23 Agosto 2024
Dez meses após uma megaoperação para retirar ocupantes irregulares e milhares de bois da terra indígena Apyterewa (PA), o fogo voltou a queimar no território dos Parakanã. Os focos se concentram em áreas de pasto e segundo especialistas ouvidos pela reportagem são um indício do retorno de invasores.
A reportagem é de Isabel Harari, publicada por Repórter Brasil, 22-08-2024.
Desde o início do mês, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais registrou 82 focos de calor na região, colocando a Apyterewa em 15ª lugar no ranking das terras indígenas que mais queimaram em agosto no país e em 3º no Pará.
“Estamos com medo. Eles [invasores] estão entrando de novo, entram pelos ramais e vão queimando tudo”, conta Xokarowara Parakanã, cacique da aldeia Kanaã, ao se referir as estradas abertas dentro da Terra Indígena - TI pelos ocupantes irregulares.
A queimada do pasto é uma maneira de manter a área pronta para o gado. Esse processo revela, segundo fontes ouvidas pela Repórter Brasil, uma expectativa de retorno da atividade pecuária na região, que é ilegal. Cerca de 60 mil bois foram removidos da terra indígena desde o início da operação, em outubro do ano passado.
Focos de calor na região da Terra Indígena Apyterewa (Reprodução/Florestas & Finanças)
“Boa parte [das queimadas] é para reforma de pasto, é um indicador que o gado vai voltar. Dá pra ver que tem uma mobilização grande no território”, alerta Tarcísio Feitosa, articulador da coalizão internacional Florestas & Finanças. Desde 1988 ele acompanha a situação na Apyterewa e descreve o cenário atual como “grotesco”.
“Por que colocar fogo no pasto? É preciso manter essa área por mais dois, três anos, até conseguir ‘pular’ para dentro de novo. Era muito barato arrendar pasto ali dentro e a operação quebrou esse grande esquema econômico ilegal”, explicou uma fonte ligada à desintrusão.
O fogo também atingiu plantações de cacau. De acordo com os indígenas, isso seria uma forma de impedir o acesso dos Parakanã às lavouras que ficaram para trás após a retirada dos ocupantes irregulares. Em julho, eles denunciaram um ataque de pistoleiros enquanto coletavam o cacau em uma antiga fazenda ilegal. Após o episódio, a Associação Indígena Tato’a, que representa os indígenas, solicitou uma reunião de emergência em Brasília – realizada na última semana.
Para entrar na terra indígena, os invasores atravessam estradas clandestinas de moto e chegam a construir “buchas”, pontes temporárias feitas de terra. Até o momento, não há estruturas consolidadas de moradia ou de suporte para os bois, como cercas e currais. “É ainda um cenário de disputa de domínio pelo território”, avalia outra fonte.
Em Brasília, os indígenas pediram reforço no policiamento do território – que hoje conta com três bases de proteção operadas pela Fundação de Povos Indígenas - Funai. Com isso, esperam ampliar sua presença na Apyterewa com mais ações de fiscalização e a construção de novas aldeias no limite da terra indígena.
“A terra é nossa, mas estamos com medo de entrar. Precisa de mais segurança para fazer a fiscalização. Não queremos nenhum conflito, não queremos perder nenhum parente”, alerta Xokarowara Parakanã.
A Funai afirmou que tem uma “permanente interlocução” com os Parakanã. O órgão indigenista mantém equipes de monitoramento em campo com apoio da Força Nacional e do Ibama, na fase de “pós-desintrusão”. Essas ações “contemplam medidas como a retirada do gado remanescente e o desfazimento de acessos clandestinos”, disse em nota enviada à Repórter Brasil. Leia a íntegra da resposta.
A reportagem também procurou o Ministério dos Povos Indígenas - MPI, que avaliou que a operação teve um “um sucesso significativo”. Entre as medidas para coibir novas invasões, destacou a implementação de um Plano de Gestão Territorial e Ambiental - PGTA e “o monitoramento com a presença constante e permanente de órgãos federais e estaduais como Força Nacional, Ibama, Funai, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e órgãos de segurança do Estado”.
A Apyterewa é reconhecida como território indígena desde 1982, mas só foi homologada trinta anos depois, em 2007. Cerca de 1300 indígenas vivem ali, segundo o último censo do IBGE.
Não é de hoje que os Parakanã pedem a retirada dos invasores de seu território, que se consolidou como o mais desmatado do país. Mas a situação se agravou nos últimos anos.
O avanço da pecuária e, mais recentemente, das plantações de cacau, destruíram cerca de 100 mil dos 773 mil hectares da terra indígena. Investigações da Repórter Brasil revelaram que os bois chegaram a abastecer os frigoríficos da JBS. Na época da publicação da reportagem, a empresa disse que bloqueou as fazendas localizadas no interior da Apyterewa.
A operação de desintrusão teve início em outubro de 2023 após determinação do Supremo Tribunal Federal - STF e foi concluída em fevereiro deste ano. Além dos bois, cerca de duas mil pessoas tiveram que sair da Apyterewa.
Os invasores se concentravam na região conhecida como Vila Renascer, vizinha a uma das bases da Funai. A localidade surgiu em 2016, mas cresceu durante o governo de Bolsonaro impulsionada pelo discurso anti-indígena. A vila chegou a ter postos de gasolina, hotéis e até rede de energia fornecida pela empresa Equatorial, concessionária de energia elétrica do Pará.
A Repórter Brasil acompanhou o começo da operação, marcada por momentos de tensão em campo e nos gabinetes de Brasília. Políticos bolsonaristas e também aliados do governador Helder Barbalho (MDB), apoiador do presidente Lula (PT), pressionaram para que a operação fosse abortada. Em meio à pressão contra a retomada, a Força Nacional matou um dos invasores com um tiro de fuzil.
Depois de meses de tensão, os moradores irregulares foram retirados. Em janeiro o desmatamento chegou a zero: “foi uma conquista”, lembra o cacique Xokarowara Parakanã.
Em março, uma comitiva do governo federal foi até a terra indígena e celebrou o fim da operação com a “entrega simbólica” do território para os Parakanã.
Mas o sossego dos indígenas durou pouco. Para pessoas ligadas à operação, a nova ofensiva não é obra de recém-chegados na região: “não vejo como uma reinvasão, é um processo contínuo”.
Feitosa avalia que existe um movimento coordenado que alimenta as novas invasões. “O fogo não nasce do nada, tem que ter um investimento, uma inteligência por trás”, pondera.
Questionada pela reportagem, a Funai ressaltou que “as invasões em terras indígenas são caracterizadas por um elevado grau de reincidência”. “Deste modo, é fundamental a adoção de medidas dissuasórias, sendo de extrema importância seguir com as medidas de responsabilização dos não indígenas envolvidos em ocorrências ilícitas na área”, diz o texto.
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Invasores colocam fogo em terra indígena mais desmatada do país para manter pastos ilegais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU