18 Abril 2024
Economista lança livro sobre as desigualdades extremas do país e como todos perdem nesse cenário. Em tom otimista, ele vê parte da burocracia e da classe política buscando formas para enfrentar o problema.
A reportagem é de Edison Veiga, publicada por DW Brasil, 16-04-2024.
"Temos toda a riqueza e toda a pobreza no mundo no Brasil. Esse é o tamanho de nossa desigualdade". Essa frase está no livro Extremos - Um Mapa para Entender as Desigualdades no Brasil, que o economista Pedro Fernando Nery lançou nesta terça-feira (16/04). De cunho ensaístico, a obra apresenta diversas facetas extremamente desiguais do país, como o lugar mais desenvolvido (o bairro de Pinheiros, em São Paulo) e o menos desenvolvido (o município de Ipixuna, no Amazonas), e as rendas altas do Distrito Federal em contraposição à pobreza do Maranhão.
Servidor federal que atualmente ocupa o posto de diretor de assuntos econômicos e sociais da Vice-Presidência da República, Nery também é professor no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e já foi consultor legislativo do Senado. A proximidade com as altas esferas do poder faz dele um analista privilegiado. "Acho que dá para trazer uma mensagem de otimismo: vejo muita gente comprometida com a questão da desigualdade, não apenas dentro da burocracia estatal, mas na própria classe política", diz.
No livro, ele defende a necessidade de amplas reformas para atenuar o problema das desigualdades, elencando como prioritárias a tributária, a administrativa e a previdenciária. "O Brasil tributa muito mal, mas gasta mal também", avalia o economista.
"Desigualdade significa desperdício", afirma Nery. "A ideia de que a desigualdade se manifesta de diferentes formas já é bem conhecida, mas uma mensagem importante que quero trazer com meu livro é que a desigualdade prejudica também quem está em cima, também quem não é pobre. Porque ela prejudica o crescimento econômico."
Pedro Fernando Nery: "O Brasil tributa muito mal, mas gasta mal também". (Foto: Cicero Bezerra | Companhia das Letras / Divulgação)
Ao apresentar um panorama das desigualdades brasileiras, você advoga pela necessidade de reformas. Pensando nas três principais delas, como uma reforma tributária precisaria ser feita para diminuir as desigualdades?
Não existe nenhuma justificativa razoável para que os mais ricos paguem menos impostos do que o restante da população. O que a gente está falando não é nem necessariamente uma situação em que os mais ricos paguem mais do que os outros, mas pelo menos que paguem igual [aos outros] ou mais do que pagam hoje. Nossa Constituição, ao determinar que todo mundo é igual perante a lei, exige que o Imposto de Renda seja progressivo, quer dizer, que se cobre mais de quem ganha mais. Na verdade estamos distantes disso. Reformar a tributação de renda se trata somente de fazer cumprir a Constituição. E isso não é um tema novo: o Imposto de Renda é um tema do século 19. Isso não deveria ser polêmico. O próprio ministro [da Economia no governo de Jair Bolsonaro] Paulo Guedes, no governo anterior, chegou a sintetizar que o Brasil é um país desigual porque a gente tributa errado. Quer dizer: não é possível nem ver em qualquer ponto do espectro político uma defesa aberta do sistema atual.
E a reforma administrativa, como melhorar esse cenário?
O Brasil tributa muito mal, mas gasta mal também. A evidência é que o Estado até desconcentra a desigualdade de renda, mas desconcentra pouco quando a gente olha a comparação com outros países ou o nosso nível de carga tributária. No gasto público, a gente mobiliza uma quantidade enorme de recursos, via tributação, sem que haja uma distribuição efetiva de renda. Então, uma reforma administrativa deve ser pensada nesse sentido, tanto a fim de melhorar os serviços públicos que são essenciais para os mais pobres, como educação e saúde, quanto também de desconcentrar a renda, por exemplo combatendo supersalários e outros excessos.
Por fim, e a reforma da Previdência?
A reforma que já foi feita em 2019 atendeu em parte à situação da desigualdade em relação a esse tema, à medida que não se gasta mais tanto com a parte mais rica do país e há espaço para gastar mais com partes mais pobres. A reforma afeta mais áreas prósperas, como partes do Rio Grande do Sul, enquanto o gasto assistencial, como Bolsa Família, chega melhor em partes mais pobres, no Rio Grande do Norte, por exemplo. Esses são dois extremos no que diz respeito à apropriação do gasto público. E é plausível que esse tema continue com a gente por um bom tempo, por um bom motivo: a elevação da expectativa de vida dos idosos. No mundo todo há uma preocupação com esse processo, porque ele pode absorver uma quantidade crescente de recursos públicos que poderiam estar indo para famílias mais pobres, como as famílias com crianças que têm inserção mínima no mercado de trabalho. A Previdência, em um país como o Brasil, é um tipo de benefício mais voltado para famílias com inserção melhor no mercado de trabalho, menos vulneráveis, tipicamente mais brancas e mais bem posicionadas na distribuição de renda.
Você atua próximo à cúpula do poder no Brasil. Como tem percebido a recepção a essas ideias pelas autoridades que "têm a caneta na mão" para fazer alguma coisa?
Tenho experiência como servidor federal e acho que dá para trazer uma mensagem de otimismo: vejo muita gente comprometida com a questão da desigualdade, não apenas dentro da burocracia estatal, mas na própria classe política. Acho que muito do que não funciona bem no Brasil vem da letargia, de algum erro, de incompetências do passado, e não necessariamente de lobby e forças ocultas agindo para manter o status quo. Existe muita vontade de acertar. É claro que o processo decisório é muito congestionado e existem muitas demandas e exigências, mas reitero que a vontade de acertar existe. Existe espaço para ação e o engajamento não é só dentro do Estado, mas fora dele. Muita coisa melhora no Brasil com gente bem-intencionada.
Nos primeiros governos de Lula e nos de Dilma houve críticas por eles não terem atuado de forma decisiva na redução da desigualdade por meio de reformas tributárias, apesar de sua orientação à esquerda. Isso mudou no atual governo?
É verdade, embora seja também verdade que não havia [naquele período] tanta clareza sobre o problema da concentração de renda no topo, porque ainda havia naquele período muita opacidade em relação aos dados do Imposto de Renda. Seja como for, vejo que neste século a gente observou uma queda da desigualdade muito importante, tanto no consumo quanto no acesso a serviços como educação e saúde. Agora, incluir o pobre no orçamento e o rico no Imposto de Renda é um compromisso claro do presidente Lula no novo governo.
E como estão os ânimos do Congresso quanto a esse tema?
Alguns analistas têm dúvidas de que a atual composição do Parlamento permita isso [avançar em reformas]. Mas a tributação da renda já foi discutida no governo Bolsonaro, ainda que de forma insatisfatória, e esse Congresso já aprovou mudanças neste novo governo, nos fundos fechados, nas offshores, na questão dos juros sobre o capital próprio. São medidas que incluem o rico no Imposto de Renda. Claro que fica faltando uma reforma mais ampla, incluindo lucros e dividendos, mas o próprio Congresso já aprovou a determinação para que o governo envie uma proposta de tributação da renda… Então acho que existe espaço para buscar uma construção, sim, e a mobilização da sociedade importa. Espero que, com meu livro, eu consiga trazer uma mensagem não só de inconformismo para uma realidade tão dura, mas também de otimismo diante das possibilidades de mudança.
É corrente o discurso de que a desigualdade é o maior problema do país. De que forma essa questão, histórica e estrutural, acaba impactando em todas as áreas?
Desigualdade significa desperdício. A ideia de que a desigualdade se manifesta de diferentes formas já é bem conhecida, mas uma mensagem importante que quero trazer com meu livro é que a desigualdade prejudica também quem está em cima, também quem não é pobre. Porque ela prejudica o crescimento econômico. Quando os recursos da sociedade estão desorganizados, como no Brasil, todo mundo perde.
A gente pode imaginar uma menina inteligente, que tem vocação para ser uma pessoa determinada, aguerrida, mas que nasce em uma família pobre. Ela vai ter uma primeira infância exposta a violência, a estresse, a doenças, a desnutrição, sem desenvolver todo o potencial do seu cérebro. Vai ter dificuldades para estudar, seja porque o sistema educacional não é o ideal, seja porque o transporte público é ruim, ou porque ela mora em uma habitação precária. Se ela tivesse nascido em uma família rica ou de classe média, poderia se tornar, por exemplo, uma grande médica. Por conta de todas as dificuldades que a vida lhe impôs ela não conseguiu chegar nem perto disso. E todos perdem. Todos poderiam ser pacientes de uma grande profissional. E a gente poderia fazer o mesmo exercício para uma cientista, uma inventora, uma programadora, uma artista. Se a gente aplica esse raciocínio a milhões de crianças, fica claro como nós perdemos. Essas pessoas que não se desenvolvem como deveriam poderiam estar nos ajudando em diversos problemas. Isso é a desigualdade afetando o PIB.
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“Desigualdade no Brasil prejudica também quem não é pobre”. Entrevista com Pedro Fernando Nery - Instituto Humanitas Unisinos - IHU