01 Novembro 2017
A pretexto do bullying, pais passaram a interferir no mundo infantil. É péssimo: ninguém deve ser poupado de desgostos e frustrações; e nada melhor que a roda comunal, também entre crianças.
O artigo é de Maria Bitarello, escritora, jornalista e tradutora, mestre em Literatura Brasileira e Portuguesa pela UCLA, publicado por Outras Palavras, 31-10-2017.
Minha irmã andava chegando em casa chateada. Cabisbaixa e evasiva, não queria mais ir à aula. A escola tinha se transformado num sofrimento diário, e minha mãe percebeu. Ela confessou que, de fato, havia uma menina infernizando sua vida no jardim de infância: Lorelei, a tirana do parquinho. Com uma capanga miniatura a tiracolo, tentava oprimir e humilhar aquela garotinha de cabelos negros e sobrancelhas espessas com as armas de que dispunha: intimidação, ofensas verbais, emboscadas. Minha irmã, nada combativa, uma criança introspectiva e tímida, sofria em silêncio. Minha mãe compartilhou sua apreensão com minha tia, contemplando possibilidades – de mudá-la de escola a conversar com a professora.
Mas uma também minipessoa, que entreouviu a conversa, tinha outro plano. Minha prima, da mesma idade da minha irmã, interrompeu as duas: “deixa comigo que vou resolver essa parada”. As mães toparam. No dia seguinte, a prima indômita e topetuda (e tão alta quanto a Lorelei) prensou as duas garotas num canto na hora do recreio e sentenciou: “se vocês não deixarem minha prima em paz vão se ver comigo”. E pronto. Problema solucionado. Elas recuaram, minha irmã foi deixada em paz e, melhor de tudo, não foi necessária a interferência de nenhum adulto.
A escola, como a turma que brinca na rua, é um microcosmo do mundo adulto, do mundo todo. Um lugar ou um grupo como qualquer outro e que, portanto, tem suas regras de funcionamento e aplicação internas – e suas crueldades particulares. O que acontece ali diz respeito a seus integrantes e é tão duro quanto o que nos espera pela vida afora. E pra que as crianças cresçam pra se transformar em adultos autônomos e capazes de viver em comunidade, precisam ir praticando cidadania, coexistência, negociação, discernimento, resolução de conflitos e solução de problemas na medida que sua maturidade emocional permitir. E as mães precisam se conter e não entrar em resgate dos filhotes ao primeiro sinal de infortúnio.
Há sofrimento na vida. Não há como se separar disso. E por mais que o instinto materno possa urrar dentro do peito querendo privar a cria de todo e qualquer mal, não há remédio. Seu filho também vai sofrer nessa vida, como todos nós. E mimá-lo será um desserviço a ele. Se for blindado de desgostos e frustrações, se alguém sempre vier em sua defesa sanar suas desavenças, ele tem grandes chances de virar 1) um adulto mimado e bocó ou 2) um adulto mimado e tirano – e esses são os piores. Ao contrário da criança birrenta, o adulto que esperneia não é uma fase que passe – vira um traço de seu caráter. Então o negócio é trabalhar a mola emocional desde cedo.
Em Minas, onde cresci, o bando de crianças que brincava na rua era um mundo em si. Ninguém levava as questões dali pra casa, pros pais. Se alguém tinha um problema com outrem, melhor era conversar ou brigar ou beijar, enfim, o que fosse preciso, mas sem adultos. Machucados eram escondidos, lágrimas secadas e desavenças disfarçadas. Ou assim pensávamos. Vai ver que as mães sacavam tudo, apesar da dissimulação. Só sei que nunca, em toda minha infância, minha mãe interveio em algum problema que tive com alguém na escola, na rua, no prédio, na praia durante as férias.
Porque isso de chamar os pais pra resolver seus pepinos não se faz, todo mundo sabe disso. É uma questão de honra, uma maneira de se fazer as coisas. Na minha escola, uma criança cuja mãe ou pai interferisse em sua dinâmica social estaria condenada à zombaria massacrante dos colegas pelo resto de seus dias escolares. Sua reputação ficaria arruinada e ela seria considerada, com razão, uma “filhinha de mamãe”. Não sei hoje, já que os tempos mudaram; e também os pais e filhos. Nem posso imaginar como crianças de agora briguem por snapchat – a tela que evita o tête-à-tête e permite que a covardia se torne um traço ordinário do caráter. O indesejado é deletado e pronto.
O que sei é que quanto mais penso nisso, mais me convenço de que a roda comunal, a conversa de igual pra igual na família, no trabalho, no teatro, na escola é a melhor resposta ao bullying, à covardia, aos haters da internet, à polarização sem diálogo que vivemos hoje. É imperativo ver e sentir a outra pessoa na sua frente: ouvi-la, tentar entender seus motivos, se colocar em seu lugar. Olhos nos olhos, e colocando o seu na reta. E reitero: é preciso começar cedo. Pode sair briga, choro e até uns tapas, e tudo bem – isso também é diálogo. A roda, quando toda a tribo se senta e todos se olham nos olhos, é uma aposta no amor; é um “sim” num mar de “nãos”.
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Crianças mimadas, adultos tiranos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU