07 Mai 2024
"O sistema capitalista de produção, mercado e consumo revela-se cada vez mais antropofágico. Ao cobiçar tudo o que existe e ao elevar à máxima potência a o uso da força humano-animal, o sistema está devorando a si mesmo. Um organismo que se autodevora não pode subsistir eternamente. Quem nos ensina o cuidado e a convivência com tudo aquilo que nos cerca, são justamente os povos originários, indígenas, quilombolas, inúmeros grupos de mulheres".
O artigo é do Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM, que participou do Encontro Nacional dos Articuladores do Grito, em São Paulo.
Ao celebrar os 30 anos do Grito dos Excluídos constata-se, desde logo, o tema “vida em primeiro lugar” como uma espécie de fio condutor do processo nessas três décadas. Tanto que acabou se convertendo no tema de todos os Gritos. Note-se que não se trata de “vida humana”, mas simplesmente de VIDA, o que abrange todas as formas viventes que habitam o planeta Terra, a “nossa casa comum”. O que nos leva ao lema desde ano de 2024: Todas as formas de vida importam, mas quem se importa? Um olhar atento aos lemas do Grito nesse período de trinta anos permite identificar alguns tópicos ou marcas que têm acompanhado tais mobilizações. A esse respeito, será possível destacar cinco binômios para entender o contexto histórico e evolutivo do Grito. Vale alertar que, de um lado, nem sempre os binômios correspondem literalmente aos lemas e, de outro, todos eles se cruzam e recruzam. Há temáticas transversais e outras que, ao longo do processo, aparecem e reaparecem com certa frequência.
A temática da soberania se faz presente com predominância em seis lemas (1998, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003). Contrasta e combate o colonialismo histórico. Estamos no campo da geopolítica, que se pergunta como se insere o país no cenário da economia mundial. Verifica-se, de imediato, que o colonialismo ainda é uma realidade dos dias atuais. Desde 1500, com os ciclos econômicos, o Brasil se especializa como terra de periferia, cujo papel é fornecer comodities e matéria prima para as metrópoles. Sua situação, entretanto, não mudou radicalmente. Hoje a nação segue enviando para os países centrais minério de ferro, grãos, carne, etc., cuja manufatura gera emprego não aqui, mas lá fora.
Uma tese negativa acompanha esses cinco séculos de história. No Brasil (e na América Latina), onde a terra, solo e subsolo, foi mais rica, o povo se tornou mais pobre, senão miserável. A riqueza não apenas coexiste com a pobreza, mas a produz de forma sistemática. Ao atrair os abutres, explora e saqueia tudo o que pode servir de lucro e acumulação de capital. Depois abandona o povo com a carniça e na penúria. Bons exemplos disso: o povo Yanomami, onde o nióbio, atrai os garimpeiros e decreta a fome e morte de sua gente; o Vale do Jequitinhonha, onde o ouro e o diamante geraram a pobreza da população; a região de Araçuaí-MG, onde a descoberta do lítio está dificultando a vida dos moradores locais; e, saindo do país, as minas de prata de Potosí, onde o metal deu origem à carência de nossos dias. O desafio aqui pode ser resumido em uma frase: como colocar as riquezas do país a serviço das necessidades básicas de sua gente?
O tema das mudanças com participação popular prevalece também em seis lemas (2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009). Esse insistente anseio por transformações estruturais revela, retrospectivamente, uma trajetória de carência e abandono. Mais uma vez, as riquezas do solo e do subsolo servem para enriquecer os centros mundiais do poder, não a população local. Entramos aqui na área da política do bem-estar comum. Mas o que se nora é uma política historicamente marcada por entraves, impasses e burocracia ineficaz. “Os donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro, são retrógrados e obtusos. Sequer se mostram capazes das reformas básicas do próprio capitalismo, como o é a questão agrária e agrícola.
Quem quer que esteja no poder, tropeça com a inércia conservadora das oligarquias estaduais. Sabemos bem quem são os donos da Bahia, do Maranhão, do Amazonas, das Alagoas, do Ceará, e assim por diante. Não é diferente, hoje em dia, com a força e o poder das oligarquias das comunicações, do petróleo, da indústria, do agronegócio, na Internet. O mercado globalizado e os representantes dessas oligarquias nos três poderes da União, se unem para impedir qualquer forma de reforma que mexa com seus interesses, benesses, riquezas e privilégios. Na senzala, sobram apenas os favores, as migalhas. E quando os moradores da senzala procuram, através da organização popular, transformar os favores em direitos adquiridos, vem o chicote, o tronco, o capitão do mato, a polícia, o exército – enfim, a repressão. Neste ponto, a democracia brasileira revela toda sua fragilidade. Por isso não basta eleger os governos (nacional, estadual e municipal), trata-se de combater o Estado em suas formas mais brutais e excludentes.
Por nada menos do que nove vezes, a preocupação com trabalho e direitos humanos emergem nos lemas (1996, 2010, 2011, 2012, 2014, 2017, 2019, 2020, 2021). Somente a palavra “direitos” encontra-se presente seis vezes. Por que tanta insistência? A verdade é que o trabalho consiste em um direito que abre as portas para vários outros, tais como moradia, saúde, educação, transporte, segurança, etc. O que verificamos, em particular após a crise prolongada que começa no início dos anos de 1970, é uma progressiva precariedade das relações de trabalho. Nessa crise que se aprofunda década a década, aquele emprego estável que confere igualmente certa estabilidade ao trabalhador e família, torna-se um luxo de poucos. No momento atual, não falta trabalho, mas emprego regular. Em lugar deste, surgem os bicos, os serviços temporários, provisórios, instáveis, efêmeros. Pior, serviços sujos e pesados, perigosos e mal pagos. Nem mesmo os que se encontram empregados estão ao abrigo da carência e da vulnerabilidade. A massa de desempregados e dos que atual no mercado informal, por sua vez, tende a reduzir a massa salarial.
Um gigantesco “exército de reserva” – no Brasil e no mundo – erra de fronteira em fronteira em busca de algo para sobreviver. Em todo planeta, mais de 300 milhões de pessoas não moram no país em que nasceram, isso sem contar os deslocamentos internos para as safras agrícolas e as grandes obras, por exemplo. O quadro atual nas relações entre capital e trabalho pulveriza não apenas as classes trabalhadoras em sua consciência e capacidade de organização, mas sobretudo as associações e sindicatos trabalhistas. Evidentemente, resulta daí a crescente precariedade e vulnerabilidade do trabalho. Este vem sendo banalizado pela nova tecnologia, que dispensa muita mão-de-obra, em especial no agronegócio. Daí que, pelas ruas, praças e campos não é difícil encontrar pessoas formadas, capacitadas, mas com dificuldade de arrumar emprego, coisa que se torna ainda mais complicada para os migrantes e refugiados. Com essa porta cerrada, os direitos socioeconômicos ficam prejudicados. E, mais uma vez, os governos reféns do mercado global e das oligarquias locais, ficam quase que impossibilitados de levar adiante políticas públicas voltadas, seja para o pequeno produtor na zona rural, seja para o micro e médio empresário na cidade. Expressões como reforma trabalhista, flexibilização das leis que regulam o trabalho, terceirização e uberização, para os trabalhadores e trabalhadoras, acabam tendo um sabor amargo de menor poder aquisitivo.
O núcleo da justiça e dignidade humana é tema prevalecente, não literal, em três lemas (1987, 2016, 2018). Encontramo-nos aqui no coração dos sonhos, lutas e esperanças de qualquer cidadão que ama a terra em que nasceu. Por toda a parte, vemos aumentar o número dos “condenados da terra”, para usar a expressão de Frantz Fannon. De onde vem essa disparidade cada vez maior entre o pico e a base da pirâmide social. Vale um exemplo: uma metrópole como São Paulo oferece diariamente uma quantidade considerável de novos apartamentos, prédios surgem do dia para a noite, como cogumelos depois da chuva; ao lado disso, cresce o déficit habitacional da capital paulista, por uma parte, e existem hoje na cidade 500 mil unidades vazias. Que esperam? Especulação imobiliária de terrenos e unidades habitacionais. Enquanto isso, as praças de todas as capitais do Brasil se enchem de novos moradores de rua, os quais passam a viver da caridade pública: cesta básica e “quentinha” (marmita). O pão da esmola, por mais solidário que seja, será sempre um pão regado com as lágrimas da vergonha. Só o pão provindo do suor do trabalho dignifica.
A distância crescente entre os andares de cima e os andares debaixo da pirâmide social tem sido medida com propriedade por não poucos cientistas sociais. Em termos globais, podemos destacar os estudos de Thomas Pikety sobre a Economia da desigualdade. O autor mostra que nos últimos 50 anos, de 1980 a 2020, a curva das assimetrias socioeconômicas tem se acentuado muito na direção de uma concentração cada vez mais de renda/riqueza, por um lado, e de pobreza, miséria e fome, por outro. Aqui no Brasil, podemos indicar os livros de Jessé de Souza, em especial A elite do atraso e A ralé brasileira. Disso decorre o aumento geral, seja dos migrantes e itinerantes, seja da população “descartável” – aquela que nem trabalha, nem consome, o que desnuda as contradições inerentes do sistema capitalista de produção. Pela primeira vez na história, além dos milionários e bilionários, já se fala de trilionários. Contradição das contradições: o mundo hoje produz mais alimento do que é capaz de consumir, ao mesmo tempo que cerca de um bilhão de pessoas não ingere o número mínimo diário de calorias e toneladas e toneladas de alimentos são jogadas no lixo. Vele insistir: não só riqueza e pobreza coexistem, mas a riqueza produz a pobreza.
O tema do “Brasil que queremos”, de uma forma ou de outra, transparece em cinco lemas (2013, 2015, 2022, 2023, 2024). Como podemos ver, embora seja uma bandeira que está na raiz do Grito, desde as discussões em torno das Semanas Sociais Brasileiras (SSBs), ganha força nos últimos anos, incluindo esta celebração das três décadas do Grito. Com efeito, quando gritamos que “todas as formas vidas importam”, estamos incluindo a sociedade como um todo, o que nos leva ao chamado projeto popular para o país. Mas esse projeto popular, em todas as mobilizações deste processo, tem tido a sabedoria de fugir de um nacionalismo rígido e excludente. Ele inclui o projeto de nação, sem dúvida, mas se abre às relações com todo o planeta. De resto, justamente no decorrer deste Encontros dos Articulares Nacionais do Grito, assistimos à tragédia do Rio Grande Do Sul, agudizada pelas mudanças climáticas que mexem com todas as formas de vida do planeta, ou se quisermos, com a biodiversidade.
Convém concluir com uma preocupação que, nas últimas décadas, vem tomando conta dos ambientalistas, dos cientistas sociais, das autoridades governamentais e de muitas outras entidades e organizações. Trata-se especificamente do projeto que tem regulado as iniciativas políticas e econômicas de todos os países desde a Revolução Industrial. Projeto de exploração: exploração dos recursos naturais, até a última forma de vida existente ou até o último barril de petróleo; exploração da força de trabalho humano e animal, até a última gota de sangue, suor e lágrima; exploração do próprio patrimônio cultural da humanidade, onde as mais belas e perfeitas expressões artísticas se convertem em mercadoria. Aliás, terra, água, ar, mão-de-obra humana, produtos de todo tipo, obras de arte, tudo pode ser comprado e vendido. Tudo em função da expansão dos lucros e da acumulação crescente do capital.
O desafio consiste em passar desse projeto de exploração para um projeto do cuidado e do convívio. Cuidar e saber conviver com outros povos, pessoas, culturas e nações; cuidar e saber conviver com outras formas de vida, animal e vegetal, terrestre ou marinha; cuidar e saber conviver como o ritmo da matéria inorgânica, cuja velocidade e aceleração, quando vertiginosamente exacerbadas, podem levar à destruição do Planeta Terra, com tudo e todos que nele habitam. Nessa perspectiva, o sistema capitalista de produção, mercado e consumo revela-se cada vez mais antropofágico. Ao cobiçar tudo o que existe e ao elevar à máxima potência a o uso da força humano-animal, o sistema está devorando a si mesmo. Um organismo que se autodevora não pode subsistir eternamente. Quem nos ensina o cuidado e a convivência com tudo aquilo que nos cerca, são justamente os povos originários, indígenas, quilombolas, inúmeros grupos de mulheres. Em outras palavras, como passar da “globalização da indiferença à cultura do encontro, do diálogo e da solidariedade”, como insiste o Papa Francisco nas cartas encíclicas Laudato Si’ e na Fratelli Tutti.
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