"O maior comprometimento da renda das famílias mais pobres é com moradia ou decorrente das condições da moradia. Há uma relação direta entre a perda de renda e o crescimento dos despejos ou surgimento de bairros nas periferias das periferias", diz o pesquisador
Em 2019, o déficit habitacional brasileiro estava estimado em 5,876 milhões de domicílios. O fator determinante que explica esse fenômeno é a falta de renda, que não permite às famílias nem comprarem a casa própria nem pagarem o aluguel, cujo valor aumenta a cada ano. "O ônus excessivo com aluguel", um ano antes da pandemia, "nas regiões metropolitanas representava 61% do déficit habitacional. Vale ressaltar que 88% das famílias que compõem o déficit habitacional têm renda familiar de até três salários mínimos", informa Luiz Kohara, na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Segundo o engenheiro, somente durante a pandemia "14.301 famílias foram removidas, 84.092 estão sob ameaças de despejo iminente e 7.356 famílias conseguiram se manter na moradia", sem falar naquele contingente de pessoas que vive em situação de rua. Apesar de o direito à moradia ser reconhecido no artigo 6º da Constituição Federal, na prática, este ponto da carta magna não tem sido respeitado. "O despejo é uma das situações mais degradantes a que uma pessoa ou família pode se expor, além de todos os prejuízos materiais e morais. Apesar de o acesso à moradia digna ser um direito constitucional, a maioria do judiciário não faz cumprir este direito social; pelo contrário, atende o direito à propriedade de quem deixa abandonados áreas ou edifícios por interesses especulativos", assinala.
Enquanto o déficit habitacional aumentou durante a crise sanitária, pontua, "o setor da construção civil foi um dos menos afetados com a pandemia, isto porque é um setor totalmente financeirizado, que sobrevive da estrutura da desigualdade econômica e não atende as populações de menor renda". Por sua vez, lamenta, "as prefeituras, como é o caso de São Paulo, aproveitam deste momento de pandemia, quando há menor mobilização social e dificuldades para participação social, e estão investindo nos programas de intervenções urbanas para assegurar ao setor imobiliário terra e alta lucratividade por meio de Parcerias Público-Privadas - PPPs, mudança no Plano Diretor e Programa de Intervenção Urbana, executados pelo setor privado. O período da pandemia tem sido utilizado para 'passar a boiada' do interesse dos governos neoliberais".
Luiz Kohara (Foto: Reprodução | Youtube)
Luiz Kohara é engenheiro civil pela Fundação Armando Álvares Penteado, mestre em Engenharia Urbana e Construções Civis pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP, doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e realizou o pós-doutorado na área de sociologia urbana também pela USP. É fundador e colaborador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos desde 1988, e foi assessor da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2001 e 2004. É colaborador do Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais - CAIS na área de planejamento, monitoramento e avaliação de projetos sociais desde 2011.
IHU - O déficit habitacional já era uma realidade na sociedade brasileira antes da pandemia. Como essa situação se agravou ao longo da crise sanitária de Covid-19?
Luiz Kohara - A crise sanitária de Covid-19 expôs de forma abrupta as faces cruéis da extrema desigualdade social, econômica e urbana. Em países como o Brasil, em que as desigualdades são gritantes, grande parcela da população, especialmente urbana, trabalha no mercado informal sem seguridade social, e mora em condição de precariedade extrema. Consequentemente, os efeitos da pandemia se alastraram rapidamente nos grupos mais vulneráveis, pela dificuldade de manter as condições de proteção necessárias para impedir a contaminação e, também, foram as mais atingidas com o desemprego e rebaixamento salarial.
A moradia digna, apesar de reconhecida no artigo 6º da Constituição Federal como um direito social de responsabilidade do Estado, historicamente não tem recebido investimentos públicos suficientes para atender as famílias de baixa renda. Se de um lado o Estado não atende, acessar o mercado formal da habitação é impossível para grande parcela da população urbana brasileira, pois prevalece a lógica perversa, em que a terra urbana localizada em área com infraestrutura construída pelo Estado tem o valor elevadíssimo, que varia conforme a especulação fundiária estabelecida pelo setor privado.
Conforme a Fundação João Pinheiro (2021) [1], em 2019 o déficit habitacional estimado para o Brasil era de 5,876 milhões de domicílios, composto pelas situações de ônus excessivo com aluguel, habitações precárias e coabitação. Sendo que o ônus excessivo com aluguel vem crescendo a cada ano, em 2019, nas regiões metropolitanas representava 61% do déficit habitacional. Vale ressaltar que 88% das famílias que compõem o déficit habitacional têm renda familiar de até três salários mínimos.
Os trabalhadores de menor renda foram os mais atingidos com as consequências da Covid-19, com o rebaixamento salarial e a perda de emprego. Durante o período da pandemia, o desemprego, que já apresentava índices elevados, atinge mais de 15 milhões de pessoas e mais de cinco milhões de pessoas desalentadas. Segundo o Centro Brasileiro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo - Made-USP, 19,3 milhões estão na extrema pobreza, isto é, não têm o que comer. Nas ruas das cidades do Brasil é visível o crescimento de pessoas e famílias que perderam moradia.
IHU - O que a pandemia evidenciou sobre a condição de vida dos brasileiros que moram nas favelas e periferias das cidades brasileiras?
Luiz Kohara - Os dados dos órgãos públicos da saúde e inúmeras pesquisas mostram que o número de contaminações, hospitalizações e óbitos apresenta maior ocorrência nos bairros periféricos das cidades, onde a infraestrutura e as condições das moradias são mais precárias. Na cidade de São Paulo, essas ocorrências chegam à proporção de até três vezes mais quando comparadas entre bairros periféricos e bairros de classe média alta.
Com a elevação dos custos da moradia, é crescente o adensamento nas favelas e nos assentamentos populares, o que torna difícil o isolamento social, com grande número de pessoas circulando em pequenas vielas e grande número de pessoas compartilhando o mesmo cômodo. Além disso, grande parte destes locais não possui saneamento básico e muitos não são abastecidos com água potável para adequada higienização. Situação agravada ainda mais para os trabalhadores de baixa renda que mantiveram os trabalhos de forma presencial utilizando transportes públicos lotados, além da insegurança de revelar sintomas ao patrão e dificuldades de acesso aos serviços de saúde.
A pandemia evidenciou as condições de barbárie a que milhões de brasileiros estão submetidos e de como é fundamental a moradia digna.
IHU - De que modo o aumento da pobreza intensifica os problemas relacionados à habitação e moradia no país?
Luiz Kohara - A primeira ação das famílias que perdem a renda é diminuir os custos do acesso à moradia, o que significa mudar para bairros distantes onde há menos infraestrutura e moradias mais precárias, nas favelas e ocupações. O crescimento dos despejos decorre do empobrecimento da população.
O maior comprometimento da renda das famílias mais pobres é com moradia ou decorrente das condições da moradia, como, por exemplo, o custo de mobilidade entre a moradia e o trabalho. Há uma relação direta entre a perda de renda e o crescimento dos despejos ou surgimento de bairros nas periferias das periferias.
IHU - O que significa falar em moradia digna? Como a crise sanitária nos ajuda a refletir sobre essa questão?
Luiz Kohara - A moradia digna é a base estruturante que favorece aos moradores o acesso a todas as necessidades fundamentais para o pleno desenvolvimento humano e social. Portanto, a moradia digna é muito mais que um abrigo com boas condições de construção, espaços adequados conforme o número de moradores e habitabilidade; deve estar localizada em área sem risco geológico, com infraestrutura de saneamento básico (coleta de esgoto, água potável e coleta de lixo), com fácil acessibilidade aos serviços públicos de transportes, educação, assistência social, saúde, cultura, lazer e segurança. Também é fundamental que o custo da moradia não comprometa mais de 30% da renda familiar, caso contrário, outras necessidades ficarão comprometidas.
Eu fiz uma pesquisa, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, sobre a relação das condições de moradia e o desempenho escolar das crianças da 4ª série do ensino fundamental que residem em cortiços, na qual pude verificar que a precariedade da moradia é determinante para o desempenho escolar. Na amostra que estudei, de famílias com faixa de renda próximas, a chance de uma criança que reside em cortiço repetir de ano era quatro vezes maior que a de crianças que viviam em moradias adequadas.
A crise sanitária nos reforça o que já é conhecido sobre a urgência da garantia a todos os brasileiros à moradia digna. São milhões de brasileiros sem oportunidades de desenvolver suas capacidades e submetidos a mortes precoces devido às consequências de morar em péssimas condições.
IHU - Que articulações sociais em defesa da vida da população em situação de rua e por melhores condições de habitação estão sendo propostas para enfrentar esses problemas?
Luiz Kohara - A população em situação de rua são pessoas desabrigadas, sós ou com familiares, sem nenhuma proteção e privacidade. Como se preservar quando não se tem nem uma moradia que permita manter o isolamento social? Os centros de acolhimento que abrigam esse segmento social, em geral, são superlotados, podendo ser fonte de maior contaminação. Dessa forma, esta população está cotidianamente exposta a todos os tipos de violações que ferem a dignidade hu mana, agora agravadas com a crise sanitária de Covid-19.
As políticas públicas para a população em situação de rua são assistencialistas e emergenciais e apresentam baixa efetividade para a realidade que é estrutural. Há falta de alternativas para sair dessa situação, que exige soluções articuladas, intersetoriais. O crescimento da população em situação de rua é visível em todas as cidades do Brasil, e a pandemia mostrou que é preciso mudanças no sentido de passarmos de políticas públicas paliativas para políticas públicas estruturantes, como a de moradia. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, a partir do CadÚnico, do Censo e do Sistema Único de Assistência Social - Suas, identificou, em março de 2020, mais de 220 mil pessoas em situação de rua no Brasil. Com a pandemia tem se verificado, por meio da imprensa e de organizações que atuam diretamente com este segmento social, o grande número de pessoas que foram para a situação de rua por terem perdido o emprego e não conseguirem se manter em uma casa.
Com a chegada da Covid-19, houve mobilização em todo o Brasil do Movimento Nacional da População de Rua, da Pastoral Nacional do Povo da Rua, dos Comitês Locais da população em situação de rua, inúmeras organizações da sociedade e alguns representantes do legislativo, judiciário e executivo no sentido de buscar alternativas para proteção da população em situação de rua. Ocorreram alguns avanços emergenciais importantes, como a priorização da vacinação, a distribuição de alimentação, trabalhos de consultórios de rua, entre outros, mas bastante insuficientes para enfrentar a pandemia e a situação indigna a que essas pessoas estão submetidas.
Vejo que é fundamental o atendimento habitacional para a população em situação de rua, sendo que o acesso deve ser como um serviço público, assim como deve ser a educação e a saúde, cujo acesso é desvinculado da capacidade de pagamento, mas em função da necessidade. É preciso mudar a lógica mercadológica das políticas públicas de habitação.
Fiz uma pesquisa com pessoas que estiveram em situação de rua e acessaram a moradia nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Fortaleza, na qual pude verificar que o acesso à moradia articulado com outros serviços fundamentais possibilitou estruturação da vida e melhoria das condições de vida. As experiências internacionais de Housing First (Moradia primeiro) têm mostrado que a população em situação de rua, ao acessar primeiro a moradia, tem tido maior efetividade e eficácia para saída desta condição a custos mais baixos para o poder público.
IHU - Neste período de pandemia, como o senhor ressaltou, observa-se também o aumento do número de despejos e de ocupações, associadas, em geral, à perda de renda das famílias que, sem trabalho e renda, não conseguem pagar o preço dos aluguéis. Como reverter essa situação pós-pandemia? Quais são os desafios nesse sentido?
Luiz Kohara - A ocupação de áreas ou edifícios abandonados é a única saída para as famílias quando não há mais possibilidades para o acesso à moradia, mesmo que precária. Em São Paulo, um quarto de cortiço em condições precárias, com cerca de 12 m quadrados, custa em média R$ 900,00. Como é possível uma família com renda de um salário mínimo ou um pouco mais se manter? Mesmo nas favelas, os valores de aluguéis estão elevados. Assim, se pagar o aluguel, não come, se comer, não paga aluguel.
O despejo é uma das situações mais degradantes a que uma pessoa ou família pode se expor, além de todos os prejuízos materiais e morais. Apesar de o acesso à moradia digna ser um direito constitucional, a maioria do judiciário não faz cumprir este direito social; pelo contrário, atende o direito à propriedade de quem deixa abandonados áreas ou edifícios por interesses especulativos.
Com a situação da pandemia houve mobilizações dos movimentos populares, ONGs e diversos outros setores da sociedade. Comprometidos com a luta por dignidade humana, se mobilizaram em todo o Brasil com a Campanha Despejo Zero, com pressão social para incidência no executivo, no judiciário e no legislativo. Esta luta obteve importantes vitórias com aprovações de legislações estaduais e em trânsito de lei federal para impedir os despejos no período da pandemia. Foi importante também a Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais - ADPF 828 do Supremo Tribunal Federal no sentido de impedir despejo neste período da pandemia.
É fundamental a mobilização social de todos os setores da sociedade para exigência da efetivação do direito à moradia e, também, impedir os despejos. É preciso que o Estatuto da Cidade seja cumprido.
Conforme dados da Campanha Despejo Zero, durante a pandemia, 14.301 famílias foram removidas, 84.092 estão sob ameaças de despejo iminente e 7.356 famílias conseguiram se manter na moradia.
É preciso enfrentar o grave problema da desigualdade social e econômica [2], a qual é agravada pela desigualdade racial decorrente do racismo estrutural, que mantém baixo rendimento aos trabalhadores e acumulação de riqueza de uma minoria, o que, somado à falta de políticas públicas, gera o grave problema da habitação.
IHU - Quais os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre os fenômenos da gentrificação e especulação imobiliária?
Luiz Kohara - O setor da construção civil foi um dos menos afetados com a pandemia, isto porque é um setor totalmente financeirizado, que sobrevive da estrutura da desigualdade econômica e não atende as populações de menor renda. Não é por acaso que os milionários do Brasil enriqueceram de forma exorbitante na pandemia.
O empobrecimento da população no contexto da pandemia, a retirada dos direitos dos trabalhadores e os cortes nos investimentos sociais têm como consequência o empobrecimento das populações que já se encontravam em situação de fragilidade social. Dessa forma, há “expulsão natural” das áreas onde há melhor infraestrutura para áreas com menos infraestrutura, onde o custo com a moradia é menor.
As prefeituras, como é o caso de São Paulo, aproveitam deste momento de pandemia, quando há menor mobilização social e dificuldades para participação social, e estão investindo nos programas de intervenções urbanas para assegurar ao setor imobiliário terra e alta lucratividade por meio de Parcerias Público-Privadas - PPPs, mudança no Plano Diretor e Programa de Intervenção Urbana, executados pelo setor privado. O período da pandemia tem sido utilizado para “passar a boiada” do interesse dos governos neoliberais.
IHU - Que pontos do sistema de proteção social brasileiro precisam ser revistos e alterados em função dos efeitos da crise de Covid-19, a fim de atender os que necessitam, especialmente em relação à habitação?
Luiz Kohara - A pandemia de Covid-19 mostrou que o Sistema Único de Saúde - SUS deve ser fortalecido na sua estrutura e ter mais investimentos. Mesmo com as suas limitações, decorrente da lógica neoliberal dos governos, ele foi fundamental para todos os brasileiros, principalmente para os de menor renda. Sem o SUS, como milhões de brasileiros vivem em condições precárias, teríamos uma tragédia ainda maior.
A renda básica emergencial, com valores de pelo menos um salário mínimo, é fundamental. No período em que a renda básica era de R$ 600,00, recebi relatos de pessoas em situação de rua que, em parceria com amigos, conseguiram acessar pelo menos um quarto para se proteger, e casos de famílias que puderam ter o mínimo de alimentação. A renda básica deve ser uma política pública perene.
A fragmentação ou a desarticulação entre as políticas públicas faz que elas tenham baixa efetividade. É fundamental que para as populações com alta vulnerabilidade, as políticas públicas de habitação, trabalho, assistência social, saúde e educação atuem de forma conjunta e enfrentem os problemas de forma integral.
É fundamental ações para que os segmentos historicamente excluídos, como os indígenas, quilombolas, população negra, LGBT+, e todos que não tiveram oportunidade possam desenvolver suas potencialidades com investimentos públicos. Devem ser parte do potencial social do Estado campanhas contra racismos, preconceitos e criminalizações que ferem a dignidade humana e ainda culpabilizam as vítimas e enfraquecem as suas forças para superação. Em termos da habitação deve haver uma atenção especial para as mulheres solos, que mantêm as suas famílias.
[1] Déficit habitacional no Brasil – 2016-2019 / Fundação João Pinheiro. Belo Horizonte: FJP, 2021. (Nota do entrevistado)
[2] Conforme dados da PMSP, 1% dos proprietários possuem 45% do valor imobiliário da cidade de São Paulo, situação que não deve ser diferente em outras grandes cidades do Brasil. (Nota do entrevistado)