04 Mai 2024
"O filme de Alex Garland mostra aos americanos que uma guerra civil não será muito diferente daquilo que veem na televisão quando são informados das guerras na África e no Oriente Médio. Seu país, paradigma de progresso, não será tão especial quanto vocês pensam", escreve Iñigo Sáenz de Ugarte, em artigo publicado por El Diario, 02-05-2024.
Iñigo Sáenz de Ugarte é jornalista com experiência em imprensa, rádio, televisão e internet. Fez parte da equipe fundadora do jornal Publico, onde começou como redator-chefe e terminou como correspondente em Londres. Entre 1998 e 2006, esteve na Informativos Telecinco. Nesse período, foi editor do noticiário matinal, cobriu notícias de Israel, Palestina, Iraque e Afeganistão e dirigiu o site Informativos Telecinco. Desde 2003, escreve o blog Guerra Eterna. É vice-diretor do eldiario.es.
Alex Garland tem algo a dizer ao povo americano. Querem saber qual é o preço da polarização quando esta atinge o nível mais extremo, que é a guerra civil? Quando o presidente viola a Constituição e outros centros de poder do país decidem acabar com ele pela força e ninguém consegue prevalecer no início da crise? 'Guerra Civil' é a resposta. Não espere que os jornalistas o ajudem a compreender o que está acontecendo. Eles estão tão confusos e fartos quanto vocês. O certo é que eles pegarão um carro e partirão para o lugar onde ninguém em sã consciência deveria estar.
Um dos requisitos habituais nos thrillers políticos é oferecer ao espectador uma série de fatos para explicar este universo alternativo onde ocorrem acontecimentos quase inimagináveis. Em 'Sete Dias de Maio' (1964), o presidente dos EUA tenta assinar um tratado de desarmamento com a União Soviética, que é rejeitado pela oposição e pela liderança militar. O presidente do Estado-Maior decide responder com uma tentativa de golpe de Estado.
Em 'Syriana' (2005), o filho do emir de um país do Golfo Pérsico aspira modernizar o seu país, abandonar a sua relação de dependência com os Estados Unidos e usar o dinheiro do petróleo a favor dos seus cidadãos e não das empresas de armamento. A CIA fará com que ele não tenha sucesso.
Em ambos os casos, os filmes oferecem elementos ficcionais plausíveis. 'Guerra Civil' rouba do espectador elementos da trama que ajudariam a entendê-la. Como tudo começou. Qual foi a decisão do presidente que desencadeou a guerra. O que poderia ser feito para evitá-lo. É um dos grandes sucessos de Garland. O que oferece é a paisagem desolada de uma guerra civil em que as razões do conflito deixaram de fazer sentido.
A única coisa que se impõe a todos é a destruição, a aniquilação de uma sociedade democrática. Os combatentes deixaram de se perguntar por que lutam. Eles apenas seguem ordens. A única coisa que importa para eles é a sobrevivência. E o que pode impedir é simplesmente outro homem armado escondido numa casa próxima que pretende matá-lo.
Uma das melhores falas do filme está incluída no trailer. Os criadores sabem que simboliza muito do que querem contar. A maioria dos críticos entendeu assim e por isso o inclui em seus artigos. “Que tipo de americano você é?”, pergunta um soldado armado com ridículos óculos de sol vermelhos aos repórteres assustados. Seria um erro grave considerar isso uma piada, daquelas com as quais se pode perder a vida. Ele é alguém que não se importa em matar. O sujeito ultrapassou o limite em que isso lhe causa problemas.
As guerras estão cheias de personagens desse tipo. Procurar neles uma resposta ideológica é uma perda de tempo, exceto no nível mais básico, por exemplo no ódio aos estrangeiros. Anos atrás, na vida civil, eles poderiam ser personagens medíocres ou irrelevantes. Agora eles têm uma arma. Esse é todo o poder que eles precisam.
No entanto, essa frase serve para colocar o espectador americano no ponto exato. É aqui que se deve concentrar, e não no fato de serem os estados da Califórnia e do Texas, um progressista e outro conservador, que se estão a rebelar contra o presidente, o que tem causado alguma perplexidade entre os críticos.
A chave não é como você chegou lá, mas o que acontece a partir desse momento.
O que teremos é uma situação não muito diferente daquela que vemos na televisão quando somos informados sobre as guerras civis na África e no Oriente Médio. Aqueles lugares que parecem tão distantes, tão primitivos. O seu país, um paradigma de progresso e democracia, não será tão diferente como vocês pensam. Estas são as consequências que sofrerão se deixarem a sociedade de vocês descer ladeira abaixo.
Os protagonistas do filme são jornalistas, profissão que não está exatamente na lista das mais valorizadas nas pesquisas realizadas nos países ocidentais (na verdade, nunca esteve). Garland, nascido em Londres em 1970, não escondeu que os apresentou como “os heróis”. É interessante saber que não o são porque têm as respostas para tudo o que está acontecendo. Eles não apresentam programas de entrevistas que sabem o que vai acontecer. Na verdade, estão tão perplexos quanto os cidadãos que vivem em áreas que não foram afetadas pela guerra e que vivem numa espécie de oásis por trás de todo o horror.
A diferença é que os jornalistas não podem recuar. Eles devem seguir em frente, mesmo que seja por aquela ideia maluca de conseguir uma entrevista com o fanático que ocupa a Casa Branca.
“Dizer que você odeia jornalistas é como dizer que você odeia médicos. Você precisa dos médicos. Não é uma questão de gostar ou não de jornalistas. Você precisa deles, porque são a forma de controlar os governos”, disse Garland. Ou pelo menos tente. E pagarão um preço por isso, ainda mais numa guerra, como vimos em Gaza.
Joel (Wagner Moura) é o repórter para quem nada é melhor do que liberar adrenalina por todos os poros. Nenhum momento é ruim se a pessoa se permite sentir-se vivo. Jessie (Cailee Spaeny) é a jovem estreante cuja falta de experiência não anula sua determinação em se aproximar do nível dos profissionais que admira. Lee (Kirsten Dunst) é a bússola moral do grupo, aquela que não esquece que seu papel é ser testemunha e não protagonista, mesmo sabendo que no fim poucos prestarão atenção neles.
É uma aspiração modesta, ainda mais em tempos turbulentos, e também realista. Existe sempre o risco de supervalorizar o trabalho dos jornalistas. É por isso que ‘Guerra Civil’ é um filme pessimista. Não importa quantas vezes eles avisem do que está por vir. Poucos vão ouvir.
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“Guerra Civil” nos lembra o preço que pagaremos se nosso país afundar na loucura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU