21 Dezembro 2023
"Hoje, Gaza se assemelha às cidades alemãs destruídas durante a Segunda Guerra Mundial e muito mais", disse Dom William Shomali, de 73 anos, nascido na Palestina e bispo auxiliar do Patriarcado Latino de Jerusalém, em uma entrevista exclusiva à America realizada por e-mail.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada por America, 18-12-23.
Embora o bispo lamente a falta de ação decisiva da ONU para alcançar um cessar-fogo, ele expressou sua convicção de que o conflito de 70 anos poderia ser encerrado com o estabelecimento de um estado palestino independente ao lado do israelense.
Ele falou sobre o que as agências da ONU chamam de "situação catastrófica" em Gaza, resultado dos bombardeios israelenses em retaliação ao ataque do Hamas no sul de Israel em 7 de outubro, que deixou 1.200 mortos. O bispo também comentou a situação na Cisjordânia, onde a maioria dos palestinos vive, e discutiu seus receios de que a presença cristã desapareça de Gaza após a guerra.
O bispo respondeu às perguntas em 13 de dezembro, um dia após a Assembleia Geral da ONU votar por um cessar-fogo humanitário imediato em Gaza, com 153 países a favor, 10 contra (incluindo Estados Unidos e Israel) e 23 se abstendo. Essa votação ocorreu depois que os Estados Unidos vetaram uma resolução do Conselho de Segurança da ONU em 8 de dezembro, que pedia um cessar-fogo humanitário imediato, com 13 membros votando a favor e o Reino Unido se abstendo.
Você já esteve em Gaza muitas vezes. Como descreveria a situação lá hoje?
Gaza hoje se parece com as cidades alemãs destruídas durante a Segunda Guerra Mundial e muito mais. A maioria da infraestrutura está danificada. Milhares de casas foram destruídas. Centenas de milhares de pessoas estão sem lar. Apenas 20% da população tem acesso a água potável. Doenças estão se espalhando. Hospitais precisam de combustível. Pânico e medo predominam. O medo também prevalece nas cidades israelenses perto das fronteiras de Gaza. A maioria dos habitantes foi obrigada a deixar suas casas.
O que mais o preocupa sobre o que está acontecendo em Gaza?
Além dos danos materiais, a guerra gerou mais ódio, que não será curado facilmente. Matar não traz paz, mas gera mais violência no futuro. Espero que, neste ponto, ambas as partes entendam que o caminho para a paz está no respeito às resoluções da ONU e na implementação delas por meio de negociações sérias.
Temo que os cristãos de Gaza, que sofreram mais do que em qualquer outra guerra anterior, possam deixar o distrito de vez após o fim da guerra. Cerca de 60 já saíram. Vinte foram mortos [desde o início da guerra]. Após esta guerra, receio que não haja mais cristãos em Gaza após uma presença contínua de mais de 18 séculos.
Você consegue se comunicar com as pessoas em Gaza, como a pequena comunidade católica da paróquia da Sagrada Família, e o que eles lhe dizem?
Entramos em contato com eles todos os dias quando é possível. Eles nos contam sobre a vida cotidiana deles e necessidades básicas. Agora, há escassez de combustível. Tememos que não consigam ter eletricidade suficiente para carregar seus telefones. Sem telefone, qualquer contato com eles será impossível no futuro.
Você prevê o fim dos combates em Gaza antes do Natal?
Oramos e esperamos. Acreditamos em milagres!
O que pensa sobre a resposta da comunidade internacional a esta guerra e à crise humanitária que ela causou?
A resposta à crise humanitária foi excelente. Mas o número de caminhões aprovados para entrar [em Gaza] pelo distrito de Rafah é muito menor do que as reais necessidades. As pessoas precisam de muito mais ajuda do que é permitido diariamente.
No nível diplomático, lamento que o papel da ONU neste conflito tenha sido um fracasso. A ONU se tornou um fórum retórico, no qual acusações mútuas são trocadas, mas não um lugar onde decisões pragmáticas são tomadas e implementadas. O veto dos Estados Unidos na ONU [Conselho de Segurança] paralisou a tentativa de impor um cessar-fogo humanitário.
Que tipo de celebração, se houver, você imagina para o Natal?
Nas paróquias e em Belém, as festividades externas, como Papai Noel, a iluminação das árvores de Natal e os mercados de Natal, foram canceladas em solidariedade às vítimas. Maior ênfase será dada ao significado espiritual do Natal. Acreditamos que Jesus Cristo veio para nos salvar de nossos pecados, que são a razão última para conflitos e guerras. Esta guerra, com todas as suas consequências, não vem de Deus. É feita pelo homem. O homem precisa de salvação, que é [algo] espiritual antes de ser social, política ou econômica.
Você tem contato com alguma das famílias dos reféns israelenses?
Não tenho nenhum contato direto, mas sinto empatia pelas vítimas inocentes de ambos os lados. Não entendi por que pessoas idosas, mulheres pacíficas e crianças foram feitas reféns. Lamentamos por todas as pessoas inocentes que sofreram com esse ciclo de violência.
Você é o vigário patriarcal latino de Jerusalém. Como está a situação na Cidade Santa para os palestinos nos dias de hoje? Como está a situação para a Igreja Católica e outras igrejas cristãs em Jerusalém?
Em Jerusalém, a vida continua, mas com menos alegria e entusiasmo do que antes. Sentimos a ausência de peregrinos e uma alta taxa de desemprego. Oramos muito pelo cessar-fogo e continuamos a fazê-lo. Faremos isso durante a novena de Natal, que nos prepara para celebrar a memória do nascimento histórico de Jesus, nosso Salvador, o Príncipe da Paz.
Você também é o vigário patriarcal latino para a Palestina. Como você lê a situação na Cisjordânia, onde vimos inúmeras incursões das forças israelenses e colonos em muitas cidades palestinas desde 7 de outubro, resultando em mortes e prisões de muitos palestinos?
A vida na Cisjordânia não é normal. Os 160.000 palestinos que costumavam trabalhar em Israel agora estão desempregados. Muitas pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Os funcionários da Autoridade Palestina recebem apenas parte de sua remuneração porque o governo não tem dinheiro suficiente para pagá-los. Muitos cristãos começaram a deixar o país, e muitos mais pensam da mesma forma. Sua partida tornará a situação mais vulnerável para aqueles que permanecerem.
Vários relatos na imprensa dizem que a situação ficou muito difícil para os dois milhões de palestinos que são cidadãos de Israel. É assim que você vê?
Há agitação porque ambos os lados veem a guerra de maneira diferente. Entendo que a situação é crítica e exige muita sabedoria de ambos os lados para não prejudicar o tecido social. O governo é severo no controle da liberdade de expressão. Qualquer expressão de simpatia pelo Hamas ou crítica à guerra pode ser rotulada como incitação e pode ser sancionada.
O que a Igreja Católica, juntamente com as outras igrejas, está fazendo para responder ao conflito e à crise humanitária?
Os líderes das igrejas fizeram vários apelos por um cessar-fogo e pelo retorno às negociações para uma solução final do conflito árabe-israelense. A razão última para o conflito vem do adiamento da solução política. A solução de dois estados foi arquivada. É hora de revivê-la e dar aos palestinos autodeterminação. A data de 7 de outubro e a guerra que se seguiu são fases importantes neste conflito de longo prazo, que já dura mais de sete décadas. Tenho certeza de que, se um tratado de paz for assinado, os dois estados [de Israel e Palestina] podem viver lado a lado em paz e harmonia, sem a necessidade de muros e guerras.
Apesar de todas as dificuldades decorrentes dos muitos assentamentos israelenses construídos na Cisjordânia nos últimos anos, a solução de dois estados permanece a única proposta de paz acordada no nível internacional. Deve ser negociada. Com boa vontade, todas as dificuldades podem ser superadas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bispo palestino está preocupado que os cristãos desapareçam de Gaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU