21 Mai 2024
"Deixe-me ser mais claro, cheguei à conclusão de que as enchentes do século XXI estavam se tornando mais drásticas e mais frequentes. E isso apontava para a possibilidade de enchentes maiores e mais violentas no futuro próximo. Para meu espanto e confirmação, em novembro de 2023, se concretizou o que havia escrito em minha tese. Nem sei o que afirmar sobre o cataclismo climático que vivemos agora em 2024."
O artigo é de Caio Flores-Coelho, professor do Curso de História da Unisinos, doutor em História pela PUCRS, mestre em Antropologia Social pela UFRGS e colabora com a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Enchentes e diferentes formas de inundação e cheias não são eventos históricos. Na verdade, eles são eventos naturais. E, como tal, se dissociam da “natureza” humana. Sendo a história o estudo da ação dos homens no tempo, a natureza de uma forma geral nos foge desta compreensão histórica, pois apenas percebemos as enchentes quando elas são vistas por seres humanos. Seus registros são humanos e suas consequências são medidas em termos humanos.
Aqui está, talvez, uma das formas mais complicadas de se lidar com fenômenos naturais, pois eles são percebidos como “ocorrências naturais” sem se levar em conta de que estas ocorrências possuem uma natureza inevitavelmente humana. Essa argumentação face aos atuais eventos climáticos, que estamos vendo aqui no Rio Grande do Sul, serve apenas para dizer que a crise pode ser climática, mas sua tragédia possui natureza política.
Não me refiro aqui apenas à atuação do poder público na gestão da crise, mas aponto também para a questão de que estas alterações climáticas possuem origens antrópicas, ou seja, humanas. O que estamos vendo nas enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul não possuem precedentes históricos anteriores. Não é salutar fazer comparações históricas, entre a enchente de maio em 2024 e as enchentes que assolaram o estado em maio de 1941, uma vez que a enchente de 1941 foi uma exceção. Já as enchentes de maio de 2024 vão passar a ser um novo normal.
Argumentei, em minha tese de doutorado, que São Sebastião do Caí havia se constituído como um local de memória do clima. Isso se referia ao fato de que existia uma memória social coletiva, que relembrava as diferentes enchentes que haviam ocorrido na cidade de São Sebastião do Caí e, ao mesmo tempo, que havia registros físicos dentro da cartografia dessa cidade que apontavam esses eventos históricos.
Ao mesmo tempo, em minha pesquisa, argumentei que as evidências apontavam que as enchentes passaram a ocorrer com maior frequência e com maior volume em São Sebastião do Caí no século XXI. E, levando em conta os dados ali apresentados, era possível que passássemos a ver enchentes maiores do que a máxima histórica de 14,82m (do ano de 1878) e com maior frequência, já que no século XXI a taxa de retorno de enchentes acima de 13m era de uma a cada 1,1 ano. Deixe-me ser mais claro, cheguei à conclusão de que as enchentes do século XXI estavam se tornando mais drásticas e mais frequentes. E isso apontava para a possibilidade de enchentes maiores e mais violentas no futuro próximo.
Para meu espanto e confirmação, em novembro de 2023, se concretizou o que havia escrito em minha tese. Nem sei o que afirmar sobre o cataclismo climático que vivemos agora em 2024. Atingimos uma enchente de 16 metros ao final daquele ano (1,20m acima da máxima histórica de 1878). Após essa enchente, escrevi um texto para o IHU em que argumentava que essa enchente de novembro de 2023 concretizava esta minha acepção inicial e que nós provavelmente veríamos, no futuro próximo, novas enchentes da mesma magnitude ou maiores.
Em 02 de maio de 2024, cerca de 6 meses depois do meu texto ser publicado, atingimos uma nova máxima histórica em São Sebastião do Caí, com uma enchente de 17,60m. Ainda, uma semana depois, tivemos outra enchente de 15,80m no dia 13 de maio de 2024.
A comunidade de São Sebastião do Caí nunca havia lidado com uma enchente superior a 14,80m até 2023. Isso significa que a maior enchente que tivemos em 2024 ultrapassou 3 metros de altura em relação à máxima histórica de 14,82m. Três metros acima do que a população de São Sebastião do Caí cotidianamente havia se adaptado ao longo das últimas décadas.
São Sebastião do Caí se constituía em um local de memória do clima quando as enchentes do rio Caí, apesar de sua imprevisibilidade, ocorriam como um fenômeno esperado. Contava com certos padrões de repetição e de previsibilidade no comportamento das águas. Eram episódios tristes e que afetavam a população da cidade, mas não traziam consigo surpresa.
Não é mais possível habitar São Sebastião do Caí com as enchentes que historicamente conhecíamos. Vai demorar várias décadas até que consigamos desenvolver uma outra forma de habitar esta área de inundação da cidade. que tem sofrido com estas alterações climáticas. E não sei se é possível encontrar novas formas de coabitação dessa população com as enchentes do seu rio.
Minha tese investigou o habitar cotidiano que havia sido desenvolvido nessa cidade desde o século XIX, mas não vejo a possibilidade disso ocorrer. Anteontem, as maiores enchentes eram de 14m, hoje, as maiores são de quase 18m. Isso coloca a cidade inteira embaixo d’água.
Voltando ao meu ponto inicial, não é errado afirmar que essa enchente que assolou o Rio Grande do Sul em 2024 seja a maior da história. Se referindo ao passado, ela realmente é neste momento a maior que já vimos. A questão a se considerar é que, pensando em futuro, ela não continuará sendo a maior. Piores enchentes virão. E logo.
Coabitar o fim do mundo traz seus percalços.
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O RS, as enchentes e a memória do clima. Artigo de Caio Flores-Coelho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU