27 Junho 2024
"Como dizia o padre Primo Mazzolari, aquela voz continuava a gritar bem alto mesmo quando não estava mais no pescoço de João Batista", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 23-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sempre causou forte impressão aquela cabeça decepada por um golpe de espada, colocada em uma bandeja e apresentada como macabro troféu durante um banquete. É evocada pelo evangelista Marcos (6,14-29) em seu relato da decapitação de João Batista, o precursor de Cristo, uma cena pintada de forma emocionante por Caravaggio em 1608 durante sua estada em Malta, obra hoje preservada na Catedral de Valeta. Foi uma mulher que quis aquele trágico desfecho, Herodias, cunhada e amante do tetrarca Herodes Antipas, sétimo filho de Herodes, o Grande. Assim, foi silenciada aquela implacável voz profética que gritava contra o rei, no silêncio cúmplice dos súditos: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão!”.
Na realidade, como dizia o padre Primo Mazzolari, aquela voz continuava a gritar bem alto mesmo quando não estava mais no pescoço de João Batista.
Aquela exibição teatral da cabeça decepada no prato pretendia reduzir ao silenciar uma testemunha incômoda, cuja palavra cortante era finalmente cortada, num contexto de convívio que misturava de forma lúgubre falar e comer. Mas ao longo dos séculos a sua figura não cessará de viver e proclamar, como atesta a liturgia católica que comemora todos os anos, em 29 de agosto, aquela morte e como é confirmada pela própria arte de todos os tempos em formas até surpreendentes.
Basta pensar no drama musical de um ato Salomé que Richard Strauss compôs com base na peça teatral homônima escrita em francês por Oscar Wilde em 1891 para Sarah Bernhardt.
Strauss mandou traduzi-la para o alemão, a musicou e a apresentou em Dresden em 9 de dezembro de 1905, em meio a duras críticas do público que considerou a obra escandalosa, sádica e perversa.
Efetivamente o enredo é desconcertante com a figura de Salomé apaixonada por Jokanaan, determinada a possuí-lo de forma masoquista, também atraída por suas acusações veementes e pela rejeição total de suas investidas sexuais.
No final, após uma série de reviravoltas trágicas, como no relato do Evangelho, o tetrarca Herodes, embora horrorizado, terá que ceder ao pedido da mulher e mandar que lhe entreguem em uma bandeja de prata a cabeça sangrenta de Batista. Salomé pronuncia palavras de amor e paixão e no final beija a boca daquela cabeça decepada. Os efeitos eróticos na obra como um todo são exaltados por uma música violenta e insinuante ao mesmo tempo, agitada e agressiva, obsessiva e frenética (pensem na famosa “dança dos sete véus”). Mas, como se sabe, na história da cinematografia também não faltou a desmistificação com a figura irônica de Totò, grande devoto de São João Decapitado, que no filme de Amleto Palermi (1940) indigna-se com quem rouba o óleo da candeia dedicada ao santo.
O historiador judeu filo-romano Flávio Josefo (século I), em sua obra Antiguidades judaicas (v. 2), lembrava que Batista havia sido executado na prisão da fortaleza de Maqueronte (Machaerus) que domina a costa ocidental do Mar Morto. Naquele local, a partir de 1968, iniciou-se uma série de escavações que continuaram sobretudo com os franciscanos arqueólogos Virgilio Corbo e Michele Piccirillo, e chegaram à mais sistemática campanha de escavação liderada por um excepcional arqueólogo húngaro Gyözö Vörös, tão apaixonado pela empreitada que optou por transferir a sua própria residência com a família para a Jordânia (a pesquisa era patrocinada, de fato, pelo Departamento Real de Antiguidades na Jordânia).
Os resultados da escavação iniciada em 2009 foram impressionantes, como atestam os vários relatórios publicados em extensos volumes científicos. Agora o arqueólogo – que tive a sorte de conhecer e conversar com ele e que também foi agraciado com a medalha de ouro do pontificado pelo Papa Francisco em 2022– decidiu apresentar num texto informativo a essência das suas intervenções que permitiram redescobrir os espaços dos palácios dentro dos quais ocorreu o martírio de João Batista. A cidadela, edificada numa encosta, hoje leva o nome árabe de Mukawer que, em marca d'água, revela o original Machaerus.
O enredo da obra permite acompanhar toda a história vivida por esse sítio arqueológico, especialmente pelas escavações do palácio real herodiano, munido de um pátio de 600 metros quadrados. Tem-se, assim, a confirmação dos acontecimentos ali ocorridos. De forma inesperada, o autor reconstrói em seu livro também a permanência da memória daqueles acontecimentos no fluxo subsequente dos séculos por meio da arte: desde o admirável “Codex Purpureus” de Rossano Calabro e de Caravaggio até a modernidade com Giovanni Fattori, Edward Armitage e a citada Salomé de Strauss. Infelizmente a atual situação de tensão que envolve toda a área israelense-palestina também se reflete negativamente no turismo e nas peregrinações.
Na parte final do ensaio, Vörös espera que o ideal bimilenário do "Gólgota de João Batista" em 2029 possa desfrutar de uma retomada inter-religiosa de celebrações e visitas porque o Precursor de Jesus também é apreciado pelo Islã. Não à toa, a introdução do livro foi escrita pelo príncipe jordaniano El Hassan bin Talal, grande defensor do diálogo entre as religiões abraâmicas. Enquanto se espera uma versão italiana, uma nota especial merece o fascinante aparato iconográfico, uma espécie de admirável comentário ao texto que quase se transforma numa obra em si. Assim, confirma-se o que Alexandre Dumas pai (autor de Os Três Mosqueteiros) escrevia nas suas Impressões de Viagem: a antiguidade que é tirada das entranhas da terra pela arqueologia é “a aristocracia da humanidade”.