20 Mai 2024
"Da mesma forma que em outras catástrofes climáticas, e estas têm sido cada vez mais frequentes e extremas, o povo brasileiro, de norte a sul e leste a oeste, foi capaz de se transfigurar em anjo", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, assessor do SPM – São Paulo, 15-05-2024.
Eis o artigo.
Nas páginas bíblicas com frequência tropeçamos com os anjos. Eles entram em cena com os mais diversos personagens, tais como, Abraão, Isaac, Jacob, Moisés, Elias, Tobias, Daniel, no Antigo Testamento, mas também com Zacarias, Isabel, Pedro, Paulo, José, Maria e Jesus, no Novo Testamento. Figuram, em geral, como mensageiros de Deus, enviados para alguma missão. Surgem tanto para proteger os profetas quanto para alertá-los quanto ao rumo a ser tomado. Também podem ser emissários de boas notícias, como nos casos emblemáticos de Maria e Abraão. Nesse contexto bíblico normalmente os anjos aparecem em sonhos. Daí a importância de interpretar o que estes pretendem nos transmitir. Os sonhos, por sua vez, costumam expressar nossas carências, dúvidas, perguntas ou interrogações. Desde um ponto de vista religioso, sábio é notadamente aquele que é capaz de ouvir os anjos e de interpretar os sonhos. Não com os ouvidos biológicos, e sim com o pressentimento do coração e da alma. Numa perspectiva poética, poderíamos dizer que os anjos são seres noturnos que habitam as trevas, trazendo luzes para iluminar o nosso caminhar diurno.
Diferentemente do que podemos imaginar, não são seres alados vindos do alto para acompanhar os passos dos mortais. Melhor seria vê-los como pessoas de carne e osso, com história, família e nome próprio, que vivem em nosso contexto social. Pessoas que, de tão simples, sinceras e amigas, em lugar de bajular nossa forma de comportamento, são capazes de nos corrigir, nos alertar ou nos avisar dos perigos que, sem dar-nos conta, podemos estar correndo. Mas também pessoas que, mesmo na hora do tropeço e da queda, do fracasso ou da desgraça, permanecem ao nosso lado para “o que der e vier”. Com efeito, existem os companheiros de copo, de festa e de alegria, de um lado, e os companheiros de sonhos, lutas, tristezas e esperanças, de outro. Enquanto os últimos se mantêm fiéis qualquer que sejam as circunstâncias, os primeiros tendem a nos deixar nos momentos mais difíceis e sombrios.
Convém também jamais esquecer que toda pessoa humana tem algo de anjo e algo de demônio. Ninguém é somente anjo ou somente demônio. Ninguém é o tempo todo anjo ou demônio. Somos uma mistura ambígua de ambos. Flores e espinhos convivem lado a lado no mesmo jardim; as espigas de trigo e as ervas daninhas nascem e crescem juntas no mesmo terreno. A predominância da dimensão angélica ou demoníaca varia de acordo com as mais variadas motivações. Vale ter presente que nos momentos de grande turbulência, seja ela pessoal, familiar, social, político-cultural ou ideológica, tanto oportunidades quanto oportunismos emergem conjuntamente. Agora mesmo, na calamidade do Rio Grande do Sul em geral, e da grande Porto Alegre, em particular, vandalismo e voluntariado se cruzam e recruzam pelas ruas e praças.
Em momentos de crise, de caos e de encruzilhada – “apocalipse” – a humanidade costuma revelar o que tem de pior e o que tem de melhor. Nessa tragédia do Sul do país, entretanto, queremos sublinhar a presença e a interferência dos anjos. Surgiram não do alto nem no meio da noite. Mas em plena luz do dia, provenientes de todos as partes, eles se fizeram prestativos: Resgatando pessoas e animais, coordenando as doações que chegam de todo país e, mesmo em meio a tanto “barulho”, revelaram-se capazes de parar para ouvir as histórias de quem perdeu tudo de uma hora para outra. Em lugar de asas, têm pés e mãos, brotam do chão encharcado, chegam de perto e de longe, caminham nas ruas alagadas e lamacentas, dispondo-se a servir as necessidades mais urgentes e necessárias.
Da mesma forma que em outras catástrofes climáticas, e estas têm sido cada vez mais frequentes e extremas, o povo brasileiro, de norte a sul e leste a oeste, foi capaz de se transfigurar em anjo. Anjo na coleta e envio de produtos de primeira necessidade, anjo no socorro a assistência imediata às vítimas de tantas e tamanhas tragédias, anjo para abrigar e proteger os desalojados e desabrigados. Anjo da presença, da ajuda e da escuta. Anjos que podem ser parentes e vizinhos, conhecidos ou desconhecidos, bombeiros, profissionais do socorro. Uma população que não mede esforços para levantar os “caídos”, vitimados por um volume de chuvas sem precedentes e por consequentes deslizamentos, até vê-los caminhar com as próprias pernas. Mas, de forma toda particular, uma população que se levanta e se põe em marcha, que se irmana e se faz solidária “nas alegrias e nas esperanças, nas tristezas e nas angústias” dos mais necessitados, como lemos na abertura da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II.
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A hora e a vez dos anjos. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU