13 Março 2024
“Ao longo do século 20, a história das famílias sofreu uma grande transformação, da qual a criança emergiu como a dona do poder”, define a psicanalista Marcia Neder. Autora do livro Déspotas mirins – o poder nas novas famílias (Metamorfose, 197 p.), ela recorre a expressões como “filho-fardo” e “filho tsunami” para analisar o que identifica como tirania infanto-juvenil. O fenômeno tem menos a ver com o declínio da autoridade paterna e a influência das novas tecnologias do que com o narcisismo dos pais “que colocam no trono o seu Tirano”, ressalva. Professora adjunta e pesquisadora do núcleo de políticas públicas da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), onde criou e coordenou a linha de pesquisa Psicanálise e Cultura, Marcia atua ainda no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Educação da USP. Nesta entrevista, a autora fala da sua pesquisa de pós-doutorado que investiga os déspotas mirins. “São crianças sem limites, sem disciplina, pequenos imperadores, crescem e se tornam adolescentes e adultos mimados, que exigem que o mundo a sua volta se curve aos seus desejos”, descreve.
A entrevista com Marcia Neder é de Gilson Camargo, publicada por ExtraClasse, 07-03-2024.
Para explicar o surgimento dos “déspotas mirins” ou da tirania infantil nas relações pós-modernas, a senhora recorre ao complexo de Édipo. Qual a relação?
Édipo na psicanálise representa o cerne da condição humana, no sentido de que somos enredados, desde nossas origens psíquicas, nos enigmas da Esfinge, que é um monstro-fêmea ávido de carne e amor. Édipo remete a uma dimensão da nossa subjetividade, e não exatamente a uma fase, e não coincide exatamente com o infantil da cronologia. Por isso, uso apenas Édipo.
Por quê?
Para marcar que estou falando da nossa condição humana. Somos todos Édipo, no sentido de termos que conviver com os enigmas impostos pela Esfinge e os conflitos edipianos: amor e ódio por pai e mãe e demais substitutos na figura do professor, do médico, do político e de qualquer figura que represente a autoridade. Para nós, psicanalistas, o “infantil” constitui nosso inconsciente, persiste em nossa realidade psíquica nos desafiando. Uso “tirano” no sentido que essa expressão tinha para os gregos: “aquele que chegou ao poder por mérito próprio” e não necessariamente de modo violento. Ao longo do século 20, a história da família sofreu uma grande transformação da qual a criança, assim como um tirano, emergiu como a dona do poder que chamei de pedocracia.
O que acontece nessa “pedocracia”?
Pedocracia é uma expressão cunhada por mim para descrever um novo fenômeno social que descobri com a minha pesquisa. O poder foi deslocado do pater para o filho. Na família patriarcal, pouco importava – aliás, sequer se colocava – se o filho reconhecia o pai como pai. Era o pai que reconhecia – ou não – o filho como seu. Imagine quantos séculos foram necessários para chegarmos a essa nova família – ainda patriarcal, ou despatriarcalizada, como prefiro – em que é o filho quem tem o poder de te reconhecer como pai. O poder do pai não foi deslocado para a mãe, mas para a criança: nem patriarcado, nem matriarcado, vivemos um novo regime social.
Por que as crianças contemporâneas não têm limites?
Essa pergunta foi o meu ponto de partida. A resposta dada pelos psicanalistas e que examino no livro era o declínio da autoridade paterna. Em seus movimentos emancipatórios, as mulheres teriam assumido a autoridade antes atribuída ao pai, transformando-se em mães poderosas. Por isso, a literatura psicanalítica passou a se referir à família como um matriarcado moderno e a atribuir a esse poder da mulher à causa de psicose e de graves patologias mentais nos filhos. Para mim, esta era uma interpretação que apenas repetia a misoginia ancestral da cultura; as crianças e os filhos seriam vítimas dessa eterna megera que é a mulher desde os tempos da criação. Alguns psicanalistas passaram a clamar por providências que interditassem esse imenso poder da mulher na família.
Como se configuram as “novas famílias”?
“Novas famílias” são famílias recompostas ou reconstituídas por um segundo, terceiro, quarto casamento, ou por casamentos homoafetivos ou ainda por um adulto e seu filho ou filhos, mães ou pais que resolvem criar sozinhos um filho. Elas põem em cena uma dinâmica para a qual se dá pouca atenção, como no caso da Isabella Nardoni que também comento no livro e que estava acontecendo enquanto eu o escrevia. Ciúme, inveja e tudo aquilo que já existe em todo núcleo familiar se multiplicam junto com a outra família que se constitui com partes da anterior. E são todas essas novas formas de união que vemos juridicamente legitimadas atualmente. São novas famílias em relação à família patriarcal, que sofreu uma “despatriarcalização” no curso do século 20, chegando no século atual transformadas pelo deslocamento do poder e pelo amor da e pela criança.
Como acontece o deslocamento de poder nesses novos arranjos familiares?
Na família tradicional, ou patriarcal, o poder é o pater, e é este poder paterno que organiza hierarquicamente essa instituição. Nas novas famílias que surgem com o final do século passado e início deste, o poder é deslocado do pai para o filho – e não para a mulher. E o amor da e pela criança passa a ser o elemento que me faz ser reconhecido como pai ou mãe, o que terá consequências importantíssimas. A antiga hierarquia que estruturava a família sob o domínio do “cabeça do casal” que era tido como naturalmente superior, daí sua posição hierarquicamente superior, vai cedendo lugar a relações familiares mais igualitárias, horizontais – entre marido e mulher, entre pais e filhos.
Como as pessoas reagem a essas mudanças?
O abalo no modelo vertical de família provoca confusão psíquica e exige um rearranjo. As relações hierarquizadas demarcam posições, ou seja, quem é o pai, a mãe, o filho. A horizontalidade desmarca essas posições, desmontando as referências identificatórias, que são aquilo por meio do qual nós nos tornamos quem somos, psiquicamente falando. Antes os adultos (pai e mãe) exigiam ser respeitados e obedecidos, agora querem ser amados e reconhecidos. Em termos psicanalíticos, isso equivale a dizer que o narcisismo dos pais, dos adultos, é que colocam no trono o seu tirano. Daí o título original da minha pesquisa “Édipo Tirano” (no sentido dado pelos gregos ao “tirano”). São os adultos que colocam a criança nesse lugar do poder. Este é o foco do poder da criança. Explico cada uma dessas afirmações no meu livro, com exemplos e muitos casos, sem esquecer das teorias psicanalíticas e do modo como, desprezando a história da família, formulam conceitos supostamente “novos” (como os de “função paterna”) que, na verdade, apenas prolongam o domínio do patriarca, repaginando a família patriarcal. Mas é possível permanecer no campo da psicanálise, como é o meu caso, e propor conceitos e interpretações que se recusam a prolongar, embora sob disfarces, a crença da inferioridade feminina.
Na prática, quais são as consequências dessa nova relação de poder nas novas famílias e o que você escuta na clínica?
Antes de tudo, as “crianças sem limites”, sem disciplina, pequenos imperadores, crescem e se tornam adolescentes e adultos mimados, que exigem que o mundo a sua volta se curve aos seus desejos. São aqueles pais e mães que fazem exigências absurdas na creche de seu filho, desrespeitando os limites, as normas impostas pela instituição em nome do tratamento especial que tentam impor. O time para o qual meu filho de quatro anos torce perdeu e eu proíbo na creche que os do outro time comemorem a vitória. Minha filha morde os colegas, a creche toma as providências, comunica os pais que ficam furiosos não com a criança, mas por terem sido avisados. Uma menina empurra a colega da escada, corta o cabelo de outra, o dedo de uma terceira: as mães a querem distante. Esses são casos reais que escuto na clínica, dos pais, dos professores, nas creches. A metodologia da angústia que desenvolvi, assim chamada por alunos de uma pós-graduação e professores de todas as faixas etárias cuja experiência relato em um de meus livros, e o grupo de supervisão Escola no Divã que criei numa creche no Rio de Janeiro no qual trabalhamos durante muitos anos, consiste em intervir psicanaliticamente junto aos adultos da creche e/ou escola, em vez de encaminhar alunos e professores para um tratamento.
É comum os pais validarem o comportamento dos filhos?
Esses comportamentos das crianças provocam culpa, perplexidade, insegurança nos adultos. Um exemplo é o caso do menino de dois anos que briga, chora, morde e tenta impor sua vontade. A professora tenta impedi-lo, mas se pergunta se estaria sendo dura com ele, ou seja, sente-se culpada por agir como um adulto. As mães dos colegas reclamam que ele é mal-educado e não o querem com seus filhos. Veja a outra consequência: além da culpa na professora, a rejeição social que vai sendo atraída pela criança – que vai ser escondida e camuflada depois pela acusação de bullying e vitimização da criança. Eis um bom lucro para o comportamento agressivo da criança e da permissividade dos adultos com seus impulsos agressivos.
Como os adultos devem lidar com a tirania e agressividade infanto-juvenil?
Os adultos com quem tenho trabalhado em supervisão para colegas psicólogos, professores, educadores, coordenadores, em orientação para pais e também na clínica começam a aceitar ou a enxergar primeiro que são detentores de um poder legítimo e necessário diante da criança. Minha geração tem que engolir, digerir, assimilar tudo aquilo que contestou e recusou no século passado: “abaixo o poder”, “é proibido proibir”, slogans de uma época em que era “feio”, “errado” tudo o que nos conectasse ao poder na educação. Entretanto, se o adulto não assume o seu lugar de adulto diante da criança que lhe cabe educar, ele a mergulha numa angústia deixando-a à deriva em seus próprios impulsos. Imagine a cena: uma criança tendo um piti qualquer em um carro em movimento cuja porta ela ameaça abrir sem que o adulto a contenha. Qual a chance dessa criança sentir que este adulto é capaz de cuidar dela, protegê-la, em vez de abandoná-la a si mesma?
Como os pais devem agir?
Se os pais não conseguem se colocar como pais, como os adultos da relação, sugiro que procurem a ajuda de uma terapia. Essa impotência revela algo do modo como se veem e de como se sentem em relação à sua educação, aos seus educadores (pais e outros substitutos).
Qual é o papel dos professores – especialmente na escola privada onde alunos argumentam que são seus pais quem paga?
Não é apenas na escola privada que alunos argumentam que mandam no professor para impor suas vontades. Essa já era uma realidade corriqueira em universidades federais há algumas décadas. Alunos apontando o dedo na cara dos professores com berros de “sou eu que te pago”. Novamente, esta não é uma questão de classe social. Trabalhei com professores da Rocinha, do lixão de Gramacho, escolas comunitárias e creches da zona Sul do Rio de Janeiro. Além, evidentemente, de universidades federais, trabalhando com professores que lecionavam em escolas públicas e privadas e de todos os níveis de ensino. A questão é sempre a de se colocar como o adulto da relação. Lembrando aos que se identificam com a criança-vítima das teorias psi que ser adulto não significa ser carrasco ou ser violento.
Qual a conexão entre a agressividade das crianças e a violência historicamente legitimada na família e na escola?
A violência é um método educacional (na escola e na família) longevo, cuja legitimidade vem de 20 séculos pelo menos – preciso lembrar aqui da palmatória e do ajoelhar no milho? A novidade é sua rejeição contemporânea a partir do século passado. Para ser muito breve e incompleta na resposta a sua pergunta, tirania e violência na família e na escola emergem da falta de freio aos nossos impulsos agressivos: culpa, punição, vergonha. Em vez de freios, o que vemos muito é louvação, elogio: quanto mais agressivos, mais poderosos nos sentimos. Intimidar, acuar, calar, anular, “cancelar” não são os meios socialmente valorizados de se “relacionar” com o outro?
Mas a culpa não é das novas tecnologias?
Rádio, literatura, cinema, música e, por fim televisão, já foram culpados pelos males sociais. Chegou a vez da demonização das tecnologias. Minha resposta é não. A violência vem antes de tudo na nossa constituição subjetiva: somos feitos de impulsos eróticos e hostis, construtivos e destrutivos. Cabe à sociedade oferecer modelos com os quais a criança e o jovem podem se identificar – suas referências. Modelos que a sociedade valoriza e que, tomando-os como referências, o jovem se sente valorizado. Ocorre que entre nós os modelos valorizados são os do malandro, do esperto, do acima das leis, impune às penalidades (as carteiradas têm vários formatos) sejam lá quais forem a infração ou o crime que cometam. Não há limite aos próprios impulsos agressivos se não houver o medo da punição – pela lei, pela culpa, pela vergonha. Mas no Brasil nós alimentamos a ideia de que o criminoso é a vítima.
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Sem limites, mimados e violentos: como lidar com a tirania das crianças. Entrevista com Marcia Neder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU