são os atores econômicos que têm o poder.
Como colocar o meio ambiente no centro da discussão?
As resoluções das Nações Unidas são recentes, mas o Sistema Interamericano de Direitos Humanos neste caso foi pioneiro, e a partir do Protocolo de San Salvador, artigo 11, se reconheceu o direito a um ambiente saudável. Agora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos está prestes a emitir um parecer consultivo sobre a questão da emergência climática e, na minha opinião, esta interligação entre os direitos humanos, o direito a um ambiente saudável e os direitos da natureza é a próxima fronteira que não podemos ignorar no contexto em que vivemos.
Um olhar para esta questão tem de nos fazer pensar em diagnosticar e documentar os efeitos sobre os direitos das pessoas, mas também os efeitos sobre estes bens naturais, os ecossistemas e a biodiversidade – que, por exemplo, no caso da Amazônia, é tão preocupante. Isso foi documentado em várias partes do relatório Situação dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas e Tribais da Panamazônia da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e no próprio relatório anual de 2022 da Redesca, onde, em diferentes países, documentamos como as monoculturas impactam o meio ambiente e os direitos humanos de uma forma holística.
A Amazônia é um bioma onde se concentram muitas ações de conservação. Como a indústria do dendê impacta a Amazônia?
Onde existirem monoculturas, encontraremos problemas de desmatamento. E nesta lógica de indivisibilidade, a Panamazônia apresenta uma situação grave em termos do desmatamento de florestas que provém de múltiplas fontes. Estas taxas de desmatamento afetam a biodiversidade e a perda da riqueza da biodiversidade; mas também impactam a deterioração do patrimônio natural e cultural. E se relacionarmos isso com os direitos dos povos indígenas e demais comunidades, vemos que, devido à perda dos seus territórios, eles perdem os seus meios de subsistência e as suas culturas, os seus métodos de alimentação e de organização tradicional.
A principal causa é que o uso do solo muda e o que chamamos de fronteira agrícola se expande através da exploração madeireira. A floresta que é eliminada não é reabilitada; pelo contrário, a eliminação da floresta gera uma degradação ambiental que é irrecuperável e, obviamente, as causas do desmatamento não estão apenas ligadas à indústria do dendê, mas são mais amplas, também estão ligadas à mineração legal, extração de madeira, pecuária, agricultura, projetos hidrelétricos e atividades turísticas. O desmatamento é um fator muito preocupante e urgente de abordar do ponto de vista dos direitos, tendo em conta que o direito a um ambiente saudável não implica apenas cuidar da natureza devido à sua ligação com os seres humanos — no caso dos povos indígenas, é essencial, porque existe uma simbiose entre os povos indígenas e seus territórios –, mas porque é um fim em si mesmo.
Quais os países latino-americanos onde os dendezeiros são cultivados estão em situação mais crítica?
Não posso fazer comparações entre países, mas pelos relatórios que existem e pelo que pude monitorar, os países da América Latina onde foram identificados os maiores impactos negativos são os que lideram este cultivo: Colômbia, Guatemala, Honduras, Brasil e Equador. Vários dos seus relatórios [da Mongabay Latam], numerosas ONGs e organismos internacionais de direitos humanos documentaram isto. Durante meus seis anos como relatora especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, este foi um tema muito presente em nosso monitoramento. O recebimento de informações e reclamações foi constante.
Destes relatórios podemos destacar, por exemplo, o caso do Peru – embora não seja um dos maiores produtores de dendezeiros –, onde a Defensoria Pública relatou tensões entre empresas produtoras de dendê e a comunidade nativa de Santa Clara de Uchunya, em Ucayali, cujos membros lutavam para obter o título de suas terras. Também documentamos o caso da Guatemala, onde um número significativo de comunidades camponesas, afrodescendentes e indígenas enfrentaram riscos de despejo forçado devido aos interesses de empresas com projetos de investimento em monoculturas. No Brasil, pudemos observar como a empresa produtora de dendê, chamada Agropalma, também foi acusada por povos indígenas e quilombolas por ter incorrido em atos de privação de liberdade de trabalhadores e trabalhadoras, trabalho forçado, trabalho infantil, uso excessivo de agrotóxicos e danos ambientais.
Levando em conta os impactos negativos que as culturas de dendezeiros mal manejadas podem causar, qual seria a responsabilidade dos governos?
Na realidade, mais do que dos governos, a responsabilidade pela forma como as empresas ou as atividades empresariais afetam os direitos humanos cabe aos Estados com os seus três Poderes. Os Estados têm a obrigação de respeitar e garantir os direitos humanos e isso implica agir com a devida diligência em relação às atividades de terceiros, como as empresas. Seria importante que as empresas deste setor [dendezeiros] e os Estados que têm de fiscalizar a atuação destas empresas tivessem em conta o direito ao ambiente saudável, à consulta prévia, livre e informada, à não discriminação, e analisassem por que é que esses negócios tendem a prejudicar determinadas populações e não outras.
É muito importante enfatizar a necessidade de os Estados obrigarem as empresas a realizar consultas para a implementação de projetos econômicos, tendo em conta os direitos das comunidades. Os Estados também têm a responsabilidade de não permitir a apropriação de terras por empresas ou atores privados, terras que são posteriormente utilizadas para a pecuária, culturas extensivas e monoculturas, como o dendezeiro.
Acredito também que é importante trazer para o centro da discussão as obrigações decorrentes do Acordo de Escazú. E como a nossa região não é apenas a mais desigual, mas também a mais perigosa quando se trata de defender o meio ambiente, penso que também é muito importante colocar no centro desta discussão a obrigação dos Estados de proteger as pessoas que defendem os direitos humanos no âmbito destas atividades empresariais. Essa também é uma grande dívida e uma necessidade prioritária.
Você disse que desde que iniciou seu mandato como relatora na Comissão Interamericana de Direitos Humanos a questão das monoculturas estava presente e que recebeu depoimentos de muitas mulheres. Existe um impacto particular sobre as mulheres em relação às monoculturas?
Sem dúvida, porque o cuidado da terra também tem uma vertente de gênero muito clara. São as mulheres que de uma forma muito direta se encarregam não só de alimentar, buscar água para as suas comunidades, cuidar e tornar as suas comunidades saudáveis, mas também há muitas mulheres na nossa região que lideram a defesa da terra e dos bens naturais quando há problemas gerados pelas atividades empresariais.
As mulheres, historicamente discriminadas e violadas, tendem a ser as que mais têm a perder, juntamente com outros grupos em situações de vulnerabilidade ou discriminação histórica. É por isso que é essencial olhar para esta questão de forma sensível e holística.
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“A produção de óleo de palma é tão lucrativa quanto perigosa e arriscada para os direitos humanos”. Entrevista com Soledad García Muñoz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU