31 Julho 2024
O Guia Alimentar para a População Brasileira desempenha um papel crucial na promoção de dietas saudáveis e sustentáveis.
A reportagem é de Elstor Hanzen, publicada por ExtraClasse, 29-07-2024.
Pouco conhecido por consumidores e muito combatido pela indústria, o Guia Alimentar para a População Brasileira resiste como referência para políticas de alimentação e saúde ao promover a dieta saudável e sustentável. Depois de romper com ideias antigas de nutrição, a publicação atualizada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo recomenda mais atenção aos aspectos sociais, culturais e políticos das práticas alimentares e alerta sobre o mal dos produtos ultraprocessados à saúde.
As embalagens coloridas e atraentes nas gôndolas costumam ofuscar o essencial do produto: os ingredientes e o modelo de produção. Essa lógica da indústria dos ultraprocessados do século 21, por sua vez, não é nova. Ela apenas foi aperfeiçoada a partir de uma sentença do alemão Otto von Bismarck no século 19: “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”.
Ignorar os perigos dos ultraprocessados – como salsicha, bebidas lácteas, salgadinhos, bolachas recheadas, barras de “cereal”, refrigerantes, panificados embalados – e a importância das políticas públicas, no entanto, pode cobrar um preço alto para a saúde e o bolso de cada um.
Especialistas afirmam que doenças crônicas não transmissíveis – como obesidade, pressão alta, diabetes – têm relação direta com o consumo desses produtos. Além disso, comidas saudáveis (orgânicos e in natura) cada vez mais caras e os ultraprocessados mais baratos são consequências da falta de regulação do mercado.
Instrumento de relevância nacional e internacional para políticas de alimentação e saúde, o Guia Alimentar para a População Brasileira desempenha um papel crucial na promoção de dietas saudáveis e sustentáveis. A edição revisada comemora uma década neste ano.
A versão de 2014 rompe com ideias antigas de nutrição, dando maior atenção a aspectos sociais e culturais das práticas alimentares e um alerta sobre o mal dos ultraprocessados à saúde. “Descasque mais, desembale menos” é uma das orientações do Guia na sua versão atualizada em 2024.
O documento foi produzido pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) para o Ministério da Saúde, sendo a primeira edição lançada em 2006.
Na edição atual, o Guia joga luz sobre o nível de processamento dos produtos, dando maior transparência para a composição e o modelo de produção dos alimentos. Por isso, ganha destaque a orientação a respeito das circunstâncias que envolvem o ato de comer (como, onde e com quem comer), para além “do que comer”.
Também traz mensagens fáceis de compreender e baseadas em alimentos, não em nutrientes. Entre os pontos práticos, estão orientações de combinação de alimentos, dez passos para uma alimentação adequada e obstáculos que atrapalham o consumo de produtos saudáveis.
“O Guia é didático em explicar essa lógica de pensar os alimentos segundo o nível de processamento e seu propósito. Além disso, mostra como lidar com barreiras à alimentação saudável – a questão da informação, do custo, das habilidades culinárias. Um Guia que conversa não só o que precisa ser feito, mas como que a gente precisa fazer”, relata a pesquisadora do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Inês Rugani.
A coordenadora de pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Ufrgs, Raquel Canuto, ressalta que o Brasil avança no aspecto político quando aprova a nova rotulagem nutricional, que traz um selo frontal com a lupa “Alto em” (açúcar adicionado, sódio, gordura saturada) e debate a necessidade de os produtos prejudiciais à saúde pagarem mais imposto para fazer frente aos custos acarretados ao sistema de saúde.
De acordo com a professora da Ufrgs, historicamente, a indústria usa a estratégia de fazer publicidade voltada às crianças e à redução de preço, visando renovar o público e aumentar a fatia de mercado na periferia. “Claro, esse barateamento vem com uma qualidade cada vez pior, mas com um foco bastante certeiro.” Diferentemente de outros países, no Brasil ainda há um consumo maior de ultraprocessados nas camadas com maior poder aquisitivo. “Hoje, a gente vê que o consumo desses produtos está aumentando principalmente entre as pessoas mais pobres”, alerta.
Uma série de implicações econômicas, sociais e políticas está ligada à cadeia alimentar. Conforme os especialistas, por isso, a produção e o consumo precisam de política pública e regulação, uma vez que causam diversos impactos na vida e na sociedade.
Ao mesmo tempo, com os ultraprocessados superdisponíveis e com preço acessível, alimenta-se de forma saudável, muitas vezes, exige consciência e dedicação. “A gente precisa olhar para o processamento do alimento para fazer escolhas alimentares mais saudáveis com base em evidências. A escolha pode ser uma prática individual, mas gera um impacto coletivo”, destaca Laís Amaral, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).
“Com certeza, comer é um ato político, porque escolher o que comer implica promover diferentes cadeias, diferentes sistemas alimentares”, enfatiza Raquel. Ela exemplifica que, ao escolher de lanche da tarde uma banana, comprada na feira orgânica de um pequeno agricultor, “estou privilegiando um sistema alimentar e não outro. Ao invés de comer essa banana, poderia comer um cereal, tudo mudaria e haveria outra relação”, compara.
Além disso, os alimentos transgênicos vêm, frequentemente, da monocultura e do uso de agrotóxicos. “Isso também leva em conta o uso da terra, a forma como as pessoas são remuneradas, a matriz econômica em que se acredita, se é ou não um sistema econômico viável”, explica a professora da Ufrgs.
A indústria dos processados não dá ponto sem nó e já tratou de abocanhar a parcela da sociedade que opta por não comer carne, os vegetarianos e os veganos. As mesmas empresas que vendem empanado de frango, kibe congelado, carnes, entre outros produtos de origem animal, lançaram no mercado produtos “plant-based”. A tradução do nome significa à base de plantas, porém está longe de ser comida de verdade com alimentos in natura, alerta o Idec. Pelo contrário, muitos produtos desses disponíveis no supermercado são formulações ultraprocessadas.
A composição de um dos empanados de legumes plant-based evidencia essa realidade. “Farinha de trigo enriquecida com ferro e ácido fólico, cenoura, água, couve-flor, brócolis, milho, óleo de algodão, óleo de soja, amido de mandioca, sal, amido de milho, batata, amido modificado de mandioca, cebola, farinha de milho enriquecida com ferro e ácido fólico, glúten de trigo, dextrose, alho, pimenta vermelha, pimenta branca, estabilizante: metilcelulose, aromatizantes: aromas naturais e aroma idêntico ao natural, realçador de sabor: glutamato monossódico”.
De acordo com o Idec, “o rótulo mostra que, além de aditivos usados para deixar os ultraprocessados mais atrativos, como aromatizantes, corantes e estabilizantes, esses produtos dependem das monoculturas de soja, milho e trigo, tal como os demais ultraprocessados de origem animal”.
Em junho, os pesquisadores do Nupens/USP participaram de uma avaliação internacional sobre nível de processamento industrial de alimentos (vegetal versus animal) e risco de doenças cardiovasculares. Segundo a conclusão do estudo, os produtos à base de plantas ultraprocessados estão associados a um risco maior para doenças do coração.
– In natura é aquele ao qual há acesso da maneira como ele vem da natureza. O termo inclui partes comestíveis de plantas (como sementes, frutas, folhas, raízes) ou de animais (ovos, leite).
– Quando baseamos a alimentação em opções in natura ou minimamente processadas, é frequente a necessidade de cozinhar e temperar os alimentos (azeite obtido de azeitonas, da manteiga obtida do leite e do açúcar obtido da cana ou da beterraba).
– É composta por itens do primeiro grupo (in natura e minimamente processados) e conta com a adição de uma ou mais substâncias do segundo grupo, como sal, açúcar ou gordura (conserva de legumes ou de pescado, frutas em calda e queijos e pães do tipo artesanal).
– Alimentos ultraprocessados — que podem ser comidas e bebidas — não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos do primeiro grupo (refrigerantes, bebidas lácteas, néctar de frutas, misturas em pó para preparação de bebidas com sabor de frutas, salgadinhos de pacote, doces e chocolates, barras de “cereal”, sorvetes, pães e outros panificados embalados, margarinas).
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Comer é um ato político: descasque mais, desembale menos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU