29 Mai 2024
Diante do baldaquino do Santo Sepulcro, James está descalço – há 20 anos –, veste uma túnica tão branca quanto seus cabelos e barba, e caminha lentamente se apoiando em um pau: é a imagem encarnada do patriarca Abraão em Jerusalém, onde vive sem dinheiro em um quartinho cedido junto a uma estação da Via Dolorosa. E diz em espanhol – embora seja um norte-americano místico – “esse padre que vem aí é argentino”.
Eles se saúdam e o padre Marcelo Gallardo, da Congregação do Verbo Encarnado, aceita uma entrevista no escuro, a metros do túmulo vazio de Jesus Cristo.
O religioso argentino vive em Belém – está no Oriente Médio há 30 anos e fala árabe – e a sua congregação dirige a paróquia de Gaza, sob a responsabilidade do padre argentino Gabriel Romanelli, que foi surpreendido pela guerra fora desse território bloqueado. Só esta semana conseguiu retornar a Gaza e mantém contato diário com Gallardo, informando-lhe, como testemunha direta e independente, os horrores da guerra: “trocamos mensagenzinhas”.
A entrevista é de Julián Varsavsky, publicada por Página|12, 26-05-2024. A tradução é do Cepat.
Como está a situação?
Neste momento, há três padres argentinos em Gaza. E há outra irmã argentina. Desde o início da guerra, a maioria das famílias católicas e ortodoxas se refugiou na paróquia. Antes da guerra, havia um pouquinho menos de 1.100 cristãos. E se refugiaram nas duas paróquias.
Quantas pessoas refugiadas estão na paróquia de vocês?
Cerca de 550 pessoas, incluindo crianças, idosos e deficientes. Estão ocupando as dependências da escola, inclusive, tem gente dormindo na igreja. As salas de aula são divididas por cortinas feitas de cano.
Trouxeram seus colchões e se instalaram?
Sim, sim, foram buscando. A maioria das casas das pessoas está destruída, então, mesmo que a guerra terminasse agora, não têm para onde ir.
Tem água corrente?
A água é algo muito complicado, a água potável tem que ser comprada e é caríssima. E depois, graças a Deus, quando construíram a paróquia, há muitos anos, a construíram sobre uma fonte natural. É por isso que também conseguem se manter. É água que não é potável, mas a filtram um pouco. Com isso, conseguem ao menos se lavar um pouco.
E a comida?
Agora, entrou um pouco mais, mas passaram momentos muito difíceis. Fazem pão duas ou três vezes por semana. Fazem uma alimentação forte por dia para todos. Não há frutas frescas.
E a luz?
Possuem dois geradores. Um menor, que é da madre Teresa, e outro maior que ligam em alguns momentos do dia para carregar os celulares. Há muito pouca gasolina.
Agora, estão combatendo novamente na Cidade de Gaza, no norte.
Sim. Houve combates perto, não ao lado, perto da paróquia.
Recebem ajuda da ONU?
O problema é que a paróquia está no norte, então, é difícil que chegue. Muito poucas coisas nos chegam da ONU, basicamente chegam ao sul. Das pessoas que estão na paróquia, nenhuma trabalha, muitas perderam a casa, estão fechadas aí há oito meses.
Quantos banheiros têm?
No total, cinco ou seis.
Como foi o episódio de 16-12-2023, quando duas mulheres morreram dentro de sua paróquia da Sagrada Família, em Gaza? Eram Nahida e sua filha Samar. Segundo o Patriarcado Latino de Jerusalém, “foram fuziladas a sangue frio, dentro do espaço da paróquia, onde não há beligerantes”.
A mãe era uma mulher idosa, saiu de uma sala de aula, foi ao banheiro e atiraram nela. A filha saiu para ajudá-la e a mataram também. Parece-me que em uma atiraram no coração e na outra na cabeça. Foi um franco-atirador de Israel. Eu as conhecia. O Papa falou sobre elas.
Ela estava caminhando normalmente e atiraram?
Sim. Havia combates na região, estavam com muitas complicações. Foi ao banheiro pensando que...
Havia pessoas do Hamas no edifício da paróquia?
Não. Nenhum tiro saiu de dentro da paróquia, sem dúvida. Não, não, nela não há pessoas que tenham armas. Nem ninguém do Hamas havia entrado, eles nunca se envolvem com a paróquia, disso tenho certeza.
O que pode fazer um franco-atirador das Forças de Defesa de Israel acreditar que uma mulher caminhando, em uma paróquia, é uma terrorista ou um alvo seja pelo motivo que for?
Não sei, a verdade é que não sei.
Há margem para pensar que o assassinato dessas duas mulheres foi um erro?
Não sei, essas são coisas sobre as quais não tenho elementos para dizer algo.
Você ia muito a Gaza. Como era a vida antes da guerra?
Sempre foi complicado. Faltava água potável, a eletricidade às vezes era apenas 8 horas por dia, às vezes, 15 horas, era assim há anos. Contudo, as pessoas estavam acostumadas, suportavam.
O Hamas se metia com vocês?
Não, diretamente não. Nós os deixávamos tranquilos para viver suas vidas. O Hamas governou, mas não, não havia conflito... Assim, conflito direto, não.
Imaginavam que tudo isso poderia acontecer?
Não, não, realmente... Estou há muitos anos aqui, uma coisa assim...
O que diria ao governo de Israel?
Nós não falamos com o governo: rezamos pela paz. E fazemos tudo o que é possível para que esta guerra termine, que se deem as condições para que haja uma paz justa e duradoura.
Agora, como se conserta isso? Como se rompe o círculo da vingança mútua?
Eu acredito que somente Deus pode mudar os corações. Daí também a importância da oração. É preciso fazer a sua parte... Os homens também precisam ter boa vontade, o desejo de respeitar os outros, respeitar todas as vidas.
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Guerra em Gaza: “Há 550 refugiados cristãos na paróquia”. Entrevista com Marcelo Gallardo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU