No Brasil, 64 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar, ao mesmo tempo que o país espelha, no topo da pirâmide, uma fatia social que inclui os mais ricos do planeta
O relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Pnad Contínua, com base no ano de 2023, traz dados alarmantes sobre a desigualdade brasileira: o 1% mais rico ganha 40 vezes mais que a população mais pobre do país. No país, o problema não é novo, mas histórico, onde as políticas de redução são ainda insuficientes. Embora o orçamento do Bolsa Família, importante programa de transferência de renda, tenha sido quintuplicado no último ano, há muito a ser feito. Outra frente relevante é a Reforma Tributária, aprovada em 2023, mas pendente de regulamentação, o que está previsto para ocorrer neste primeiro semestre. Há, porém, lacunas que precisam ser consideradas.
“A principal medida ainda a fazer é a tributação de lucros e dividendos, que hoje são isentos. Não faz sentido pessoas que ganham R$ 500 mil mensais não pagarem imposto de renda, enquanto seus funcionários pagam 27,5%”, defende Pedro Fernando Nery, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Quem é rico para os padrões brasileiros, é rico também para padrões mundiais. Alguém que está entre os mais pobres no Brasil também está entre os mais pobres da distribuição do mundo”, complementa.
Há pistas sobre onde avançar e isso passa, como diz o entrevistado, em “incluir o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. (...) É preciso avançar com políticas para a primeira infância, como creches, que têm mostrado bons resultados para o desenvolvimento do capital humano. Muito da desigualdade acontece antes da própria escola. A creche ajuda a criança pobre a não só ser alimentada mas estimulada, além de liberar tempo para a mãe trabalhar”, ressalta Nery.
Mais ainda, é preciso não perder o vínculo com a realidade concreta da pobreza no Brasil e não se tornar indiferente aos desafios postos. “‘É um bom tempo para os inquietos’. Nesses últimos 10 anos de pontificado [o Papa Francisco] tem provocado muito os jovens a tentarem a transformação do mundo, ou a no balconear, expressão argentina que ele resgata, evitando a ‘epidemia da indiferença’”, pontua Nery.
Pedro Fernando Nery (Foto: Cicero Bezerra | Companhia das Letras / Divulgação)
Pedro Fernando Nery é diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República. Doutor e mestre em Economia pela Universidade de Brasília – UnB, bacharel em Ciências Econômicas (UnB - sanduíche na Università degli Studi di Siena). É consultor legislativo do Senado Federal na área de Economia. Autor do livro Reforma da Previdência: por que o Brasil não pode esperar? (Elsevier, 2019) com Paulo Tafner. Professor de pós-graduação no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.
Nery acaba de lançar o livro Extremos: um mapa para entender a desigualdade no Brasil (Zahar, 2024).
IHU – A desigualdade é o problema mais crônico do Brasil? Sim? Não? Por quê?
Pedro Fernando Nery – É uma característica que nos acompanha em nossa formação e, isto é o mais importante, a desigualdade é exacerbada por várias escolhas ruins que fazemos em nossa sociedade. O copo meio cheio aqui é que há muito que podemos fazer para mudar esta realidade – e este “otimismo realista” é uma parte importante do livro.
Temos muita evidência científica e lições internacionais para nos basearmos. Podemos consertar o Estado, do lado da sua arrecadação, os impostos, e do lado do gasto, para que as famílias pobres recebam mais e as famílias mais ricas concentrem menos rendas. E podemos fazer muito para ajudar quem mais precisa, ou, para usar um termo do Papa Francisco, os descartados. Políticas para a primeira infância, para a inclusão no mercado de trabalho.
IHU – Olhando a questão em termos globais, o que faz o Brasil um caso emblemático para pensar a desigualdade no mundo?
Pedro Fernando Nery – A distribuição de renda do Brasil replica a distribuição de renda no mundo. Quem é rico para os padrões brasileiros é rico também para os padrões mundiais. Alguém que está entre os mais pobres no Brasil também está entre os mais pobres da distribuição do mundo. Por isso brinco que, se um marciano fosse descer na Terra e tivesse que escolher um país para aprender como é o mundo, ele deveria escolher o Brasil. Temos a prosperidade de lugares como a Faria Lima, em São Paulo, até a miséria de Ipixuna, no Amazonas. A longevidade de bairros como o Morumbi e a mortalidade infantil e a violência entre jovens de Mocambinho, em Teresina. Estes são alguns extremos dos quais o livro fala.
IHU – Existe uma desigualdade “boa”? Em que sentido?
Pedro Fernando Nery – É preciso reconhecer que nem toda desigualdade é ruim, e nem toda desigualdade é boa.
Desigualdade boa é quando a prosperidade de um é também prosperidade da sociedade. Um cirurgião que ganha bem mas salva vidas, um inventor que cria um aplicativo que ajuda as pessoas, um empreendedor que distribui produtos de forma mais barata. Podem ser pessoas com elevada renda mas que, com muito esforço, beneficiam não só a si mas o restante da coletividade.
A desigualdade ruim é uma desigualdade do tipo de soma zero. O sonegador, que enriquece com dinheiro que poderia construir uma creche. O desembargador que recebe uma bolada irregularmente de um recurso que poderia ser um ônibus escolar. O lobista que consegue privilégios para um cliente à custa das famílias consumidoras. A desigualdade que vem de conexões políticas e que serve à perpetuação da concentração de riqueza, e também de poder, é uma desigualdade ruim.
IHU – Uma das alternativas ao combate à desigualdade é a Renda Básica Universal, tema debatido durante a pandemia. No entanto, essa política pública parece estar fora do radar do atual governo. Qual a viabilidade de um projeto deste tipo no Brasil?
Pedro Fernando Nery – O governo atual permitiu de forma sustentável uma vigorosa expansão do Bolsa Família, que quintuplicou em orçamento. Não à toa temos pobreza e pobreza extrema em mínimas históricas. E o Bolsa Família é, legalmente, uma etapa para uma renda básica mais universal. Sou muito atento ao que Francisco fala e, quando ele falou de uma renda universal na pandemia, me parecia dizer a garantia de um mínimo de renda para todos que precisem – não necessariamente para todos independentemente de necessidade. Chego a fazer este registro no fim do livro. De toda forma, não precisamos nos contentar. Podemos pensar, por exemplo, em uma renda universal infantil, como existem em muitos países, garantindo que famílias com crianças não passem privações.
IHU – Recentemente foi aprovada a taxação dos rendimentos de fundos exclusivos dos super-ricos. Até que ponto essa medida contribui para a redução da desigualdade? Quais outras medidas podem ser adotadas para uma reforma tributária justa?
Pedro Fernando Nery – É uma boa medida, mas os mais ricos possuem um cardápio de pratos para fugir da tributação. O governo já fechou um pouco as possibilidades de elisão. Mudou juros sobre capital próprio, fundos fechados, offshores, letras de crédito. A principal medida ainda a fazer é a tributação de lucros e dividendos, que hoje são isentos. Não faz sentido pessoas que ganham R$ 500 mil mensais não pagarem imposto de renda, enquanto seus funcionários pagam 27,5%.
IHU – Em conversa com a BBC Brasil, o senhor declarou que "gastamos com pensão de inatividade militar algo como R$ 50 bilhões por ano", enquanto o “orçamento pré-pandemia do Bolsa Família estava ao redor de R$ 30 bilhões”. O que isso demonstra sobre a realidade da desigualdade brasileira?
Pedro Fernando Nery – Demonstra que há até uma apropriação do vocabulário de combate à desigualdade por parte das elites. Formalmente, os militares não têm previdência e esses benefícios fazem parte do “sistema de proteção social”. Proteção social é o que deveríamos dar aos mais pobres, e eles são os que deveriam ser priorizados no orçamento. Algo parecido acontece nos estados e municípios, em que temos mais de R$ 100 bilhões em benefícios da “seguridade social”. Este tipo de segurança atinge servidores públicos com aposentadorias e pensões subsidiadas, enquanto uma parcela ínfima dos gastos dos entes subnacionais é voltada para a transferências de renda, que virou uma atribuição basicamente do governo federal. Então nem proteção social no governo federal nem os planos de seguridade social dos estados e municípios são para os pobres, e sim para os mais ricos.
IHU – Qual seria o conjunto de propostas que poderia mudar a realidade da desigualdade no Brasil?
Pedro Fernando Nery – Incluir “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” é um bom mantra. É preciso avançar com políticas para a primeira infância, como creches, que têm mostrado bons resultados para o desenvolvimento do capital humano. Muito da desigualdade acontece antes da própria escola. Crianças pequenas têm acesso a cuidados e recursos muito diferentes se nasceram em uma família rica ou em uma família pobre. A creche ajuda a criança pobre a não só ser alimentada mas estimulada, além de liberar tempo para a mãe trabalhar.
Temos aprendido cada vez mais que não adianta muito tentar consertar depois, porque o cérebro já é muito afetado pela pobreza no início da vida. Do lado do orçamento, é importante buscar a tributação da renda dos mais ricos, como a distribuição de lucros e dividendos de pessoas jurídicas para pessoas físicas.
IHU – No seu livro Extremos: um mapa para entender as desigualdades no Brasil, é dito que a desigualdade também é um problema dos mais ricos. Por quê?
Pedro Fernando Nery – A desigualdade afeta o crescimento econômico e, assim, afeta a todos. O PIB vai ser menor se crianças pobres deixarem de se desenvolver adequadamente. Deixamos de formar médicos, engenheiros, cientistas, escritores, porque a privação no início da vida impede essas crianças de florescer como poderiam, afetando sua trajetória escolar e no mercado de trabalho. Temos que combater a desigualdade já no início da vida.
Livro de Fernando Nery (Foto: Companhia das Letras | Divulgação)
IHU – Como a desigualdade afeta o desenvolvimento nacional?
Pedro Fernando Nery – Uma outra forma em que a desigualdade pode afetar o desenvolvimento é quando ela contribui para formar elites que atuam de forma extrativa. Isto é, grupos que passam a usar seus recursos para concentrar crescentemente poder econômico e político, conseguindo privilégios junto ao Poder Público, por exemplo, em detrimento do restante da coletividade e da própria eficiência da economia. Um empresário que consegue um monopólio em detrimento dos consumidores, ou benefícios fiscais em detrimento dos demais contribuintes, por exemplo.
IHU – Novamente o governo federal parece apostar no consumo como política de acesso à cidadania. Em que isso contribui para o aumento da desigualdade e em que sentido isso ajuda a reduzi-la?
Pedro Fernando Nery – Ainda tínhamos 1 a cada 10 brasileiros vivendo abaixo da linha da extrema pobreza antes do novo governo, e isso mesmo depois da pandemia, pela medida da FGV. Em 2023, caiu para 8%, mas ainda é muita gente em uma privação muito intensa, com dificuldade de consumir alimentos, por exemplo. A pobreza no Brasil é concentrada nas crianças, não vejo excesso de consumo ali. De toda forma, não me parece que o governo aposte apenas em consumo. Veja o que acontece na educação: a política de ensino integral, o Pé de Meia para permanência no Ensino Médio. São boas novidades.
IHU – Para elaborar seu livro, o senhor viajou a oito lugares diferentes no país. Poderia nos contar o que dessa experiência mais o impactou? Quais os contrastes que exacerbam a desigualdade?
Pedro Fernando Nery – Extremos é uma viagem pelos pontos altos e baixos de nossos abismos, alcançando as cinco regiões do país para discutir propostas de mudanças. Temos a Zona Oeste da cidade de São Paulo, o lugar mais desenvolvido, apresentado como um símbolo de prosperidade, com densa concentração de serviços e infraestrutura. Ele contrasta com Ipixuna, município de Amazonas que é o lugar menos desenvolvido, onde não há saneamento básico, creche, estradas.
Localização da cidade de Ipixuna no mapa do Amazonas e no mapa do Brasil (Imagem: Research Gate)
Olhamos também para a desigualdade em expectativa de vida, o bairro em que se vive mais (o bairro do Morumbi), uma vizinhança de mansões em São Paulo, e o bairro em que se vive menos (Mocambinho) em Teresina, marcado por uma assustadora violência urbana e mortalidade infantil. Há ainda discussões na unidade mais rica da Federação, o Distrito Federal, base para discutir privilégios do setor público, e a unidade mais pobre, o Maranhão, veículo para entendermos a importância da emigração.
Por fim, temos dois extremos de apropriação dos gastos públicos: Nova Petrópolis (Rio Grande do Sul), onde se concentram gastos com aposentadorias, e Severiano Melo (Rio Grande do Norte), onde se concentram gastos com o Bolsa Família. Eles nos relembram que não são necessariamente cidades mais pobres, assim como não são necessariamente as mulheres, os negros, as crianças, os que mais recebem recursos públicos hoje. Muito pelo contrário.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Pedro Fernando Nery – Este é um livro muito marcado pela minha experiência católica, não à toa coloquei na abertura uma frase de Francisco, uma provocação, quando ele diz, na pandemia, que “é um bom tempo para os inquietos”. Nesses últimos dez anos de pontificado ele tem provocado muito os jovens a tentarem a transformação do mundo, ou a no balconear, expressão argentina que ele resgata, evitando a “epidemia da indiferença”. São considerações éticas interessantes que ajudaram este projeto a sair do papel. Espero trazer esta inquietação para o leitor, independentemente da religião, ajudando-o a refletir sobre o nosso país, sobre os nossos descartados, e também incitando-o a discutir e perseguir mudanças.