23 Março 2024
"Quanto tempo mais. E não apenas quanto, mas quantos mais, porque o massacre continua silencioso, continua escondido. Basta acessar a internet e pesquisar 'mortes no trabalho nas últimas 24 horas' e de imediato se pesca algo, como alguém que lança um anzol em um pequeno corpo d’água", afirma Stefano Massini, escritor e dramaturgo italiano.
O texto foi retirado do discurso proferido no dia 19-03-2024, na Piazza del Popolo em Roma por Stefano.
O discurso foi publicado por La Repubblica, 20-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este é um Réquiem para todos aqueles que vocês veem representados nessa esplanada de caixões, para todos que morreram no trabalho, para todos que esquecemos. E a palavra Réquiem é composta por sete letras: R-E-Q-U-I-E-M.
R como Remoção. Sempre removemos o que não queremos ouvir, o que nos incomoda dizer, o que é chato demais para deixar ressoar.
E então o silêncio é hipocrisia. Não existe apenas o silêncio dos mortos, há também o silêncio daqueles que não querem falar sobre os mortos. Os meios de comunicação dedicam um pequeno artigo ao enésimo trabalhador, ao enésimo agricultor, ao enésimo carregador que morre. Apenas algumas linhas nos noticiários. Não poderia haver letra melhor para começar.
E como Erro. Ouvimos continuamente que aqueles que morrem no trabalho cometeram um erro.
Um erro, às vezes até procurado, se insinua.
Ouvi pessoalmente os testemunhos de colegas de trabalhadores que morreram que me disseram como na fábrica lhe fizeram perguntas do tipo: “mas o seu colega que morreu fumava às vezes na fábrica?", uma forma de insinuar que se houve um incêndio a culpa foi dele.
Q como Quanto tempo mais. E não apenas quanto, mas quantos mais, porque o massacre continua silencioso, continua escondido. Basta acessar a Internet e pesquisar “mortes no trabalho nas últimas 24 horas” e de imediato se pesca algo, como alguém que lança um anzol em um pequeno corpo d’água.
U como o italiano Umanità (humanidade). Incrivelmente, ainda existe uma necessidade de humanidade no local de trabalho, é um paradoxo: porque estamos convencidos de que um trabalhador pode ser substituído por uma máquina, que não fica doente, não fica estressada, não tem família e não morre. Em vez disso, o ser humano fica estressado, entra em depressão, felizmente sai em licença maternidade, não dá para tratá-lo como uma máquina. O humano é a força do trabalho, é o ponto mais alto em que um ser humano manifesta a si mesmo na criação de algo para os outros. A palavra grega poesia, à qual hoje damos um viés bastante lírico, significa o ato de fazer: há poesia em fazer, há poesia em trabalhar. Falamos em ganhar a vida, uma perífrase que torna inaceitável que alguém saia de casa e vá, ao invés disso, ganhar a morte.
I como o italiano Incidente (acidente). Continuamos a usar frases do tipo: um acidente deplorável, um acidente infeliz. I como o italiano Ipocrisia (hipocrisia). Não muito longe de onde moro, há três anos, morreu uma jovem depois de ser esmagada por um tear, seu nome era Luana D'Orazio. Depois de três anos, o judiciário chegou à costumeira conclusão: não foi um acidente. A proteção que tinha que estar instalada no tear para evitar precisamente os acidentes havia sido removida para obter um zero vírgula qualquer coisa a mais de produção por dia. Não é um acidente, e é hipocrisia dizer que é. Os mortos assim morrem duas vezes: uma vez quando foram mortos e uma vez quando alguém disse que foi um acidente, um erro.
E significa Evitável. E não estou falando apenas do fato de que a maioria das mortes que ocorre no trabalho são evitáveis. Estou falando de algo muito mais rasteiro e traiçoeiro. Porque no fundo, quando você fala com as pessoas, percebe que as mortes no trabalho são sentidas como uma espécie de tarifa inevitável que pagamos para o progresso.
Queremos ter tudo à mão, queremos ter tudo à disposição e o mais rápido possível. Estamos dispostos a pagar mais para anular o tempo entre o pedido e o recebimento, e pouco importa se isso comporta ritmos de trabalho insustentáveis, se alguém na rua se acidenta para cumprir prazos de entrega desumanos. O progresso nos diz que aquela morte era necessária. Como certa vez uma pessoa me disse de forma terrificante: “Bem, você sabe quantas pessoas trabalham todos os dias em uma nação como a nossa?". Está explicado. Como você pode pensar que alguém não morra?
A última letra, o M. Como o italiano Minaccia (ameaça). Uma palavra terrível, uma palavra que é crime, quem a recebe pode ir à polícia e fazer um boletim de denúncia. As pessoas que estão aqui atrás, nesses caixões, são pessoas que, como todos aqueles que vão trabalhar, ficam sujeitas durante toda a vida a uma ameaça: a manutenção que não é feita, algo que deveria ser respeitado e não é.
A ameaça continua cada vez que pedimos o respeito por um direito e esse direito nos é concedido como se fosse um luxo. A diferença entre direito e luxo é uma diferença substancial. O direito nunca é um luxo. E caso se torne: REQUIEM.