18 Abril 2024
Bancada ruralista quer criar brecha que desprotege mais de 48 milhões de hectares de áreas “não florestais” na Amazônia, no Cerrado, no Pampa e em metade do Pantanal.
A reportagem é de Pedro Nakamura, publicada por ExtraClasse, 16-04-2024.
Nas mãos da bancada ruralista, um projeto de lei (PL) idealizado para anistiar multas para pequenos produtores do nordeste gaúcho que violaram proteções ambientais previstas na Lei da Mata Atlântica, o 364/2019, se transformou em “uma das mais graves ameaças de retrocesso à legislação ambiental” do país, segundo ambientalistas consultados pelo Extra Classe.
A ideia original era liberar a produção rural extensiva no planalto da região, mas agora um “jabuti” incluído no texto quer expandir a flexibilização para 48 milhões de hectares de áreas “não florestais” do país, como campos e savanas, segundo estimativas da organização SOS Mata Atlântica. Para se ter uma ideia, trata-se uma área equivalente maior do que o Paraguai.
Com o novo texto do PL, espaços protegidos com histórico de atividade “agrossilvipastoril” anterior a 2008 se tornam “área rural consolidada”, tenham vegetação nativa de pé ou não.
Ou seja, se um fazendeiro desmatar uma dada Área de Proteção Permanente (APP) ou de reserva legal, por exemplo, ele poderá se defender de acusações infrações ou crimes ambientais ao argumentar que havia bois ou eucaliptos no espaço em 2007, o que poderá lhe render uma carta branca a depender do entendimento da Justiça.
Com isso, no total, a medida desprotege metade do Pantanal e um terço do Pampa, além de vastas áreas no Cerrado e na Amazônia – neste último caso, ameaçando áreas inteiras em Roraima.
“Vai ser um liberou geral com impulso ao desmatamento e a degradação de toda a vegetação que não for considerada floresta”, diz a advogada Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidenta do Ibama. “Não tem definição em lei do que é florestal ou não, então vão começar a discutir quanto do Pantanal ou do Cerrado são ou não floresta”, aposta.
A nova redação partiu do deputado Lucas Redecker (PSDB-RS), que relatou o projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal.
Aprovado no fim de março, o texto agora aguarda o fim da fase de recursos antes de avançar para mais uma comissão da Casa. A proposta original é do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que, por sua vez, reciclou seu PL de um projeto rejeitado pelo Senado anos antes, de autoria da ex-senadora Ana Amélia Lemos, também gaúcha.
Na avaliação do biólogo João de Deus Medeiros, presidente do Conselho Regional de Biologia (CRBio-9) de Santa Catarina e coordenador-geral da Rede Mata Atlântica, o projeto de partida já usava a fachada das demandas de pequenos produtores da região para emplacar uma pauta do grande agronegócio.
Nesse caso, o objetivo inicial era abrir caminho para o setor de pinus e eucaliptos avançar sobre a vegetação campestre de Mata Atlântica do planalto no nordeste gaúcho. A partir daí, o setor poderia rumar ao norte, ocupando de Santa Catarina em diante.
“Queriam tirar essa proteção para permitir a expansão de culturas de florestas homogêneas para os campos de atitude, mas aproveitaram essa brecha para liberar a todos os biomas”, diz Medeiros, que acompanha o pleito desde a primeira vez que foi proposto como PL, pela ex-senadora Ana Amélia. Antes, essa alteração era feita na Lei da Mata Atlântica, mas agora ela é direto no Código Florestal.
O apetite pelos Campos de Cima da Serra também preocupa pelo papel que a vegetação tem para a manutenção das nascentes de rios na região, como o Taquari-Antas e o Pelotas, e para a recarga de aquíferos. “Se você altera a condição de áreas com nascentes das bacias hidrográficas, a regularidade da vazão d’água é comprometida e traz um impacto direto até para a própria atividade agropecuária”, avalia o biólogo.
Isso pode se tornar dramático especialmente durante secas, que devem ficar mais extremas e frequentes no Rio Grande do Sul nos próximos anos, devido às mudanças climáticas.
“Esses períodos de estiagem se tornariam muito mais severos e ficaríamos com uma disponibilidade de água muito pior”, projeta Medeiros, que vê um potencial de impacto mais acentuado no PL para a devastação do Pampa, que não é um ecossistema florestal e se tornaria um dos alvos do agro.
O biólogo também lembra que as nascentes das principais bacias hidrográficas brasileiras estão no Cerrado, em áreas não florestais, em meio a vegetação arbustiva, o tipo de formação que é alvo do PL 364/2019.
“O impacto direto sobre recursos hídricos seria o mais imediato, além da perda da biodiversidade também ser desastrosa”, lamenta Medeiros.
Não à toa Araújo vê “problemas jurídicos evidentes” na proposta, que tenta alterar o Código Florestal para permitir que se passe por cima da lei que protege a Mata Atlântica e outras regras que protegem certos biomas, como também é o caso do Pantanal.
“Isso é um princípio que se aprende no começo do curso de direito: a norma específica se sobrepõe à geral naquilo que elas divergirem”, explica a advogada, que projeta ações no Supremo Tribunal Federal (STF) “dias depois” caso o texto vire lei.
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Nova boiada: PL do agro gaúcho na Câmara avança sobre áreas protegidas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU