20 Junho 2024
"A principal missão da Igreja com respeito à gravidez é assegurar uma atitude proativa e não reativa, contribuindo com o processo formativo do ser humano em todas as suas dimensões desde a sua concepção e fazer todo o possível para que, uma vez nascida, a pessoa continue sendo respeitada, acolhida, acompanhada. A Igreja deve lutar por uma legislação a favor da vida, que assegure o direito à vida do embrião e o amparo moral, psicológico e econômico à gestante. Deve lutar por medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário", escreve Pedro Pereira da Silva, padre jesuíta, com MBA em Gestão Estratégica e Desenvolvimento Humano pela FGV e atualmente pároco em Russas, no Ceará.
A temática do aborto continua sendo um desafio ao discurso ético e religioso. Mesmo sem fugir da valorização da vida e saúde humana, a discussão sobre o aborto se paralisa e asfixia quando gira somente em torno do embrião: qual o momento em que o feto pode ser considerado um ser humano? Entretanto, a realidade mostra que é impossível tematizar o aborto isolado de outras esferas existenciais e sociais. Até hoje, nem a ciência, nem a teologia têm uma resposta exaustiva, tanto ética quanto jurídica, que acalme os ânimos e acelere o conhecimento sobre o significado e o alcance da interrupção da gravidez. A questão permanece em aberto e vai exigir, ainda no século XXI, uma hermenêutica, com maior profundidade intelectual e espiritual, dispensando qualquer tipo de discurso relativista, anacrônico, extremista, manualístico, sensacionalista, dogmatizado e imutável. O cérebro de hoje não pode ser o mesmo cérebro de amanhã. Aqui, dispensaremos o dualismo simplista, ou seja, se é licita ou não a descriminalização do aborto, e apontaremos a uma nova chave hermenêutica para o assunto.
O aborto é um tema que vem sendo abordado pela Igreja Católica ao longo de sua história, com muita discussão e poucos resultados. Basta consultar os discursos de Tertuliano (séc. III), Santo Agostinho (séc.IV), Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) e de Santo Alberto Magno (séc. XIII), que oscilaram entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. A partir do século XX, o Magistério da Igreja Católica passa a admitir o aborto “indireto”, ou seja, como resultado colateral indesejado de uma intervenção médica por razões de saúde, como no caso de uma gravidez tubária ou de câncer no útero. Não admite, contudo, o aborto direto, ou seja, buscado por si mesmo, nem mesmo em caso de estupro. A posição atual de alguns teólogos mais qualificados, contudo, não coincide totalmente com o magistério eclesiástico.
Bernhard Haring, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de “preservar o útero para futuras gestações ou quando o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez”. “Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir da fecundação, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreveu rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados” (Frei Betto). Percebe-se que existe uma percepção limitada do assunto e uma tensão permanente entre o conceito e a prática. Percebe-se que os teólogos matizam a compreensão do tema, mas o Magistério da Igreja é cauteloso ao tratar temas de fronteira como o início e o final da vida humana, o que pode levar à impressão de controle e paralisia da pesquisa.
O magistério eclesiástico é contra a descriminalização do aborto, baseada no princípio de que não se pode “legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma vida humana”. Mesmo defendendo tal princípio, a história demonstra que nem sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas do conflito social e existencial. Por séculos a Igreja aceitou a pena de morte para criminosos comuns e políticos, posição somente finalmente revogada de maneira absoluta pelo Papa Francisco. Também patrocinou, na Inquisição, a eliminação física de pessoas consideradas hereges ou inimigas da fé católica. Muitas vezes, foi complacente e legitimou governos totalitários. É claro, contudo, que não tem sentido defender a vida do embrião e desprezar a vida já nascida. Por isso, a Igreja também se opõe ao feminicídio, à homofobia, ao genocídio e à destruição da Casa Comum. Por isso, não podemos instrumentalizar a “bandeira antiabortiva” como instrumento para incitar o ódio e a violência. Seria um caso de esquizofrenia espiritual e moral, que pode até existir, mas não deve ser aplaudida ou reverenciada pela razão e pela fé.
É espantoso quando nos deparamos, em pleno século XXI, com conteúdos que intrigam e continuam exigindo um maior esforço de compreensão, como o aborto, e ainda são considerados tabus indiscutíveis em certos ambientes do mundo eclesial. Quando tem a oportunidade de se expressar sobre o assunto, o Magistério da Igreja prefere manter uma posição que para muitos é considerada conservadora, mesmo sabendo que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, “a criminalização atinge especialmente mulheres jovens, desempregadas ou em trabalho informal, negras e pobres. Quem tem dinheiro, paga um médico de confiança. A vida da mulher, negra e pobre, está em risco”. Será que teremos que nos curvar diante da teoria feminista, concedendo que há algo de verdade nesta expressão: “Se os homens parissem, o aborto seria um sacramento”?
Meu objetivo não é ficar especulando se é moral ou não a descriminalização ou criminalização do aborto ou se ele deve ser legal e seguro (descriminalização) ou ilegal e arriscado (criminalização) neste país. Aqui, tenho o intuito de apresentar uma postura de empatia diante da dor de quem é forçada a abortar. A Igreja deve fazer todo o possível para que o poder público garanta uma legislação a favor da vida, que assegure o direito à vida do embrião e também o amparo moral, psicológico e econômico à gestante e sua família. Quando se trata de aborto, não podemos esquecer que o mesmo carrega uma série de situações humanamente dramáticas, geradas por pobreza, ignorância, opressão social, violência, que não podem ser encaradas sob o olhar altivo do moralismo farisaico. Essa é a face escondida do aborto, desconhecida ou não reconhecida por muitos. O fato, porém, de que as condições sociais atuais não sejam adequadas não justifica, absolutamente, o aborto. Porém, pessoas que se opõem a essas medidas de proteção e educação têm nas mãos o sangue derramado pelo machismo e pelo feminicídio. Eles são responsáveis pelas altas taxas de aborto. São responsáveis por lesões e pela morte de mulheres, principalmente mulheres pobres e negras.
Antes do aborto clínico (eliminação do embrião), existe o aborto social (eliminação da pessoa pela fome, corrupção, desemprego, migração, exploração). Este “aborto” tem eliminado infinitamente mais vidas do que o aborto clínico e tem passado despercebido aos olhos indiferentes de muitos que se dizem católicos. Pessoas honradas e edificadas com a graça divina sempre defenderão a vida em toda a sua extensão, sem reduzir a moralidade da vida humana, no âmbito pessoal e social, somente a questões relativas ao exercício da sexualidade. A defesa e a proteção da vida não poderão ser restritas somente à concepção do embrião. Não basta lutar contra a eliminação da criança não nascida; é preciso lutar também por condições sociais que deem à criança nascida uma vida digna. “A defesa da vida humana desde a fecundação é hipócrita quando não se preocupa pelo ‘útero social’ que depois vai receber essa criança” (Junges, Bioética, p. 132). Lutar contra a injustiça social é tão importante quanto combater o aborto, diz o Papa Francisco. A partir daí, é preciso que se garantam não só a preservação da vida do feto e o seu nascimento, mas, sobretudo, o seu direito a um acolhimento efetivo, que lhe assegure uma existência digna e repleta de possibilidades. Afinal, “gente é pra brilhar”, não pra morrer de fome ou por atrocidade. Temos que parar de condenar o aborto sem preocupar-nos com a violência social e existencial que o provocam.
Desde a fase de embrião até a velhice, temos que continuar honrando a vida, sem abandoná-la e sem desistir em defendê-la. Mas, por preconceito e fundamentalismo, consideramos somente uma fase da vida e abdicamos da totalidade da nossa humanidade para incitar o ódio e a violência, diante da desinformação sobre a temática do aborto, estimulada pelo nosso juiz acusatório e punitivo, sem nenhuma transcendência. Essa ação se assemelha às ações dos fariseus e doutores da lei, que Jesus dispensou de sua companhia e amizade. Não podemos usar o nome de Deus para aterrorizar e violentar qualquer pessoa que seja.
A todo defensor do antiaborto, convém, em todos os espaços, testemunhar e defender o direito à vida em todas as circunstâncias: direito à educação, direito a saúde, direito a moradia, direito a terra e direito ao trabalho. Agora, aquele que tem a bandeira antiabortiva e não tem empatia diante do sofrimento e da dor de tantas mulheres “abortadas do útero social” pela miséria, pela exploração sexual, pela discriminação nas oportunidades de trabalho, pelo machismo, chegando ao feminicídio, não tem credibilidade diante do Evangelho e da consciência cidadã. Sua defesa contra o aborto não passa de uma pseudo-defesa que, infelizmente, busca compensações afetivas para demonstrar interesses morais.
Não posso imaginar alguém que é contra o aborto e, contudo, vive uma omissão total diante da justiça social: apoiam governos totalitários, defendem o porte de armas, destroem a politica de proteção ambiental, exaltam maioridade penal. Condenam o aborto, mas calam diante do abuso infantil. Sua “canção” é oprimir e explorar os vulneráveis ou aqueles que vivem em situação de risco. Pode-se crer que esses militantes antiabortistas, sem transcendência, escondem ou aniquilam sua própria consciência ética e os valores vitais da moralidade cristã. O aborto aparece como o escudo para não enfrentar as grandes questões do nosso tempo: fome, desemprego, migração, violência, corrupção, acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. O Papa Francisco pede que os opositores ao aborto demonstrem na prática a mesma paixão pela vida dos pobres, dos migrantes e dos oprimidos e parem de instrumentalizar a religião para incitar ódio e violência.
Quem já ouviu uma mulher que se submeteu à prática do aborto, tem consciência de que ninguém aborta pelo prazer de fazê-lo. É sempre uma opção difícil, traumática, por pressão, angustiante, traz uma dor imensa. Por isso, a mulher que teve que passar pela experiência do aborto deve ser cuidada, protegida. Deve-se antes trabalhar pela prevenção e não pela morte. O aborto não é um ato de uma pessoa isolada. Existem muitos responsáveis envolvidos. Em muitos casos, a responsabilidade “pesa, particularmente, sobre aqueles que direta ou indiretamente a forçaram a abortar” (Evangelium Vitae, n.59). Sendo assim, a insensibilidade e a falta de empatia diante da dor e do sofrimento de quem aborta não pode ser prova da sua imoralidade. Na Carta Apostólica Misericordia et misera, documento conclusivo do Ano Santo da Misericórdia, Papa Francisco ampliou indefinidamente a permissão especial ao clero de perdoar as mulheres e outros envolvidos em casos de aborto, que até então geralmente só era conferida ao bispo diocesano ou a quem este concedesse sua permissão.
A principal missão da Igreja com respeito à gravidez é assegurar uma atitude proativa e não reativa, contribuindo com o processo formativo do ser humano em todas as suas dimensões desde a sua concepção e fazer todo o possível para que, uma vez nascida, a pessoa continue sendo respeitada, acolhida, acompanhada. A Igreja deve lutar por uma legislação a favor da vida, que assegure o direito à vida do embrião e o amparo moral, psicológico e econômico à gestante. Deve lutar por medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário.
Dada a complexidade da realidade em torno ao tema do aborto, também a Igreja experimenta dificuldades ao discutir essa temática evitando uma linguagem que pode soar como acusativa ou abusiva. A Igreja precisa continuar debruçar-se sobre esse tema tratando-o com base nos conhecimentos teológicos, mas também contando com as contribuições nos âmbitos científicos, técnicos, jurídicos, éticos e psíquicos, sem cair no abismo da intolerância ou do fundamentalismo. Queremos ser uma Igreja que contribui para o bem da sociedade com valores morais, que também aprendeu a conviver com uma sociedade culturalmente diversificada.
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Antes do aborto biológico (embrião) existe o aborto social (útero social). Artigo de Pedro Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU