A Jacobin se encontrou com o lendário diretor Ken Loach, aos 87 anos, para conversar sobre seu último filme, The Old Oak, a influência da Nova Onda Tcheca em suas obras e por que o cinema de Hollywood é antitético à experiência da classe trabalhadora.
A entrevista é de Ed Rampell, publicada por Jacobin Brasil, 24-04-2024. A tradução é de Gustavo de Almeida Nogueira.
Desde que sua peça televisiva Cathy Come Home (1966) da BBC provocou mudanças nas leis sobre as pessoas em situação de rua na Inglaterra, Ken Loach, filho de um eletricista, tem feito filmes sobre trabalhadores e pessoas comuns. Em suas produções, assistimos à luta dos personagens emaranhados em sistemas capitalistas injustos e cruéis — desde a classe trabalhadora na Grã-Bretanha até a Guerra do Contra na Nicarágua, passando pelas rebeliões irlandesas, pela campanha de organização sindical “Justice for Janitors” de Los Angeles e por ações secretas em Belfast — além de documentários como o In Conversation with Jeremy Corbyn (2016), em que entrevista o líder do Partido Trabalhista inglês.
The Old Oak (ainda sem título no Brasil) é o mais recente filme do cineasta socialista sobre as dificuldades cotidianas de pessoas comuns. Finalizando uma longa e distinta carreira dedicada a dramatizar e documentar os oprimidos de todo o mundo, o filme chega aos espectadores com o peso de tratar-se do derradeiro longa-metragem de Ken Loach — que completa oitenta e oito anos em junho deste ano. As aclamações à sua obra contam com duas Palmas de Ouro do Festival de Cannes, três prêmios César e três prêmios BAFTA — além de sua recusa em receber a medalha de Oficial da Ordem do Império Britânico, oferecida ao cineasta em 1977. Nas palavras do historiador de cinema David Thomson, “em sua dedicação e seriedade, ele é uma figura exemplar”. Nossa entrevista com Loach foi realizada por meio da plataforma Zoom em West Country, na Inglaterra.
O cineasta Ken Loach. (Foto: Creative Commons License)
Conte-nos sobre The Old Oak e o que o motivou a filmar essa história.
Fizemos dois filmes no nordeste da Inglaterra. O primeiro [Eu, Daniel Blake, 2016] sobre a forma como as pessoas vulneráveis não recebem o apoio financeiro a que têm direito por um Estado que vê a pobreza como uma forma de disciplinar punitivamente a classe trabalhadora. O segundo filme [Você não estava aqui, 2019] foi sobre a insegurança do trabalho, a economia em torno dos empregos temporários e informais. Nessas situações, o trabalhador não tem qualquer segurança no emprego e é visto como um contrato independente, quando na realidade trata-se de um empregado — porém, sem os direitos dessa posição e, na verdade, sem quaisquer direitos trabalhistas. Tratava-se das consequências desses trabalhos para a vida familiar.
A região do nordeste da Inglaterra desperta interesse por ser muito específica, por ter características singulares e uma cultura de classe trabalhadora muito forte. Ela se baseia nos antigos setores, como construção naval, aço e mineração de carvão. E todas elas desapareceram; todas elas foram fechadas. Os vilarejos são exemplos muito claros e visuais do que está acontecendo — ou seja, das consequências do neoliberalismo. Nada deve impedir que as empresas privadas obtenham o máximo de lucro possível. Portanto, não se pode tolerar sindicatos fortes, por exemplo. Não se pode tolerar organizações fortes. Não se pode tolerar a resistência dos trabalhadores e as demandas por melhores salários, porque isso atrapalha os lucros e a concorrência.
Temos tido governos neoliberais desde os anos 80. Ambos os principais partidos são agora partidos neoliberais, tanto o Partido Conservador quanto o que supostamente deveria ser o Partido Trabalhista, que de fato tornou-se também um partido de direita. É um pouco como os republicanos e os democratas nos EUA. Eles se revezam para exercer basicamente as mesmas políticas econômicas. As consequências são as mesmas.
A mina, as casas ao redor, a igreja, o bem-estar dos mineiros, o pub, a escola, o médico e o campo — quando a mina fecha, tudo fecha com ela, exceto as pessoas que ainda permanecem, e elas são abandonadas. Queríamos contar essa história, mas precisávamos de um catalisador que a revelasse. E Paul [Laverty] ouviu a história da chegada dos refugiados sírios da guerra na Síria. Eles foram enviados para lá porque ninguém dava notícias deles. A imprensa de direita não ficaria reclamando deles o tempo todo; são pessoas fora do radar, ninguém passa por lá — não veem motivo para isso. Eles chegam traumatizados da guerra e não trazem mais nada além de uma mala e a roupa do corpo. E a população local também é despossuída. Como essas duas comunidades conviverão?
Muitos dos moradores locais estão amargurados e irritados com o que aconteceu com seu vilarejo, que era uma comunidade próspera e forte. Agora ela está vazia. Paralelamente, tem-se a tradição antiga dos mineiros, baseada na solidariedade e no internacionalismo. Quando houve a grande greve de 1984, eles foram para outros países e pessoas de outros países foram para os seus, e eles foram recebidos com muita hospitalidade. O que aconteceu com isso? Essa tradição ainda existe? Ou ela foi dominada pela amargura, pela raiva e pelo ressentimento? Qual dessas duas tendências vencerá? Os sírios não falam o idioma local e não possuem nada. Eles poderão viver juntos? Ou o ressentimento vencerá no fim?
A indústria de Hollywood encarna uma cultura totalmente diferente dessa, uma maneira completamente diferente de ver o cinema. É difícil de conceber essa relação, porque como uma forma de abordar o meio, há algo intrinsecamente hostil à expressão da cultura da classe trabalhadora. Hollywood tem a ver com a construção de pessoas famosas nos filmes, o chamado star system. Trata-se de criar famas, de forjar pessoas para serem admiradas e adoradas. Isso vai contra a credibilidade, porque quando você assiste a uma grande atuação, as atuações anteriores dessa estrela lhe vêm à mente. É claro que já fizeram grandes filmes sobre as situações da classe trabalhadora. Mas a essência da produção cinematográfica de Hollywood é antitética à experiência real da classe trabalhadora.
Com relação ao elenco de The Old Oak, uma das suas exigências era a de que “os sírios do filme deveriam ser compostos somente por aqueles que se estabeleceram na região”. Quase todos os sírios desse longa-metragem são atores não profissionais. O mesmo acontece com alguns dos ingleses locais. O que inspirou essa abordagem?
Tal abordagem vem principalmente do simples fato de estar com as pessoas: observá-las, participar das mesmas organizações, reuniões, campanhas, preocupar-se com as mesmas coisas, estar ao lado delas e participar de suas manifestações. Escutá-las: acima de tudo, escutar. E relembrar a história de sua própria família. Meu pai era de uma grande família de mineradores. Embora trabalhasse em uma fábrica, todos os membros de sua família eram mineiros. É por isso. Você precisa se sentir parte dessa cultura, ou ao menos muito próximo a ela. A produção de filmes pode te levar a uma outra área social. Não somos antropólogos que buscando examinar outra espécie. Na verdade, fazemos parte dela, na medida do possível. Eu me sinto muito próximo a ela.
Com relação ao cinema, os neorrealistas italianos afirmavam que as histórias da classe trabalhadora são temas legítimos para os filmes. Eles diziam que não há problema algum em ir ao cinema para assistir às histórias da classe trabalhadora. Isso é muito importante.
Mas os filmes que tiveram mais impacto sobre mim foram os filmes da Nova Onda Tcheca de Miloš Forman, Jiří Menzel e outros diretores do gênero. Eles se deliciavam com a comédia humana, as conexões, os relacionamentos, a interação e o simples prazer da companhia das pessoas. Seus filmes eram repletos de prazer. A sensação da câmera como observadora, a maneira como eram filmados, como usavam as luzes, a humanidade calorosa deles — tudo isso era muito especial. Esses são os filmes aos quais tenho mais afinidade.
Você está lidando com uma das questões mais polêmicas dos EUA e da Europa no momento: refugiados e imigrantes, que são o cerne de The Old Oak.
Os imigrantes não puderam escolher o local para onde iriam. Apenas lhes foi dito que era ali que eles iriam morar, que era ali que eles iriam ficar, e lhes foram dadas casas. E eles receberam casas nessa área porque as casas são baratas. As pessoas do local foram embora, porque não há oportunidade de trabalho. Então, eles foram colocados em um lugar onde não havia trabalho, com pouquíssima infraestrutura, um número de escolas reduzido — as escolas já estavam sob pressão anteriormente. Os médicos estavam sob pressão porque alguns consultórios haviam fechado. Além disso, havia exigências adicionais para os imigrantes que não falavam inglês e quase nenhum apoio para eles. As autoridades locais estavam despreparadas porque não houve muita consulta.
Um outro problema é o de que quando as pessoas não têm nada, como as pessoas desses vilarejos, elas ficam com raiva, sentem-se alienadas e abandonadas, e dessa raiva surge a busca por um bode expiatório, alguém para colocar a culpa. É aí que o racismo pode surgir. Porque há pessoas a quem culpar. Eles dizem: nossos filhos não estão recebendo educação adequada — a culpa é dessas novas crianças. Não podemos ir ao médico — a culpa é dos imigrantes, não os queremos aqui. E isso pode se transformar em racismo. Esse é o terreno fértil no qual o racismo pode crescer. Ele começa com uma reclamação justificada. Não temos nada, não temos nada para compartilhar. É errado que eles tenham sido colocados aqui quando as coisas estão tão ruins, sem nenhuma ajuda extra. Uma reclamação justificada que se transforma em racismo.
O Old Oak culmina em um grand finale. Você vê o desfile, a marcha dos mineiros, como a alternativa a esse racismo, a essa divisão?
Bem, sim. Esse é um desfile real que acontece nessa área [Durham]. É a maior demonstração do país do poder da classe trabalhadora. São duzentas mil pessoas, de diferentes sindicatos de todo o país. É uma demonstração maciça do poder organizado da classe trabalhadora, e que é ignorada pela grande mídia. Nunca foi noticiado, é claro. Mas é um grande evento [anual].
É uma pequena coda no final do filme. O verdadeiro final do filme é a constatação de T. J. de que todo o trabalho que eles fizeram para reunir as pessoas não foi em vão — mesmo que eles não tenham mais o salão dos fundos [do pub], ou não tenham onde possam comer juntos. Eles encontrarão outra maneira. Mas a conexão que foi estabelecida não foi em vão.
O que significa a escrita em árabe na parte inferior do banner em inglês?
É o mesmo que as palavras em inglês na parte superior do banner: “Solidariedade” e “Resistência”.
Na era pós-[Margaret] Thatcher, houve uma tendência de filmes britânicos que eram o oposto do tipo de solidariedade que você está exaltando em filmes como The Old Oak. Os exemplos incluem Toque de Esperança (Brassed Off, de 1996), Ou Tudo ou Nada (The Fully Monty, 1997), Billy Elliot (2000), Kinky Boots (2005), e possivelmente Little Voice (1998) e As Garotas do Calendário (Calendar Girls, 2003).
Esses filmes apresentavam a ideia de que, para lidar com as mudanças na economia do Reino Unido, em vez de resistência militante e organização ou participação em lutas coletivas, os trabalhadores precisavam contar com o desenvolvimento de novos talentos para se dar bem na sociedade britânica. O que você acha dessa moda de filmes pós-Thatcher?
Eu procuro não criticar os filmes dos outros. Já é difícil fazer um filme sem que alguém o critique. Mas acho que o perigo é que eles podem se tornar sentimentais. De certa forma, Ou Tudo ou Nada é um filme que fala sobre a humilhação. Trata-se de homens habilidosos da classe trabalhadora sendo obrigados a tirar a roupa por dinheiro — é humilhante. É claro que há muita comédia, e a comédia pode ofuscar a humilhação. Mas a essência do filme é sobre a maneira com que nossos trabalhadores dignos e qualificados são humilhados. Essa foi a história que veio à tona. É claro que todo mundo gosta de dar boas risadas, e o perigo é que as risadas superem a humilhação forçada pela qual passaram.
O importante, o que muitas vezes as pessoas não percebem, é que a classe trabalhadora é forte. Os trabalhadores podem desligar o interruptor e tudo para. Não há transporte, não há produção, nada vai para as lojas, nada é vendido, nada é distribuído. Toda a economia pode parar. A classe trabalhadora tem esse poder. Aqueles que exploram os trabalhadores não têm esse poder. Toda a vida deles vem do lucro que extraem de outras pessoas. Se você não se politiza, você perde isso de vista e enxerga apenas a superfície. Mas a realidade é que, se há possibilidade de mudança, ela virá da classe trabalhadora. Não virá dos banqueiros, dos super-ricos, dos paraísos fiscais, virá da classe trabalhadora. Porque eles têm a necessidade de mudança. E, em segundo lugar, eles têm o poder de mudar. Até conseguirmos organizar isso, vamos perder. Mas nós temos o poder. É isso que muitas pessoas não percebem.
Como você descreveria suas próprias convicções políticas?
O momento crítico para mim foi a década de 1960. Foi quando comecei a pensar em cinema e a fazer filmes sobre questões sociais. Por esse período, certo grupo de pessoas começou a se questionar: qual é o denominador comum de todas essas condições? A falta de moradia, a pobreza, a falta de escolha? Por que as pessoas vivem com tão pouco quando a riqueza é tão abundante? Naquela época, todo um movimento da Nova Esquerda começou e um dos principais slogans era: “nem Washington, nem Moscou”. Em outras palavras, nós nos opomos tanto ao capitalismo do Ocidente quanto ao stalinismo do Oriente. Obviamente, a história do que aconteceu na Rússia foi muito importante, e o embate entre [Joseph] Stalin e [Leon] Trotsky foi crucial, bem como os movimentos que surgiram a partir disso, os movimentos antisstalinistas.
Se surgiu um princípio orientador, foi o conflito de classes essencial no centro de todas as nossas sociedades, que é a luta entre aqueles que vendem seu trabalho e aqueles que lucram com ele. Esse conflito é irreconciliável. Os polos têm interesses diretamente opostos. Quando você percebe isso, tudo fica muito claro. Eu testemunhei os desdobramentos disso nas décadas seguintes — e Margaret Thatcher entendeu a questão melhor do que ninguém: para que o capitalismo tenha sucesso, a classe trabalhadora precisa pagar o preço. Enfraquecer os sindicatos, cortar os salários, fechar as fábricas, desemprego em massa, fazer as pessoas competirem por empregos porque isso as torna mais disciplinadas, leis antissindicais, derrotar os grevistas em disputas. E, curiosamente, foram o Partido Trabalhista e os líderes sindicais que conspiraram a favor disso, porque são social-democratas e também acreditam no capitalismo.
Portanto, uma análise política que começa com esse conflito de classe essencial é, para mim, o mapa e a bússola da política. Muito simples, mas muito claro.
Você acredita que a alternativa a tudo isso seria alguma forma de democracia socialista?
Bem, sim. E então as duas palavras serão indistinguíveis. Mas, antes de tudo, é preciso organizar, ter uma liderança baseada em princípios, ter uma liderança habilidosa que entenda não apenas os princípios, mas também as táticas, e que possa guiar o caminho através do pântano do sectarismo na esquerda — você sabe ao que me refiro, todos os egos, vaidades, os pretensos líderes — e unir as organizações da classe trabalhadora. Essa é uma tarefa enorme, gigantesca, mas é de se esperar que o alvo das circunstâncias exija que esse tipo de liderança apareça. O problema é: onde ela está?
Você tem uma colaboração de trinta anos com Paul Laverty, o roteirista de The Old Oak. Como é essa parceria?
Devo dizer, em primeiro lugar, que os personagens são do Paul, o escritor. Somos realmente uma parceria de iguais. Paul começa com uma folha de papel em branco. Os personagens e as histórias são dele, portanto, não devo levar o crédito pelo trabalho de outra pessoa. Ele é brilhante, um grande amigo e camarada; trabalhamos juntos há trinta anos. O diretor recebe toda a atenção, e os roteiristas são frequentemente esquecidos. Eu realmente tenho que dar crédito ao Paul, ele é um grande amigo e um escritor brilhante.
Dizem que The Old Oak é seu último longa-metragem. O que você pretende fazer agora?
Bem, eu não sei. Minha vida é bem ocupada. Há tantas reuniões, campanhas — por exemplo, foi um prazer conhecê-lo, as pessoas gostam muito de conversar, e isso é bom. Há muitas coisas acontecendo, eu poderia preencher minha agenda três vezes mais. Tenho tido muita sorte. Com o passar dos anos, com o passar do tempo, consegue-se fazer cada vez menos. E quem sabe encontrar tempo para um jogo de críquete e futebol, de vez em quando, como espectador.