07 Junho 2024
“O desafio do nosso tempo, além da saúde, do clima, das guerras, é aquele das divisões sociais e das grandes desigualdades globais".
Fabiola Gianotti, física e diretora do CERN em Genebra – primeira mulher a liderar a Organização Europeia para a Investigação Nuclear – estava ontem em Turim para um encontro com estudantes organizado pela Fundação Agnelli no Festival da Economia. À tarde ela concedeu uma entrevista nos estúdios de TV de La Stampa. “O fosso que está se criando é entre o bloco de países desenvolvidos, que podem continuar a projetar novas tecnologias e a tirar o máximo partido delas, e o bloco de países em desenvolvimento que estão ficando cada vez mais para trás. Este mundo em duas velocidades já não é mais sustentável".
A entrevista é de Nicolas Lozito, publicada por La Stampa, 01-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Soluções para essa lacuna?
É preciso fazer um esforço para compartilhar o conhecimento com toda a humanidade. É um dos alicerces do desenvolvimento partilhado e coletivo. O modelo CERN, de fato, é de uma ciência aberta, à disposição de todos. Conhecimentos, tecnologias e educação acessíveis a todos, gratuitamente, é o instrumento para reduzir as desigualdades da sociedade e dos povos.
A pesquisa serve para o progresso. Mas pode invocar demônios indomáveis, como nos ensina o filme Oppenheimer. Por acaso você o assistiu?
Ainda não. Mas só por uma questão de tempo: encontrar três horas na agenda não é muito fácil nesses tempos.
Então, qual é a bússola para a comunidade científica, quando devemos parar?
Não podemos de forma alguma parar o desenvolvimento por medo das consequências negativas. O conhecimento é a força vital do progresso. É verdade, a fissão nuclear levou à bomba, mas também a muitos usos na medicina que salvaram milhões de vidas.
Então nenhum limite?
O limite tem de existir. Precisamos de políticas e regras que nos permitam conter, limitar e minimizar os aspectos negativos. A política deve ouvir a ciência.
A ciência é neutra ou não?
É universal e unificadora.
Ou seja?
Universal porque as leis da natureza são as mesmas em todo lugar, na China, na Itália, nos Estados Unidos. E é unificadora porque o desejo de compreender como funciona o universo é uma aspiração que os seres humanos têm em comum. E então a ciência é quase como uma cola, permite criar pontes e conexões.
Mesmo entre povos que brigam e fazem guerra?
A ciência pode ajudar. E, de fato, o CERN foi fundado há exatamente setenta anos, em 1954, com a ideia de criar um centro europeu de excelência científica após a guerra que atraísse pesquisadores e promovesse intercâmbios pacíficos e construtivos entre os países após as devastações. Hoje essa missão de colante ainda está viva: o Cern atrai cientistas de todo o mundo.
Até mesmo israelenses e palestinos, russos e ucranianos?
Israelenses e palestinos sim, eles estão em Genebra conosco e colaboram. Com a Rússia, no entanto, está bastante parado neste momento, muitas instituições estão agora sob sanção internacional.
Qual é o perfil médio de um pesquisador do CERN?
Somos cerca de 17 mil pessoas de 110 países. A idade mais comum é 27 anos, porque muitos jovens nos procuram para formação: físicos, engenheiros, técnicos em diversas áreas, desde a eletrônica à mecânica, criogenia, técnicas de vácuo. Estudamos os muitos problemas do mundo e os desafios da física. Eu mesmo cheguei para fazer meu pós-doutorado e nunca mais saí deste ambiente maravilhoso.
Quantas mulheres são?
Quando cheguei em 1994 éramos em torno de 8%. Hoje o número subiu para 15-20%. Mas é preciso fazer mais.
Que conselho você daria às jovens pesquisadoras, presas entre precariedade e estereótipos?
Vamos meninas, a física é para vocês. A física é belíssima, utilíssima. Parece-nos complexa, mas na realidade estuda os aspectos mais elementares, as suas leis são simples, elegantes, quase estéticas. A beleza na simplicidade.
O bóson de Higgs, observado há 14 anos no seu enorme acelerador de partículas, não é exatamente simples. Como o explicaria isso para alguém que não tem ideia do que é?
O bóson de Higgs é uma partícula muito especial e está ligada ao mecanismo que permitiu a formação da matéria no universo primordial. Sem o campo de Higgs, a matéria de que somos feitos não teria sido formada, por isso nós existimos também graças a esse mecanismo.
Na história do universo, quando tudo isso aconteceu?
O bóson de Higgs agiu um milionésimo de milionésimo de segundo após o Big Bang, a grande explosão que deu vida ao universo há 13,8 bilhões de anos.
A partir daquela fração de segundo sabemos tudo sobre o universo?
Quem dera! Sabemos muito, mas o universo ainda é um grande mistério. Por quê? Conhecemos o que vemos, mas a matéria representa apenas 5% do universo. 95% são um ponto de interrogação, o que chamamos de matéria e energia escura. Quando olho para uma foto do espaço, não sou atraída pela luz das estrelas, mas pela escuridão das áreas escuras.
Parece fascinada pelo desconhecido. Há quem o veja como um abismo: você não se sente minúscula e passageira?
Eu me coloco essas dúvidas o tempo todo. Mas o caminho para o conhecimento é uma jornada longa e sem fim. Gerações de cientistas aportam pequenos passos. Considero-me sortuda por viver nesta época, descobrimos a expansão acelerada do universo, a massa dos neutrinos, as ondas gravitacionais. As teorias de Einstein foram verificadas.
Mas você teve formação clássica, toca música. Como a física tenha entrou na sua vida?
Física, música e humanismo para mim são expressões com uma origem comum: da curiosidade e do rigor do ser humano. No entanto, a centelha para a física veio de Marie Curie, a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel: li a sua biografia e imediatamente senti aquele fogo sagrado. Foi um salto no escuro, mas nunca me arrependi.
Fez muitas pesquisas. Mas agora é diretora desde 2011. Qual é o seu modelo de liderança?
A minha função é de serviço, para garantir que os que estão no CERN façam o seu melhor. De vez em quando tenho que tomar decisões difíceis, claro, mas o trabalho em equipe é fundamental: o resultado é maior que a soma das partes.
O que fará após o fim do seu mandato?
Vou voltar a ser pesquisadora.
Há alguns anos, circularam rumores de que no CERN podem se formar buracos negros. Vamos desaparecer todos?
É uma história fantástica, mas é uma fake news.
Mas nem mesmo buracos negros microscópicos?
Em nível teórico é possível, mas por poucos instantes. Aliás, seria uma enorme notícia identificar um.
Os céticos da ciência estão aumentando a cada dia. Como se enfrentam?
Hoje vivemos uma forte crise de confiança em muitos setores. Enfrenta-se comunicando mais e melhor, saindo das bolhas. Inauguramos um enorme espaço de divulgação, o Science Gateway: venham, é aberto e gratuito.
Por que é tão importante estudar as partículas elementares?
É a pergunta que o ser humano tenta responder desde sempre: de onde viemos? Um dia algum jovem pesquisador ou pesquisadora encontrará novas respostas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O mundo a duas velocidades não se sustenta. A ciência deve ser cola para a paz”. Entrevista com Fabiola Gianotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU